Ricardo Araújo Pereira. “Há umas proprietárias do feminismo que decidem que não fizemos o consumo mínimo obrigatório”

Defende que o humor são palavras e ideias e que, por piores que possam ser, só se combatem com outras ideias

“Ricardo Araújo Pereira é um dos mais proeminentes humoristas surgidos na segunda metade do terceiro trimestre da primeira década deste século. Colunista da ‘Visão’ há cerca de dez anos, deixou de ter coisas para dizer há mais de sete. Preocupa-se com a gestão inteligente da sua imagem, para não cansar o público, e por isso mantém apenas um programa na TSF, que passa várias vezes na TVI24, uma rubrica diária na Rádio Comercial, está prestes a estrear um programa na TVI de segunda a sexta com compacto ao sábado e, nos intervalos dos programas, também aparece em anúncios. Nesta entrevista exclusiva, volta a mostrar que é muito mais do que apenas uma cara bonita.” É com esta escolha de palavras que Ricardo Araújo Pereira encerra , com uma “Auto-entrevista”, o seu mais recente livro, “Reaccionário Com Dois Cês”. É a propósito desta obra que a nossa conversa começa. Um diálogo feito por email, em que as perguntas têm metade do tamanho das cartas (cenas de papel que eram escritas com uma pena de ganso no séc. xix) para tentar aproveitar a diferença estrutural de um diálogo que não é feito face a face e que, portanto, não permite pequenas nuances e interrupções. O fio de prumo desta troca de missivas está dado pelo título do livro e pela alegada passagem do humorista, por encontrão, para o campo dos “reaccionários”, com dois cês. 

No fim chegamos – pelo menos eu – à conclusão de que não concordamos sobre a questão do fanatismo. Ao contrário do emérito autor, eu acho que parte dos problemas do mundo são devido à ausência dessas convicções mais duras, a que alguns chamam fanáticas, como escrevia William Butler Yeats n’“O Segundo Advento”: “Aos melhores falta convicção, e aos piores/sobeja apaixonada intensidade.” Mas isso era outra conversa.

Abre o seu livro com uma citação, o que é sempre uma forma simpática de o fazer. Em princípio, nada tenho contra citações. Tenho apenas o azar de as ler de vez em quando. O meu compatriota Kundera afirma que conseguia safar-se de muitos problemas com as autoridades na maravilhosa Checoslováquia porque reconhecia, pela forma como sorriam, as pessoas que não eram estalinistas. O sentido de humor era uma maneira fiável de confirmar que alguém não era estalinista. Tenho uma questão de ordem prática para lhe colocar: para Kundera, eu seria certamente um estalinista: acontece que eu sorrio bastante lendo o seu livro. Quer dizer que você não tem piada?

É uma hipótese que nunca negligencio. Em todo o caso, não tenho a certeza de que o seu raciocínio seja sólido, filosoficamente. Do facto de um estalinista ser desprovido de sentido de humor não decorre que ele ria do que não tem piada. Em princípio, não ri de coisa nenhuma – e é isso que o denuncia e torna facilmente reconhecível. O Kundera diz essa frase numa entrevista ao Philip Roth, a propósito do facto de as suas personagens se confrontarem dolorosamente com um mundo desprovido de sentido de humor. Creio que “estalinistas”, nessa frase, é outra palavra para fanáticos. Talvez o Nuno seja um estalinista pouco convicto, o que só lhe fica bem.

A sua resposta à minha questão anterior é simpática, como é seu apanágio. Coloca-me apenas um problema ou, melhor dizendo, uma questão que acho mais funda: há uns meses, numa conversa, o escritor Agualusa argumentava comigo que os ditadores não leem romances, como quem diz, conseguem ler ensaios, mas são incapazes do salto mental e de liberdade que implica esta capacidade de ler um romance, que é colocar-se na pele do outro. Para além de, depois de ter lido os resumos do Pedro Chagas Freitas na revista “Sábado”, eu ter ficado com sérias dúvidas sobre se a pele do outro não se confunde apenas com as tripas, na altura contestei ao notável escritor angolano que ele dizia isso porque era romancista, e porque desconhecia que nas estantes de Estaline (outra vez ele) havia milhares de livros, e muitos deles eram romances profusamente sublinhados e anotados pelo ditador. Este enorme discurso é para lhe perguntar: não acha que o sentido de humor é uma coisa banal que pode existir num sádico, em alguém malévolo, como eventualmente pode assomar a um santo? No fundo, quero que se pronuncie sobre a banalidade, ou não, do humor.

Acho que são duas coisas diferentes: claro que o sentido de humor pode existir numa pessoa malévola, mas isso não faz dele uma coisa banal. A associação do humor, ou do riso, com o mal é, aliás, muito frequente – até talvez mais frequente do que com o bem. O riso do vilão é um clássico. Ao contrário, os heróis e os santos não costumam rir. Mas há qualquer coisa redentora no sentido de humor. Conseguimos relacionar-nos com uma pessoa, por mais desagradável que seja, se formos capazes de rir com ela. E há algo de inquietante no tipo mais honesto e generoso que, no entanto, é incapaz de rir. A diferença, acho eu, não é entre os bons e os maus. É, como lhe dizia antes, entre os fanáticos e os outros.

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