Frente comum quer travar despejos em Lisboa

Todos os dias pessoas são despejadas em Lisboa. Uma frente comum criada este sábado pretende travar os despejos através da mobilização e da solidariedade

Entre a aparente tranquilidade da espuma dos dias que passam em que pouco parece mudar, a verdade é que Lisboa está a sofrer profundas transformações na sua organização social. Uma delas é precisamente o direito à habitação, onde, de ano para ano, cada vez mais pessoas são expulsas das suas casas.

Segundo informações do Ministério da Justiça, em 2016 o número de pessoas despejadas foi 91,7% superior ao número contabilizado nos três anos anteriores. Nos primeiros nove meses de 2017, 1480 famílias foram despejadas, de acordo com o Balcão Nacional de Arrendamento. Números considerados abaixo da realidade que se vive nas ruas do país. Despejos que têm por base o aumento súbito das rendas e a não renovação dos contratos para se transformarem as habitações em estabelecimentos turísticos ou para novo arrendamento.

É com esta realidade em pano de fundo que no passado sábado mais de meia centena de activistas e coletivos responderam ao apelo da Associação Habita para se discutir a formação de uma frente comum contra os despejos em Lisboa no Mb – Espaço Associativo.

“É uma frente de organizações e de indivíduos que querem começar a criar um movimento social para se oporem não apenas aos despejos, mas também a este processo especulativo da cidade, de mercantilização profunda da cidade”, disse Rita Silva da Habita. “Já tentámos negociar muito com o governo e os movimentos já fizeram e continuam a fazer propostas para se acabar com a lei das rendas, o fim do regime dos residentes habituais e para se avançar com a regulação de preços, mas é como embater num muro”, afirma.

Para Rita Silva, a solução já não passa apenas pela “negociação e via jurídica”, mas também pela “mobilização” para “impedir despejos” porque os “interesses do outro lado – aqueles que estão com o governo, que são os da finança e do imobiliário – serem forças que têm uma enorme capacidade de influência e até de governação sombra”, impedindo que os despejos cessem. “A finança e o setor imobiliário têm em Portugal um poder desmesurado”, conseguindo “promover e indicar quais as leis que querem”, conclui.

Entre as causas apresentadas pela ativista encontra-se o “movimento global de capitais que vê nas nossas necessidades um depósito de investimento para o seu portefólio financeiro”, onde os “fundos de investimento especulativo” lideram. “Está a rebentar com as cidades, onde Lisboa é um exemplo”, assevera. Um fenómeno ao qual “quem vive e trabalha em Portugal com salários baixos e médio baixos não consegue” responder. “Há um revolta latente das pessoas em relação ao que se passa na cidade”, avisa.

Portugal não é caso único nesta tendência da globalização sem regulação. Também outros países europeus, como Espanha, se têm confrontado com uma enorme vaga de despejos por incumprimento das hipotecas e do aumento das rendas. A formação desta nova frente, que ainda não tem nome, foi inspirada na Plataforma dos Afetados pela Hipoteca (PAH) espanhola, mas não apenas. “Por toda esta Europa fora há movimentos que estão neste momento a lidar exatamente com estes problemas. As cidades são cada vez mais uma fonte de acumulação de capital”, disse a ativista. “Há movimentos que para parar com os despejos têm de mobilizar em massa e esse é o nosso objetivo”, assegura. A frente comum não é uma “cópia da PAH, mas é muito inspiradora”.

Inspiração além fronteiras No seguimento da crise financeira de 2007-8 nos Estados Unidos, a bolha imobiliária espanhola rebentou, aumentando o desemprego e o número de famílias despejadas das suas casas por falta de pagamento das hipotecas aos bancos. Todos os dias representantes dos bancos, acompanhados pela polícia, convidavam famílias a abandonarem as suas casas sem que tivessem quaisquer alternativas de habitação. Perante este drama social que parecia não ter fim, nasceu, em fevereiro de 2009, a Plataforma de Afetados pela Hipoteca em Barcelona, um movimento social autoorganizado que congrega tanto pessoas afetadas pelo problema como pessoas solidárias. A pergunta basilar era simples: se a lei permite que os bancos despejem pessoas sem que tenham alternativas, porque deveremos permiti-lo? A desobediência civil foi a resposta encontrada por centenas de ativistas.

Começaram-se então a criar piquetes de cidadãos pacíficos à porta das casas onde se sabia que os representantes dos bancos e a polícia se dirigiriam nos próximos dias. Entre a unidade e a solidariedade, os despejos começaram a ser travados um a um. Os bancos e a polícia não conseguiam furar a multidão. A relação de forças alterou-se e os bancos perceberam que já não podiam avançar unilateralmente com os despejos. Sentaram-se à mesa das negociações e dações e moratórias foram alcançadas, dobrando, mesmo que poucas vezes, os joelhos aos bancos. Cada conquista fortaleceu o movimento e, como se fosse um rastilho sem controlo, expandiu-se pouco tempo depois a toda a Espanha. Viviam-se então momentos de contestação social genérica no país.

Contudo, impedir despejos não é a única ação da PAH. Esta tem uma atuação ancorada noutros quatro eixos estratégicos: os “acompanhamentos”, quando um conjunto de pessoas com megafones e pancartas se juntam ao inquilino quando este vai à sede do banco para pressionar a instituição; as moções apresentadas por partidos próximos nos parlamentos nacional e locais a definir a suspensão dos despejos; a obra social, onde todos os ativistas se juntam para ocupar e reabilitar habitações abandonadas pertencentes a fundos especulativos para que famílias despejadas não fiquem sem um teto; e, por fim, a Iniciativa Popular pela Dação em Pagamento, uma petição para que se debata no parlamento nacional uma proposta de lei para se regularizar a dação em pagamento, a suspensão dos despejos e o aluguer social a nível nacional. Esta última iniciativa tinha como objetivo principal informar quem vive e trabalha em Espanha da situação que se vive.

No fim do dia, os ativistas apenas pedem uma pequena grande coisa: que a habitação passe a ser um direito efetivo de todos e cada um dos cidadãos e não um negócio para um minoria abastada.