Gonçalo M. Tavares vence Prémio Vergílio Ferreira 2018

Atribuído anualmente pela Universidade de Évora, o galardão distingue este ano Gonçalo M. Tavares pelo conjunto da sua obra, que aqui passamos em revista

É um escritor que privilegia declinações discretas da sua vida privada, pois considera que, face à Obra, a figura do autor deve dar um passo atrás. Este o princípio que orienta os seus famosos Senhores, personagens que integram "O Bairro", uma conhecida série que, apostada na centralidade de um protagonista, se afasta da abordagem biográfica.

O autor de "Jerusalém" (Prémio José Saramago 2005) começou por ser uma revelação no domínio da poesia, isto de acordo com a APE, que em 1999 atribuiu o Prémio Revelação de Poesia ao livro "Investigações. Novalis", um volume que viria a ser editado em 2002 e arrumado pelo autor (avesso às etiquetas dos géneros canónicos) na série «Investigações», conjuntamente com o volume de estreia, "Livro da Dança" (2001). Para trás, além de uma hipotética carreira de futebolista, ficavam 12 anos disciplinados de escrita, sempre no silêncio do anonimato, a explicarem quer a aura de segurança e a exigência que o autor logo transportou para os vários domínios da criação literária, quer o acelerado ritmo editorial que se seguiu.

Hoje, mais de três dezenas de títulos e muitos prémios depois, vindos dos mais diversos quadrantes, o autor de "A Colher se Samuel Beckett" (2003) é por muitos considerado uma revolução, em crescente e bem sucedida irradiação internacional como se apressam a demonstrar as cerca de 250 traduções dos seus livros, em 30 línguas, com edição em 46 países. Tanto assim que José Saramago pôde afirmar que «há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares». Romper com a própria Literatura, no que ela possa representar de sistema convencional, com os seus géneros canónicos, o seu cortejo cómodo de conceitos, as suas mercadorias, os seus escaparates convencionais e instaurar um regime novo, eis o que parece mover este escritor, que é também professor na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, onde lecciona a cadeira de Cultura e Pensamento Contemporâneos. 

As suas armas são conhecidas: lucidez, linguagem de ponta, encharcada de memória literária e cultural, ímpeto (des)construtivo, força renovadora, camaleonismo de registos, sentido lúdico, irreverência humorística e, não menos importante,  uma poderosa máquina de interrogar (o Deus-linguagem, o poema, a própria ficção) e de rever formas de estar e pensar o mundo. Uma máquina que se move a vários ritmos, apelando a diferentes velocidades de leitura, ora mais pausada, ora mais veloz ("Canções Mexicanas", 2011; "Animalescos", 2013).

Esse golpe de audácia que é "Uma Viagem à Índia", equivalente impossível d’"Os Lusíadas" de Camões, constitui um dos momentos mais altos da obra do escritor. Ao contrário do poema camoniano, desta epopeia (ou contra-epopeia, como a designa no prefácio Eduardo Lourenço) não nos chegou notícia de solicitação persistente, mas a verdade é que Portugal, a Europa e o mundo em desconcerto do século XXI careciam de um (anti)poema que o reflectisse.

Os efeitos desta ‘revolução’ que tem vindo a estilhaçar o conceito de literatura enquanto «escrita dos limites», são visíveis nas reacções da crítica mas também nas criações a que tem dado origem, em Portugal e no estrangeiro: peças de teatro, peças radiofónicas, curtas metragens e objectos de artes plásticas, vídeos de arte, ópera, performances, projectos de arquitectura, para já não referir as teses académicas. Um panorama que não surpreende se pensarmos que se há palavras que podem ser colocadas no centro da obra de Gonçalo M. Tavares, sempre em imparável expansão, essas palavras são ousadia, imaginação, originalidade, hibridismo, interdisplinaridade, tranversalidade.

A célebre colecção «O Bairro» é bem um exemplo deste leque de atributos. Com ela pretendeu o autor homenagear figuras ilustres da literatura e da cultura, trocando a habitual reverência (tantas vezes estéril) pela ousadia do empreendimento significativo. A primeira pedra deste bairro sem nome e sem consistência referencial foi lançada em 2002, com a publicação de "O Senhor Valéry". Outros se seguiram: "O Senhor Henri", "O Senhor Brecht", "O Senhor Juarroz", "O Senhor Calvino", "O Senhor Breton", entre outros, personagens com identidade ficcional própria, fragmentos de um ambicioso projecto arquitectónico previamente desenhado ou, nas palavras do autor, «capítulos de uma história da literatura em ficção», ainda incompleta. 

"O Reino", tetralogia que integra os livros "Um Homem: Klaus Klump" (2003), "A Máquina de Joseph Walser" (2004), "Jerusalém" (2004) e "Aprender a Rezar na Era da Técnica" (2007), é talvez o contra-pólo de "O Bairro", que convoca, logo a partir do título, um universo familiar e afectivo. N’"O Reino" impera a desolação de um mundo onde a violência germina facilmente e o Mal alastra como erva daninha.

Ao "Atlas do Corpo e da Imaginação" (2013) apetece chamar OLNI (Objecto Literário Não Identificado), um volume a vários títulos estranho. Livro inclassificável este: não é um manual delirante; não é um romance, mesmo que deste tenhamos um entendimento aberto; não é um ensaio; não é um trabalho filosófico; não é um catálogo de imagens e procedimentos pós-modernos e também não é um atlas. Nada disso e tudo isso.

Com "O Torcicologista, Excelência" (2015) volta o autor a manifestar a sua tendência irreprimível para a teorização e a alegoria num terreno textual declaradamente híbrido. "A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado", o seu mais recente livro, veio inaugurar a série Mitologias. Tão dirigido à imaginação como à razão, pode ser lido como uma colectânea de histórias de espantar que subvertem, advertem e, no limite, divertem, devolvendo-nos o gosto da narrativa tradicional.

Uma visão de conjunto da obra de Gonçalo M. Tavares revelará que não há nela nenhum Tratado de Tordesilhas entre Ciência e Artes, Poesia e Ensaio, Literatura e Filosofia, verso e linha contínua da prosa, o pensar e o sentir, a verdade e o seu contrário, a razão e a loucura e demais dicotomias clássicas, que acabam por ruir a cada nova investida do escritor. Há, isso sim, interferências entre os domínios em que ela se reparte, como se a escrita adquirisse vida própria e transitasse entre géneros e registos discursivos, abrindo-os uns aos outros, uns nos outros, rasurando-lhes as fronteiras, dissolvendo-lhes e fundindo-lhes as identidades numa assinalável fluência convivial em que é preciso pôr alguma ordem. Esta uma das funções, aliás, da designação "Cadernos de Gonçalo M. Tavares". Cadernos, sublinhe-se, e não livros, categoria que mais facilmente se integraria na classe das mercadorias e visões de superfície que fazem da literatura mais um produto de uma cultura com menus concebidos segundo os perfis do mercado e os paladares dos consumidores.  

José Saramago vaticinou-lhe o Nobel da Literatura. Só o tempo, o tempo a que Jorge Luís Borges chamava também autor de todas as epopeias, o poderá dizer.