O auto da barca da glória…

O dia seguinte à eleição para presidente do Eurogrupo encontrou Mário Centeno inquieto com o valor da dívida portuguesa, que, em Setembro deste ano, segundo o próprio, permanecia «a quarta maior do mundo», um patamar bem pouco invejável, a juntar ao facto de, na Zona Euro, ser a terceira  maior, depois da grega e da…

Este feito, com fartos antecedentes nos governos de Sócrates, especialmente a partir de 2009 – elevando a dívida pública em quase 80% do PIB e conduzindo Portugal ao resgate financeiro –, explica a austeridade que os portugueses ainda suportam, agora encapotada. Perante esta realidade, de pouco adianta montar fanfarras com o «défice mais baixo da democracia», como se viu em cartazes pela cidade. 

É o mesmo Centeno – que já tinha destratado o melhor da sua teoria económica para se enquadrar no espírito da ‘geringonça’ – a concluir, em entrevista pressurosa, que «a redução da dívida é absolutamente fundamental». Quem diria?
Costuma dizer-se que ‘mais vale tarde do que nunca’. Mas esta é uma iluminada descoberta de Centeno, preliminar à sua investidura em Bruxelas.

Desde há algum tempo que não faltam as celebrações pátrias em nome do reconhecimento internacional dos seus filhos mais ilustres, de Freitas do Amaral a Durão Barroso, Vítor Constâncio ou António Guterres. Da presidência da Comissão Europeia ao BCE e à ONU, somam-se os casos de sucesso no estrangeiro, contrastando com a falta dele cá dentro. Um paradoxo.

Centeno é o caso mais recente desse fulgor lusitano nos areópagos internacionais, deixando para trás os ‘ódios de estimação’ com que ‘mimou’ o governador do Banco de Portugal, a cujos quadros pertence; as trapalhadas em que se envolveu na Caixa Geral de Depósitos, dando o dito por não dito com António Domingues; além das famosas ‘cativações’, que lançaram vários serviços públicos numa lástima, designadamente no delicado setor da saúde, com um ministro «inábil», desautorizado por Costa. 

Claro que o êxito no Eurogrupo foi prontamente saudado pelos ‘comentadores’ residentes nas televisões e por António Costa, que bem precisava de voltar a sorrir após os sarilhos que o marcaram e marcam o Governo, desde as vagas de incêndios ao roubo patusco de Tancos, ao surto de legionela ou ao desleixo na fiscalização de dinheiros públicos na Raríssimas.

Porém, e ao contrário do que aconteceu com Durão Barroso, que as esquerdas comunistas hostilizaram à frente da Comissão, estas mostram-se timoratas diante da ‘promoção’ de Centeno. E se o PS embandeirou em arco, o PCP e o Bloco ‘assobiam ao cochicho’, expressão grata a Marcelo, vislumbrando já que «somos os nórdicos do século XXI», vá lá perceber-se porquê.

Este irreprimível otimismo presidencial – que só teve paralelo, em tempos, com o «irritante otimismo» de António Costa – vem pintar de heresia qualquer dúvida sobre a bondade dos méritos de Centeno, incensados, também, por Manuela Ferreira Leite ou Bagão Félix.  

Afinal, convém, inchar o orgulho nacional, que procura desesperadamente novos ídolos – seja no futebol, na Eurovisão, no rock ou na política – para alimentar a espuma dos dias.

À cautela, o PCP já fez saber que não volta a assinar nenhum acordo escrito com o PS, e o Bloco atacou em força no último fim de semana, com duas curiosas entrevistas com direito a capas nos jornais. 

Francisco Louçã confidenciou ao i que «vamo-nos aproximando de um novo colapso financeiro», como quem adverte ‘depois não digam que não avisei’…. 

E no mesmo dia, no Expresso, Catarina Martins reconheceu, em pose de Estado, que «o PS é permeável aos grandes interesses económicos», algo que nunca ninguém tinha notado… E recuperou dois temas gratos a Louçã: o ‘risco’ do euro, «em que Portugal está sempre a perder»; e a reestruturação da dívida (vulgo ‘não pagamos’…), que «é perigoso adiar». Os recados ficaram dados, com destinatário à vista. 

Os partidos-amparo de António Costa, antes de ‘roerem a corda’, aumentam a pressão. Na rua e na Autoeuropa, na lógica do ‘quanto pior melhor’, pondo em causa milhares de empregos.  

Quanto a Centeno, no dizer presidencial, passou de ‘patinho feio’ do Governo a ‘cisne resplandecente’ – e, nesta nova plumagem, prepara-se, em nome da felicidade coletiva, para embarcar na ‘Barca da Glória’… 

Nota bizarra: Marcelo tem vindo a habituar os media e o país a falar quase todos os dias. Faltava ainda ser barbeado em público, como se tivesse saído de casa, à pressa, descuidadamente, rodeado de câmaras, sem se escanhoar. E ninguém lhe diz que é excessivo, como foi há anos o seu mergulho no Tejo?…