O Natal há 100 anos. Poucas luzes e alguns brindes

Portugal participava na Primeira Guerra e a escalada dos preços não dava para mesas fartas. O golpe de Sidónio Pais ainda estava fresco mas o messianismo daqueles tempos não convencia toda a gente. Recortes de 1917

“Saibam todos quantos estas linhas lerem que lhes desejamos um ano felicíssimo, na companhia de quem mais estimarem, chegando intactos a 1919. Que vossas excelências igualmente desejam a nossa ventura está provado pelos inúmeros bilhetes de visita que temos recebido, desde o do distribuidor do correio – que durante um mês, pelo menos, no-lo não distribuiu – ao homem do talho, que ou não traz carne nenhuma ou a traz a 100 escudos o quilo”, ironiza “O Século Cómico” na edição pós-natalícia de 1917. A publicação parece resumir o espírito natalício de há 100 anos e continua assim: “Também o padeiro nos manifestou os seus benévolos sentimentos a respeito da nossa saúde, apresentando-nos, com o seu cartão, três pães de lixo”.

Com as tropas portuguesas a participar ativamente na primeira guerra e o país a atravessar sucessivas crises políticas e económicas – Sidónio Pais toma o poder a 11 de dezembro – o clima interno não está para grandes festas e é dado pouco destaque à “festa da família”, como é consagrado o feriado do Natal no calendário republicano. A exceção são talvez os anúncios, que não deixam de fazer menção aos “brindes” da época, com as páginas do “Diário de Notícias” tomadas pelos armazéns do Chiado e Grandella. Também não falta publicidade à lotaria, direta ao assunto: “Quereis dinheiro? Muito dinheiro?”, lê-se no anúncio da Casa Gana, em Lisboa.

O racionamento só chegaria em 1918, mas há muito que o país tinha um problema na gestão da subsistências. Em Lisboa era vendido pão de primeira e segunda qualidade e o “DN”, em vésperas de Natal, assinalava que face à carestia de azeite de consumo o governo tinha permitido a venda de produto sem ser em vasilhas fechadas. E noticiava que, por ter vendido azeite a preço superior à tabela, tinha sido preso Aníbal Cunha, comerciante da rua Maria Pia. A escassez de batata também continuava depois de em maio 1917 ter motivado mesmo a revolta popular: a comissão de subsistências mandou distribuir antes do Natal dois vagons pelos mercados da capital mas a procura foi tão rápida que o “Diário Notícias” sugere que os fregueses levaram baldes em vez de sacos.

Espetáculos natalícios

Não podia faltar entretenimento. No Teatro Apolo, o Natal de 1917 contou com o espetáculo “O Mártir do Calvário”, com uma matinée dedicada a toda a família. Numa nota ao lado do anúncio publicado no “Diário de Notícias” era possível, porém, encontrar outras atrações na capital. É que no Jardim Zoológico de Lisboa (inaugurado em 1884), o ano tinha trazido algumas novidades em matéria de quadrúmanos, no caso mais habitantes para a aldeia dos macacos.

Lembranças para o front 

A figura das madrinhas de guerra surge na Primeira Guerra por toda a Europa: protegiam os soldados em campanha. No primeiro Natal com portugueses em combate, muitos dos anúncios dirigiam-se a estas noivas, afilhadas e mulheres em cuidados e os preços não eram em conta: em 1917, o salário médio diário era de 60 reis.

“Um dilúvio de pechinchas”

Presentes em conta e de qualidade é o que se quer e era o que prometiam os Grandes Armazéns do Chiado. De utilidades domésticas aos “mais lindos brindes”, com destaque para trabalhos em lã feitos à mão, só é pena o anúncio não vir acompanhado de uma fotografia.

Há 100 anos já havia catálogos de brinquedos

“Peça-se o catálogo de especial de brinquedos e jogos que se manda na volta do correio a quem o pedir”, lê-se neste anúncio dos Armazéns Grandella, que tal como os rivais Chiado, apostava todas as cartas nos brindes natalícios. E eis outra pérola: o presente muito delicado, “talvez o mais apropriado para dar a pessoas de consideração”, era o “Champanhe de Lamego”, que com o tempo passou a ser conhecido pelo espumante Raposeira.

Máquina falante

Cem anos depois, os discos voltaram a estar na moda, mas em 1917 eram uma sensação e a Victorino & Correia orgulhava-se do seu moderníssimo repertório com preços variadíssimos. Os superlativos absolutos sintéticos também eram o máximo, pelo menos na publicidade.

Vira o disco…

No jornal humorístico radical “Os Ridículos”, era a situação política que marcava a quadra, com o golpe de Estado de Sidónio Pais, que derrubou Afonso Costa a 11 de dezembro, na ordem do dia. Caricaturizavam assim a busca nacional por salvação e por um messias, de sucessivos movimentos revolucionários na I República. Com a ajuda de historiadores, descodificamos os visados: a adorar o menino, Machado Santos, Pimenta de Castro e Sidónio Pais, apoiado na madeira. Na manjedoura, Brito de Camacho, deitado sobre o jornal “A Lucta”, publicação do Partido Unionista, que dirigia, e apoiante inicial de diferentes messias.

As apostas

A primeira lotaria clássica de Natal foi sorteada pela primeira vez no século passado a 22 de dezembro de 1900. Nas páginas do “DN”, são vários os anúncios a casas da sorte. 

As tropas portuguesas na guerra

O Corpo Expedicionário Português combateu na Flandres a partir de janeiro de 1917, com a bravura dos portugueses depressa a dar lugar a algum desalento com a chegada do inverno e das baixas. A festa da família viveu-se nas trincheiras.