César Mourão. ‘Não sou a mesma pessoa na rua ou em palco’

D‘Improviso, o novo programa de César Mourão na SIC, estreou há poucas semanas e logo como líder de audiências em horário nobre. Aos domingos à noite quando a teoria dos três ecrãs pende para a televisão. Habituado à exposição nacional, clama pela transversalidade mas não a confunde com privacidade. Nos jantares entre amigos, assume rir…

Quando é que passou a levar o humor a sério?

Acho que ainda não levo. Por isso é que continuo a fazê-lo. O humor nunca pode ser levado a sério, creio, assim como nós não nos devemos levar muito a sério. Podia entrar pelos clichés do «a vida não é para levar a sério» ou «não sabemos quanto tempo cá estamos» mas é exatamente isso. Acho que consigo levar para palco aquilo que gostava de dizer na rua e não tenho muita coragem, porque sou tímido ou estou constrangido. Se levasse o humor muito a sério, não aceitaria fazer um programa destes porque não tem nenhuma base de sustentação para que corra bem. Sem nenhum texto preparado para falar com o público. Não penso naquilo que vou dizer. É o que me sair na altura. Foi corajoso da SIC aceitar um formato que não existia, nem foi experimentado em lado nenhum do mundo. Foi uma ideia minha e há um risco grande de correr mal mas é assumido.

Há limites para o humor?

Sim, os limites do bom senso e da inteligência. Muita gente faz essa pergunta. Se se pode brincar com a morte? Claro que sim. Com a religião? Claro que sim. Pode fazer-se humor de tudo? Pode. Mas o bom senso é que dita até onde podemos ir. Passa a não ser humor brincar com o racismo perante uma pessoa de outra etnia. Não é um ato de coragem, é só parvo. Posso humilhar a pessoa, mesmo que tenha muita piada. E também não é fazer humor à revelia. Espreitei, não vi ninguém e fiz uma piada racista. Também não é isso. Pode brincar-se com esses temas sem se ser ofensivo. 

Só se brinca com coisas sérias?

Funciona melhor. Há aquela célebre frase: «graça em cima de graça dá desgraça». Brincar com a brincadeira é muito fácil. Quem tem a coragem de abrir a portas das coisas sérias, fica com os louros. Ainda ontem fiz a apresentação do Orçamento Participativo na Câmara Municipal de Lisboa e é muito fácil dizer uma ou duas piadas desconfortáveis. Não é o meu registo de humor, não o fiz, mas é fácil brincar com as obras em Lisboa. Embora esteja a favor. É fácil brincar com as ciclovias. Embora concorde. É fácil porque vai resultar. Não é fácil dizê-lo porque requer jogo de cintura. Quando à nossa frente está o executivo da CML, uma boa piada tem de ser sustentada e pode muito bem ser corrigida.  

Uma boa piada política pode ser contra corrente?

Sim, o humor tem um papel muito importante na política, na sociedade e até na saúde. Esse lado positivo é muitas vezes esquecido. Quando faço um programa como este, as televisões dos hospitais estão ligadas. Muita gente em situação difícil esquece-se dos problemas durante aquela hora e dez. O humor é uma arma mas ela tem que ser bem usada porque o que o separa da patetice é uma linha muito ténue. Por isso é que há pessoas tão boas a fazê-lo em Portugal. O exemplo do Ricardo Araújo Pereira, que é incrível. Embora ele faça sempre questão de dizer que é só humor, tem um lado político muito interessante. É muito inteligente, tal como o Bruno Nogueira. 

Existe uma diferença entre fazer humor e fazer figura de parvo?

(ri-se) Existe, existe. Todos temos aqueles amigos que têm muito humor em jantares de aniversário. São os engraçadinhos. Não é que seja mau. Também tenho amigos assim e têm muito mais piada num jantar do que eu, que sou introvertido e não falo muito. São patetas no bom sentido da palavra e não há problema nenhum porque o trabalho deles, durante a semana, é sentado à secretária de um banco ou de um escritório de advogados. Chegam ali e têm essa vontade. Todos adoramos ter um amigo assim. Ainda bem que existem mas o humor é outra coisa, por isso é que quem trabalha nesta profissão não tem esse perfil. 

É de gargalhada difícil?

Não, sou péssimo. Não sou nada bom público, acho imensa graça mas não me rio. Há dias em que posso estar muito animado num jantar e há outros em que não estou triste nem nada, mas não tenho esse ânimo. Não sou de riso fácil e essa falta é confundida com antipatia ou arrogância. É fácil ser-se involuntariamente arrogante nesta profissão.

É diferente daquilo que as pessoas esperam que seja, ou não permite essa margem?

Normalmente, respondo a toda a gente. Tenho duas redes sociais. O Facebook está aberto mas dei-lhe um tempo. O Instagram uso porque adoro fotografia. Comecei a usar há muito tempo e nunca pensei que viesse a tomar a proporção atual. Respondo a todas as pessoas que me escrevem a dar os parabéns pelo programa, por exemplo. Não consigo é responder a quem me pede um vídeo para a Lista J da escola secundária. São milhares de pessoas, fico muito contente, mas responder a toda a gente era impossível. Já me aconteceu parar no trânsito e sair do carro para tirar uma foto. As pessoas ficam admiradas e acham incrível mas faço esse exercício de simpatia. Aprendi isso com os mais velhos. Tratar bem quem gosta de nós. Claro que pode acontecer estar com pressa ou ter alguma questão pessoal, e isso já aconteceu. Há quem diga essas parvoíces do «afinal, és antipático» ou do «falei-te e só levantaste o braço». Sim, porque estou na minha vida. Não é por mal. Uma vez disse isto a uma pessoa que, num restaurante, fez uma piada muito pouco inteligente: «não sabes de onde é que eu vim. Se vim de um funeral de alguém da família». Às vezes, as pessoas esquecem-se disso. Veem-te na rua e dizem: «já cortavas essa barba». «Já cortavas o cabelo». Às vezes, não estás para aí virado. Essa barreira até pode ser quebrada mas assim como nós temos de ter limites no nosso tipo de piadas, as pessoas também têm devem ter os seus limites na relação connosco. Brincar, sem dúvida, mas devagar até conquistar a confiança. 

Existe um César Mourão personagem diferente do ser humano?

Sem dúvida. Está tudo misturado, obviamente, mas há claramente duas pessoas. Não sou a mesma pessoa na rua ou em palco. É o oposto. Sou muito tímido, introvertido e não sou o pateta dos jantares. Se a minha personalidade influencia a de palco? Claro que sim. Enquanto estou mais calado, observo. E depois levo essa observação para o palco. Se estivesse muito animado, não estaria tão atento. Nós trabalhamos todos os dias. Enquanto a maioria das pessoas sai do emprego e desliga o botão, nós é o contrário. Desligamos o botão das parvoíces para poder observar. Consigo olhar para as patetices dos meus amigos e usá-las como material. Agradeço-lhes imenso.

A folha em branco é um receio ou está sempre a ser preenchida?

Não tenho medo nenhum. É uma técnica que fui apurando, trabalhar com a improvisação. A folha em branco é um prazer. Gosto de chegar e, do nada, pôr 600 pessoas a rir. Sem nada pensado. Só observando. E brincar com isso. Satisfaz-me muito.

O humor serve-te de libertação?

Sim. Mais no início quando comecei a fazer teatro amador mas não foi consciente. Foi acidental. Já fui mais pateta do que sou. Era tímido mas entre o grupo de amigos e família mais chegada, saía dos restaurantes a imitar familiares. Estudava formação técnica de desporto, que não tem nada a ver. Costuma dizer-se que é a profissão que nos escolhe e comigo foi um pouco assim. Comecei a fazer teatro amador, os encenadores deram-me força para seguir e agora cheguei até aqui. Sem perceber como, mas consciente do trabalho que deu. O meu projeto principal Commedia à La Carte tem 17 anos e os primeiros dez foram de muito sofrimento. Tínhamos público mas fazíamos sobretudo bares. Não eram coliseus como agora. É uma loucura. Deu muito, muito trabalho. Também não tenho grande objetivos. 

Os humoristas nunca estiveram tão expostos. 

Não me considero um humorista. Sou um ator, é a minha formação. Não é melhor, nem pior, é outra coisa. O humor ainda é visto como o mundo patético dos atores. É associado a uma postura comercial, aos patetas dos jantares…Os meus colegas atores de outros géneros, que vou ver e acho incrível – inclusive, recuso descontos em teatros com essa modalidade para profissionais porque sou fã e adoro -, olham para quem trabalha com humor de uma forma algo…Reduzem-nos à comédia. É verdade que permite massificar-nos. Somos estrelas rock involuntárias. Um anónimo na rua vê um ator de teatro e nem lhe conhece a cara e vê alguém que trabalha com humor e fica encantado. Quebra logo a barreira. Conheço vários atores incríveis que são tímidos e andam na rua de cabeça baixa. Não têm contacto com as pessoas. A quem trabalha com humor, acha-se logo que se pode dar uma palmada nas costas. Para o público em geral, somos estrelas rock, mas para os nossos colegas do meio, somos patetas. Não quer dizer que seja generalizado mas é difícil furar essa barreira. Há dois anos, fiz um monólogo no Teatro da Trindade – esgotado, desde o primeiro dia até ao último – em que interpretava uma velha. O texto era sobre a solidão. Admito que era comercial mas não se pode dizer que não estivesse bem interpretado. Tenho muito orgulho por me terem dito que parecia uma velha. É inegável que uma boa interpretação é uma boa interpretação. E o que é ser comercial? Uma coisa boa passa a ser má se as pessoas aderirem em massa? Não percebo…

O acessível é diferente do fácil?

Sim, mas não considero que o que os humoristas fazem é fácil. Agora, será que estou no mesmo campeonato do stand-up? Não faço stand-up comedy mas a tendência é juntar toda a gente. Já me aconteceu ligarem. «Não faz stand-up?». A tendência é juntar o humor todo no mesmo saco. E eu não acho que seja. Há humor, há interpretações, há atores a fazer humor…não acontece só em Portugal. Um filme de humor não ganha um Óscar. 

É um género desconsiderado?

Acho que não porque muitos atores riem-se e gostam. Só que depois não têm coragem de assumir. Ou não gostam mesmo. Não sei…Eu também não me rio com tudo, aliás não me rio com quase nada. Pensando bem, também não vejo muito humor. Não acho que faça bem um ator que trabalhe com humor assistir a humor. Enquanto improvisador, fico com as piadas atrás da cabeça. Se acontecer, que seja por acaso. Infelizmente, tenho a certeza de que o humor é o parente pobre da representação. Ou pelo menos, a forma como é visto. É um debate gigante. Só acho que o humor deve ser também segmentado. Há peças convencionais de teatro com muito humor. 

O meio é muito pequeno?

Talvez. Um ator de humor também faz novelas. E depois os humoristas também acham que pertencem a uma elite. Entre nós, também há quem ache que há os bons e os menos bons. Não percebo porquê, já que o humor é um clique para a pessoa se rir. Ou tem piada, ou não. É simples.

Será que os humoristas não se estão rir o suficiente?

Talvez (ri-se). 

Existe competição?

Eu não a sinto. Já falei do Ricardo Araújo Pereira e do Bruno Nogueira. Dou-me muito bem e rio-me muito com eles. Considero-os dois grandes humoristas. O Bruno mais como ator. Dou-me bem com todos, há é aqueles que não conheço tão bem. Não há competição mas há preferências. Porque se calhar sinto mais empatia com uns do que com outros. Não me parece que haja mal-estar entre humoristas. 

Como é que observa o fenómeno do humor nas redes sociais, que se manifesta quer na chegada de uma série de novos «comediantes», como no ressuscitar do Herman José enquanto figura querida e quase consensual?

As redes sociais são uma mais-valia e uma dificuldade. Veja-se o caso do Ricardo. Não tem Instagram, nem Facebook e tem uma carreira ótima. Eu, por exemplo, não uso o Instagram para fazer humor. Só agora é que comecei publicar fotografias do programa. As redes sociais vêm tornar fácil fazer uma piada sobre este papel de parede aqui atrás, fazer um vídeo e ser visto por cem mil pessoas, mas também originar mais comparação. Se quiseres, segues o Ricky Gervais e já me comparas com o Ricky Gervais. Com o Eddie Murphy. Com o Louis C.K. O Chris Rock. A comparação é tramada. Antigamente, estávamos no nosso cantinho e éramos comparados entre nós. No caso da Commedia à La Carte, somos comparados aos Barbixas do Brasil. Nós já andamos cá há mais tempo mas claro que eles têm improvisações melhores do que as nossas! E nós melhores do que as deles, porque a improvisação é mesmo assim, mas há uma tendência para comparar. E nós até somos amigos deles! As redes sociais vieram baralhar isto tudo. Por outro lado, pessoas que não têm um veículo imediato com a televisão, a rádio ou o cinema podem pegar num telefone e ter 300 mil seguidores. É incrível mas não faz deles humoristas. Pisar um palco e segurar uma plateia é bem diferente de fazer vídeo, mesmo quando há dez mil pessoas a ver. São fenómenos que aparecem e desaparecem. Ou vão para outros formatos. Agora, adaptar-nos ao digital? Sem dúvida. Eu, por exemplo, estou agora a começar um projeto chamado Cavalinho da Chuva com o Salvador Martinha, o Rui Unas e o Frederico Pombares. O futuro está no digital. Quanto ao Herman, foi uma pessoa à frente do seu tempo. É muito fácil dizer que perdeu a graça mas ele abriu a porta. Quando se abre essa porta, é-se o primeiro a levar com a poeira. É complicado. Para os que vêm a seguir, como nós, é fácil. O Herman vai na frente, é deixá-lo ir. Ele abriu caminhos novos, assim como nós na improvisação. Quando começámos há 17 anos, não existia em Portugal. Obviamente, levámos com a poeira. Pessoas em teatros a dizer que não percebiam. E acontece a toda gente que parte pedra. E depois em Portugal, é tudo muito pequeno. Fazemos uma digressão e dura uma semana e meia. O país é pequeno e somos sempre os mesmos. É muito difícil gerir a carreira e tirarmos um ano sabático. Também temos de ganhar dinheiro, comprar uma casa em Lisboa está cada vez mais difícil, arrendar está cada vez pior, e também gostamos de conseguir viver da melhor forma, tal como todas as outras pessoas. Por opção, estive três anos fora da televisão, mas porque tenho um grupo como a Commedia à La Carte que me dá uma sustentação incrível. Se quisesse, não fazia mais nada mas também tenho essa necessidade de voltar a fazer televisão. Essa gestão é muito difícil, mas há quem a saiba fazer muito bem. Há o caso do Nuno Lopes que já fez comédia, cinema, teatro e publicidade. Escolhe muito bem os papéis mas tem uma vida que o permite. Não é pai. Gostava muito de ir dois anos para Nova Iorque mas não posso. Tenho uma filha de dois anos que depende de mim. São escolhas. O Nuno uma vez convidou-me para fazer um filme com ele no Congo [Posto Avançado do Progresso], que acabou por ser premiado, quando eu tinha acabado de regressar de uma série em Cabo Verde [Sal] e a minha filha já farta de não ver o pai. Custou-me horrores. 

A televisão é importante para o César?

Não, e não estou a cuspir no prato. Gosto muito de fazer televisão mas não posso comparar com o teatro e o cinema. E quem trabalha em televisão, sabe que isto é verdade. A televisão esmaga e tritura depressa. Não podemos falhar. O meu programa está a correr muito bem mas se for um flop e perder para os outros canais, passa a ser um programa mau? Para o mundo em geral, é. E a opinião muda num estalar de dedos. É ingrato. Agora, gosto muito de fazer televisão? Gosto. Fazer televisão é como ir ao Rock-In Rio e ao NOS Alive e não levar pó. Não é possível, não existe. É vestir um bom casaco e umas calças de ganga, uns ténis e ser prático. Televisão é isso. Não é possível ter audiência e sair imaculado. É tentar passar entre os pingos de chuvas. 

Não é uma ilusão pensarmos que toda a gente vai gostar de nós?

Em televisão?

Na vida. 

Sim, percebo isso. Há colegas meus que não têm esse objetivo. Eu tenho um pouco. Há quem não se importe de dizer mal do Benfica na televisão, aceitando que muitas das pessoas que estão a ver são benfiquistas e vão ficar chateadas. E vão. Mas depois há aqueles que não se importam de fazer uma crítica ou lançar uma opinião e os visados não ficarem insatisfeitos. Há que saber fazer bem as coisas e a inteligência no discurso é onde está o ganho. O ideal é não fugirmos do que somos. Tenho um exercício para televisão, que não sei se é o correto, mas que é tentar não fazer nada com que não me identifique e odeie, mas por outro lado ser transversal. A televisão é transversal e imediata. Nos canais privados, temos que agradar ao maior número de pessoas, mas não podemos trair o nosso humor. Era fácil entrar no programa todo nu com uma folha. Ia ter audiência? Ia. Era um momento de televisão? Era, mas não acredito que seja o necessário para o sucesso. A televisão é uma máquina e um negócio. Nós entramos naquele negócio e naquela máquina, temos um contrato de exclusividade com aquele canal, ou não, e acreditamos no que somos e fazemos.

É muito diferente fazer televisão ou subir a um palco?

É, na televisão engulo muitas piadas. Sou pai, tenho amigos com filhos e tento não ferir suscetibilidades, dentro das balizas do humor. Lá está, não sou completamente castrado, mas tenho muito mais filtro do que no teatro. No teatro, aquelas pessoas pagaram-me para ver mas sabem que eu posso fazer uma piada sobre a Margem Sul. Não tenho nada contra a Margem Sul, mas é uma brincadeira que se cria e as pessoas são inteligentes para perceber que se trata de uma paródia. Na televisão, é mais perigoso e não gostam necessariamente de mim. Será o meu dever conquistá-las? Não sei, mas essa é a condição. Quando trabalho, não penso nas audiências mas tento sair ileso. Hoje, é preciso muito mais cuidado com determinados temas. Por exemplo, o feminismo e o racismo. O mundo avança e nós temos de avançar com ele. 

Não há o risco de essas balizas serem estreitas?

Há, nem tudo o que disse no programa é politicamente correto. E é gravado live on tape para não ficar nada cortado. Quanto mais verdade há, melhor o público percebe.