O Anti-Natal dos poetas portugueses

Entre Jorge de Sena e David Mourão-Ferreira, o Natal na poesia portuguesa foi muitas vezes denunciado por tudo o que nele é farsa, mas também se viu mais fundo que isso, o vigor do desejo que a cada ano espera um parto que venha bater às portas de um mundo novo

Todos os anos, por alturas do fim e quando se mete em nós uma pressa de virar costas, despedir o que nos maça, cada um com a sua consciência, e perante o alarde com que o Natal se nos mete diante dos sentidos, acha-se alvo de uma requisição nos arquivos, entre o que sente, sabe e viveu, entre os galhos que a memória quebra para aquecer-se quando fica mais frio. E se, com o tanto que nos importuna, às vezes esta quadra mal se suporta, se nos merece troça, há nela algo mais desesperado, como o envenenamento e morte lenta de uma lembrança doce, um sentido de fracasso, a sensação de que neste mundo nenhum parto, por mais enfáticas que sejam as estrelas a anunciá-lo, nenhum ser novo fará diferença, porque o mundo está demasiado velho, moribundo.

É ir ler o que alguns poetas portugueses acabaram por deixar ao Natal, como se funcionasse contra eles, como se lhes puxasse a manga, e eles, incomodados, voltassem a tentar. Não celebrando, nada de versos festivos nem tranquilidades. De Jorge de Sena será mais natural esperar “versos de Natal raivoso”, a vontade de sair à rua de galochas e pressão de ar marcando a chumbo as inevitáveis “pombinhas da paz dos maus poetas”, com a “missa do galo, o sapatinho, o abeto/ a concorrer pagão com o presépio, cartões de Boas Festas, e as cantigas/ nacionais importadas e folclóricas”.

Sempre houve neste poeta uma irritação fenomenal com tudo o que viesse para o desfile da grande farsa. Em sintonia com o que foi dito pelo Papa Francisco nas vésperas do Natal de há dois anos; em 1969, e comentando “Uma Antologia Lírica do Natal”, Sena fazia notar o quanto “peste e fome e guerra” são dores dessas que sempre passam ao lado do “coração que não existe”.

Não é já a indignação nem esses agastes morais que hoje vão com todos, mas uma “saudade de alma”, um desprezo pela geral “brandura” com que se vê crianças sumirem-se num incêndio… “Que rósea aurora as ressuscitará?/ (há já vinte anos perguntei – não digam)”, termina assim o poema. Esta época era para Sena, “segundo testemunho de quem com ele de perto conviveu, um período de especial inquietação, nervosismo e, frequentemente, depressão”, refere Eugénio Lisboa no ensaio que escreveu a propósito de uma coletânea dos poemas de Natal senianos que nunca chegou a ser publicada. E é também sua a expressão “antinatais”, que diz já quase tudo quanto a um desespero patrocinado por tudo aquilo que em nossa volta ganha a efusividade de uma festa – as luzes, as canções, as árvores iluminadas, os presépios -, mandíbulas do vazio que nos traga mais vorazmente a cada ano.

Há uma discórdia profunda entre quem não ignora as coisas, não escolhe esta época para se esquecer do mundo, e assim, em 1971, viu o Natal como um tempo de profanação, da sensação de tudo ser traição, estar tudo a saque, pois a data que devia inspirar alguma compunção, abre-se à folia “de quem traz às costas/ as cinzas de milhões”. Por isso, pergunta: “Natal de quê? De quem? (…) “Natal de qual esperança/ num mundo todo bombas?/ Natal de honesta fé,/ com gente que é traição,/ vil ódio, mesquinhez,/ e até Natal de amor?”

Dá para sentir metade dos leitores a revirar os olhos sobre estes versos. O musculado sentido ético de Sena é das coisas que foi perdendo tradução dentro da própria língua em que escreveu pelo modo como se têm gastado as palavras com que os poemas sempre foram escritos. “Haverá uma idade em que serão esquecidos por completo/ os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas”, anunciava Cesariny, ameaçando muitos, todos quantos do uso desta língua fazem uma corrida de bois sem nome, derrotando pelo cansaço todos os que se assinam.

Mas hoje o perigo maior que daqui se avista é o de chegar uma idade em que, ao invés de um acordar, o que haverá será uma impossibilidade técnica de se ser levado minimamente a sério, ou por impossibilidade de se fugir ao sentido mais redundante e lacónico, ou por não se poder, sob nenhum pretexto, desmanchar-lhes o prazer, estragar a festa, tirar-lhes dos beiços as pequenas cornetas com que tiram o sentido a tudo, viram as datas contra o acontecimento que assinalam.

Eugénio Lisboa sublinha como estes poemas escritos com obstinação significativa por Sena até ao último dos seus Natais, poucos meses antes de falecer, “tratam, sob a forma retórica de ‘alusão em eco’, de falar de uma ausência que dói e nos incrimina, de uma impossibilidade que agrava a sede e a fome, de um vazio que insistimos em não encher, falam, em suma, dos antinatais que somos, por culpa de tudo e de cada um de nós que os não vive dentro de si, como exigência e responsabilidade que se não podem transferir…” 

E, no entanto, mesmo se vemos Sena inspirado daquela mesma ira que já levara outros a expulsar do Templo os vendilhões, transformado numa cova de ladrões pelas suas atividades comerciais, não deixa de haver uma ferida funda nestes versos que têm paralelo e ecos também nos de outros poetas que foram reivindicando, em violento contraste, a tradição saqueada.

“Entremos, apressados, friorentos,/ numa gruta, no bojo de um navio,/ num presépio, num prédio, num presídio/ no prédio que amanhã for demolido…/ Entremos, inseguros, mas entremos./ Entremos e depressa, em qualquer sítio,/ porque esta noite chama-se Dezembro,/ porque sofremos, porque temos frio”, escrevia em 1962 David Mourão-Ferreira. É deste poeta todo um livro dedicado à quadra – “Cancioneiro de Natal [1960-1987]”.

É um livro desigual, cheio de versos e poemas atentos a ocasiões hoje, senão indecifráveis, frias, inconsequentes. Mas é um livro que ultrapassa esse Natal que se tornou só “um mau costume”, que salva algo ao furor repetitivo que, de acordo com Sena, fez deste um período condenado, uma vez que nem este nem “nenhum Natal será já possível”. Porque se a Mourão-Ferreira não escapa o que só à sujeira aproveita, aos comportamentos com que os homens se esquecem de si e do mal que buscam, há nele ainda a graça desse inclinar triste da memória, como mexe nas coisas que se perderam e o desejo vislumbra nelas uma hipótese de que ainda algo nasça. Nas piores circunstâncias, ele não desiste desse anúncio mais vingativo que nunca: “Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ num sótão num porão numa cave inundada/ Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ dentro de um foguetão reduzido a sucata/ Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ numa casa de Hanói ontem bombardeada (…) Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ vê-lo-emos depois de chicote no templo/ Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ e anda já um terror no látego do vento/ Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto/ para nos pedir contas do nosso tempo”.

Aqui abre-se um fosso no modo como um e outro poeta lidam com a esperança. Sena já não admite qualquer dose desta, e considera-a como a um veneno, notando como mesmo uma sensação de conforto e de calor que o acometa nesta quadra, vem do “lume de não estar pensando”. Sena parece ter já atravessado o umbral do inferno, onde a esperança se torna um peso inútil, uma cegueira, e, assim, insinua que mesmo os deuses já só nascem de nenhum nascer, e que o parto é apenas “o parto ameno do ventre imaginado”. Mourão-Ferreira não deixa escapar ilesa a hipocrisia que é mais que o vermelho a cor que veste o Natal. E, em 1969, faz a atualização do cerimonial no poema “Natal Up-to-Date”, que arranca assim: “Em vez da consoada há um baile de máscaras/ Na filial do Banco erigiu-se um Presépio/ Todos estes pastores são jovens tecnocratas/ que usarão dominó já na próxima década”. Se quase cinco décadas depois ainda aguardamos que o dominó seja o padrão envergado pelos nossos pastores, e se o Natal está cada vez mais chique, e é cada vez menos dos príncipes esfarrapados que ainda lembram Cristo, há nos poemas de Mourão-Ferreira, além da esperança, essa consciência de como de tudo o que é farsa no Natal, sobrevive ainda um doloroso encanto, seja a lembrança dos Natais em que, deixando de pensar, caímos na ilusão ou nos entregámos inteiramente à ânsia de um período que fosse de verdadeira harmonia e paz, uma inspiração forte em nós que mandasse calar esse vento velho que fustiga e tira o gosto a tudo, e que às tantas até se confunde com o nosso pensamento.

Mourão-Ferreira vira-se assim para a poesia e, no primeiro dos poemas do seu cancioneiro de Natal, pede-lhe que o conduza “à beira desse cais onde Jesus nascia…” Então, ao contrário dos que exigem da poesia essa fera lucidez que se sente algumas vezes nos pulsos e nos tornozelos como grilhetas castigando a pele, que não nos deixam esquecer tudo o que há de intragável na terra, este poeta pergunta-se: “Serei dos que afinal, errando em terra firme,/ Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?”

Não são, porventura, os mais memoráveis versos de Mourão-Ferreira, mas são humanos, e falam-nos do Natal como essa ambição de ver nascer no outro uma força capaz de libertar-nos. E esse é um dos sentimentos mais fortes desta época, o quanto toda a opressão e injustiça só revigoram o desejo de um parto que mude a vida inteira. De resto, e no que toca a versos inesquecíveis, a fechar o seu cancioneiro, David tem a clareza da perda maior, que é já não estar cá um dia para os próximos Natais, os póstumos: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio”… O pior de tudo é quando já nem para o desgosto, nem para a farsa e nem para nos sentirmos sós. “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que o Nada retome a cor do Infinito”.