Para quê acicatar o touro?

É aparente que a vida política norte-americana está disfuncional. No entanto, a culpabilização simplista da atuação do Presidente Trump não vai  ao fundo da questão. A eleição de Donald Trump – facto que, um ano já decorrido, ainda guarda qualquer coisa de surreal para grande parte da elite política americana – é mais sintoma do…

O ego exacerbado de Trump, suspeita-se, seria fácil de satisfazer se fosse alvo de atenção e de compreensão adultas – tão distintamente, assim, da tara profunda de um Adolf Hitler, esse, sim, mais exigente do que Moloch. Mas, note-se bem a diferença, o tempo de resposta dos grandes decisores político-militares de há décadas media-se em anos, meses, mas nunca menos do que dias, nos casos mais fatídicos (recorde-se julho de 1914, ou os dias finais de setembro de 1938 e de agosto de 1939). Distintamente, o que pode vir a exigir-se ao líder de uma potência nuclear de hoje mede-se em minutos e não muitos. Mais grave, todo o poder explosivo desencadeado ao longo dos quase seis anos da guerra de 1939-45, e que foi detonado em vastas áreas de vários continentes, é inferior em duas a três ordens de grandeza (entre as centenas e o milhar de vezes) àquele que se encontra às ordens instantâneas dos líderes nucleares na atualidade. Convém assim não esquecer que Donald Trump é um dos dois seres humanos que mais potencial destrutivo têm à ponta dos seus dedos ­– o outro é Vladimir Putin. Sobre as condições de uso e perigos associados ao botão nuclear norte-americano merece leitura o recente artigo de Adam Shatz, The President and the Bomb (London Review of Books, 16.11.2017). Com respeito ao botão russo as informações são tipicamente mais opacas, mas não deverão diferir no essencial.

No entanto, o que se faz em Washington? Contam-se as semanas até que se perfaçam quatro vezes cinquenta e duas, dando, entretanto, graças pelas mais de meia centena já decorridas sem estragos de maior? Não, pelo contrário, acicata-se o touro, desafia-se a sua imprevisibilidade. Com impaciência, apontam-se as baterias para as eleições intercalares de novembro de 2018 para o Congresso, na esperança que uma maioria Democrata então obtida possibilite o impeachment do Presidente. Mas, pensarão mesmo alguns, mais afoitos, porquê esperar por um resultado apesar de tudo incerto? Não estarão as linhas gerais do Russiagate em vias de se fecharem numa trama suficientemente densa para assegurar a queda de Trump? Não poderá o mais recente ambiente de censura nos hábitos sexuais dos EUA – onde o puritanismo de antanho teima em ressurgir, debatendo-se com um laxismo de costumes bem instalado, numa curiosa coexistência entre a Genebra de Calvino e a Babilónia bíblica que nos deixa perplexos –  propiciar uma segunda linha de ataque a Trump?

Recorde-se que este foi promotor no passado relativamente recente de desfiles de beleza feminina, com tudo o que esse mundo tentador implica para um macho desinibido. O relatório elaborado por Christopher Steele, um antigo operativo do MI6, aponta nesse sentido. Ao leitor que queira aprofundar o seu juízo nesse jogo de sombras, aconselha-se o artigo de Luke Harding, publicado a 15 de novembro último no Guardian: How Trump walked into Putin's web.

 A trama será digna – ou, dir-se-ia antes, indigna? ­– de uma novela de John le Carré. Com efeito, nela ocorrem perversões como a urofilia, que, suspeita-se, poderiam ter sido documentadas pelos serviços especiais russos para eventual Kompromat, quando do concurso para Miss Universo, ocorrido em Moscovo em 2013. A boa receção e diligente divulgação que tal relatório ­teve em certos meios de Washington – relatório classificado pelo seu autor com um grau de verosimilhança de 70-90% ­– indica bem quão longe alguns desses meios estarão dispostos a ir.

Outro ponto merece atenção. Não deixa de ser perturbador que o nome de dois candidatos derrotados na corrida à Presidência dos EUA apareçam associados a esta trama: o de Hillary Clinton, cujos serviços de candidatura foram, afinal, os encomendantes do relatório a Steele e o de John McCain, que terá sido instrumental para a rápida circulação do mesmo relatório em Washington nos círculos eficazes.

Muitos entre a elite norte-americana comprazem-se ­– e com alguma justificação, confessa-se – a reverem nesse país, que veem escolhido por Deus, uma nova Roma. É justo, assim, que esses mesmos se debrucem sobre a História Antiga e se confrontem com a seguinte questão, plena de atualidade: terá, porventura, Donald Trump – apesar de tudo, o Presidente eleito constitucionalmente pelos EUA – razão para se sentir mais seguro politicamente em Washington, na margem esquerda do rio Potomac, do que, outrora, o Imperador Tibério, em Capri, face à guarda pretoriana de Sejano em Roma?

Stephen Cohen, um professor jubilado pela Universidade de Princeton, tem sido uma voz consistentemente corajosa, mas algo solitária, ao apontar para os perigos que a disfuncionalidade política norte-americana encerra para a paz mundial. As suas conversas semanais no programa radiofónico The John Batchelor Show abordam, desde há cerca de quatro anos, o sério assunto das cada vez mais tensas relações entre os EUA e a Rússia. Cohen considera-as – acertadamente, na opinião do autor destas linhas – como a maior ameaça para a vida organizada e digna de ser vivida pela Humanidade no futuro próximo. Cohen está bem longe de ser um «useful idiot», títere de inconfessáveis interesses russos: ele  é o autor da biografia de referência de Nikolai Bukharin (1888-1938), o dirigente soviético cujo julgamento e execução mais horrorizaram os seus contemporâneos, tão grotescamente infundadas eram as acusações que lhe foram imputadas por Estaline. Com mais de meio século de atraso, as ideias políticas de Bukharin foram reanalisadas com interesse pelo regime soviético nos anos da Perestroika. Tal fez com que Cohen chegasse ao conhecimento de Gorbachev e que assim se desenvolvesse uma amizade que perdura até aos nossos dias. Em novembro de 1989, Stephen Cohen e Richard Pipes debateram perante o Presidente George Bush e o seu Conselho de Segurança, reunidos em Camp David, as virtudes e os inconvenientes de prosseguir a détente com a União Soviética. Pipes, professor em Harvard, representou ali a posição mais cética dos «falcões»; Cohen, que reconhecia a genuinidade das mudanças então implementadas por Gorbachev, defendeu a atitude das chamadas «pombas». Note-se que na Washington de hoje o unanimismo  dos «falcões» impôs a quase total extinção das «pombas», com o consequente fim do diálogo esclarecido entre as várias correntes da política externa norte-americana.  

Guarda-se, apesar de tudo, a esperança que o espírito de vendeta política, com o charivari que lhe vem associado, eventualmente amainem. Só então, mais serenos, estarão os EUA aptos a tentar gerir, não sozinhos – não teve Roma, a «nação indispensável» do Mundo Antigo, também ela que pactuar com os Germanos ou com os Partos? –  as tensões que se acumulam no horizonte, antes que estas se tornem irresolúveis pelo diálogo e pelo consenso.

Numa carta inacabada dirigida a seu filho, Albert Einstein emitiu o seguinte juízo sobre a Democracia americana, no Natal de 1954, o último vivido pelo físico: «O país escolhido por Deus (esta expressão deve ser lida sob o véu da ironia, não malévola, de Einstein; com efeito, o físico acolhera-se aos EUA em 1933 e era seu cidadão desde 1940) torna-se cada vez mais estranho, mas de alguma forma consegue sempre retornar à normalidade. Tudo – mesmo a loucura – é aqui produzido em massa. Mas tudo passa de moda muito rapidamente.» Aproximando-nos do Natal de 2017, esperemos que as palavras do grande físico – espírito visionário mas fino e livre como poucos houve – se revelem certeiras para 2018