“Não tenho partido, mas ofereciam-me sempre flores cor-de-laranja”

A ex-primeira-dama conta ao SOL que os filhos não acharam grande graça quando passaram por São Bento e que compara o marido a Cary Grant.

Qual foi a primeira coisa que quis fazer quando saiu de Belém?

Nada de especial… Ao contrário do que algumas pessoas possam pensar, levávamos uma vida bastante normal. Uma vez num programa, uma menina muito pequena perguntou-me se vivia no Palácio de Belém. Disse-lhe que não, que trabalhava no Palácio, mas que todas as noites ia para minha casa. Perguntei-lhe se ela gostava de viver no Palácio, esperando que ela dissesse que não, mas ela disse: ‘Sim’. A pequena gostava de viver no Palácio. Foi engraçado ver essa diferença de pontos de vista. Para mim, para a minha família, era – e foi – uma vantagem não estar viver no Palácio: conseguimos ter uma vida normal. Normalmente almoçávamos juntos, fora os almoços de trabalho, e muitas vezes conseguíamos beber um chá.

Não se sentiu privada de nada?

Não é uma vida com cortes violentos. A rainha Letícia, por exemplo, queixa-se imenso desse tipo de cortes e percebo-a. Um dia, dizia-me: ‘Maria, agora vais-te embora, não é?’; e disse ‘vou, sim’, e ela ‘quantos anos estiveste aqui?’, disse ‘estive dez’, e ela vira-se para o marido e diz ‘Felipe, não vou aguentar estes anos todos’. Disse-lhe depois ‘não vai aguentar dez anos, vai aguentar muito mais’. A Letícia parece não estar muito contente com essa perenidade, mas tenho a certeza quererá essa perenidade. (risos) Os nossos colegas em todo o mundo achavam extraordinário que nos deixassem viver no nosso pequeno apartamento. Lá fora, isso é pouco habitual, não se pode.

Houve algum momento mais tenso no casamento provocado pela vida política?

Não. A política é vivida mais intensamente pelo meu marido do que por mim. Nem partido tenho e o meu marido sempre respeitou isso. Costumava dizer ‘a minha  mulher tem uma cabeça tão livre que iria dar problemas’. (risos) É claro que me ofereciam sempre flores cor-de-laranja e ele ria-se.

Diz que gosta que a sua imagem de marca seja o sorriso. É falsa a ideia que o seu sorriso seja contrastante com o semblante mais sério de Aníbal Cavaco Silva?

Não sei se é falsa. O meu marido é mais reservado. Não dá tanto sorriso público como dou, mas tenho facilidade em dar esse sorriso público. 

São personalidades contrastantes?

Complementares. (risos)

Falavam de política à mesa?

Não, nunca. Lembro-me quando estavamos em São Bento, os nossos filhos não acharam grande graça, eram adolescentes, e nós tínhamos esse cuidado. Os meninos não tinham que ser massacrados com problemas políticos. Às vezes apareciam de surpresa, durante a campanha, mas tinham a sua vida. Nós tentávamos protegê-los, não dar-lhes uma visibilidade que seria desagradável para eles.

Lembra-se da primeira vez que viu o seu marido?

Acredito que sim. Ele teria dez anos. Passava as férias todas no Algarve, onde ele vivia. Gostava muito da aldeia dele porque tinha lá uma prima, que tinha menos dois anos do que eu. Tenho uma imagem dele [Cavaco Silva] na estação de Boliqueime. Não me lembro da minha vida sem conhecê-lo. Passavamos as férias, íamos todos para a praia.

Davam-se bem nessa altura, da adolescência?

Nem por isso. Aliás, acho que os casamentos que duram começam nesse ponto mais rezingão (risos) Entretanto já lá vão 54 anos. 

No último livro de Aníbal Cavaco Silva, ele elogia a sua beleza e conta que a comparavam à atriz Audrey Hepburn. Se tivesse que retribuir o elogio, com quem o comparava?

Ah, facílimo! Cary Grant!

Houve algum momento em que sentiu que perdeu ou se dissiparam amizades devido às suas funções públicas?

Não. As amizades sólidas que vêm muito detrás, dos bancos da escola e dos bancos da universidade, permanecem até ao fim da vida. Guardo-as todas. Essas ficam. Tenho uma certa dificuldade em considerar que as pessoas que estão à minha roda nos locais públicos, onde tenho um encontro esporádico, que entram na minha área de amizade. Mas também ganhei muito porque algumas destas pessoas ficaram ligadas até ao resto da vida mas não sinto que tenha perdido. 

Lembra-se da primeira aula que deu?

Comecei por dar explicações. Tinha 15 anos e pediram-me uma ajuda para uma menina com 16, que estava muito encravada com ‘Os Lusíadas’. Para mim foi importante. Quando entrei na instrução primária, disse logo que queria ser professora primária. Assim que entrei no Liceu, disse que queria ser professora no Liceu. Essa menina era a prova de que realmente gostava de fazer aquilo. Tinha bons resultados. A menina desencravou ‘Os Lusíadas’ e foi uma grande vitória para mim. Já achava que queria ser professora, que iria por aí.

E a primeira aula com turma?

Era novíssima, foi nas Doroteias. Convidaram-me mas não quis ficar. Estava a dar aula às meninas e veio uma freira dizer que as meninas tinham de ir para a capela. Pensei ‘não’. Capela é capela, mas aula é aula. Mais a sério, foi no liceu Passos Manuel. Entrei na turma, tinha 20, 22 anos, e parecia que tinha 18. Atiraram-me uma turma de matulões repetentes. Tinha de ser firme. Resultou, mas eles deram luta. (risos)

Sentiu alguma desilusão com a sua profissão?

Nunca me desiludi nem deixei de gostar do que fazia, mas agora já chega, estou reformada.

Tem uma conhecida paixão por presépios. Porquê?

Não sei. É algo já antigo. Quando chego a São Bento já levo muitos presépios. Quando a minha filha nasceu, comecei a regressar aos meus tempos de infância: um natal sem Pai Natal, sem renas, sem árvore de Natal, mas com presépio. Era o menino Jesus que ‘trazia’ os presentes, que descia pela chaminé. Quando a minha filha nasce, quis comprar um presépio e tive muita dificuldade em encontrar um. Talvez tenha sido aí. Era tão difícil que comecei a tentar comprar mais. Hoje em dia, tem uma força que já não sou eu que comando. As pessoas sabem que gosto muito e oferecem-me. Há uma senhora noruguesa, nos anos 80, era o meu marido ministro, que me oferece um presépio mexicano, lindíssimo, ainda hoje o tenho. Não sei como é que ela adivinhou. 

O que a cativa nos presépios?

Gosto de presépios pelo seu valor simbólico, claro, mas também pela sua capacidade de estabelecer pontes culturais. Sinto que não estou sozinha nesta paixão, é uma troca de emoções, há uma ligação entre colecionadores. Em São Bento, no natal, já sabiam que tinha de haver uma mesa para os presépios e nessa altura não tinha tantos. 

Quantos tem?

Agora, creio que são à volta de 600, mas continuo a recebê-los. Muitos estão no Museu da Presidência. Quando chegámos a Belém, a minha filha, que colabora muito com a coleção, disse que agora que estávamos em Belém era o mesmo o tempo dos presépios. (risos). E no primeiro natal decidi que faríamos uma pequena exposição. A partir daí, tornou-se uma tradição. Todas as exposições em que apresentava os meus presépios tinham de ter uma vertente social. O meu marido fez o mesmo com o golfe, o torneio do Presidente ganhou aí o nome de Portugal Solidário, nome que depois o Presidente Marcelo manteve.

E troca presépios com outros colecionadores? 

Um abade que soube da nossa coleção e veio oferecer-nos um presépio. Veio mais que uma vez. Sabia imenso de presépios, encomendava-os em Barcelos e em Estremoz de dois em dois anos. Da última vez que aqui esteve, disse-me que tinha um presente de um paroquiano seu para a primeira-dama de Portugal, mas que não sabia se devia entregá-lo. Estava hesitante. Perguntei-lhe o que era e ele respondeu: ‘O presente é um saco de batatas’. Perguntei-lhe: ‘Já esteve no Eliseu?’. Disse que não. E perguntei outra vez: ‘Era capaz de oferecer um saco de batatas à Carla Bruni?’. Respondeu que ‘não, jamais!’. (risos)