Moita Flores. “Para exibir a série tivemos que esperar a morte de um sacerdote”

O autor da série televisiva sobre o caso Ballet Rose optou por não identificar as personagens até hoje porque era gente muito poderosa.

Meio século depois do julgamento do maior escândalo  moral que abalou o Estado Novo, o Ballet Rose continua a ser uma espécie de tabu. Tantas são as pessoas importantes envolvidas, que só a série de Moita Flores tem direito a entrada na Wikipédia, como se estivesse rodeada por um muro de silêncio. O antigo inspetor da Judiciária, anos mais tarde chegou a acompanhar um caso de homicídio na Vivenda do Estoril onde se passavam os bacanais dos poderosos com meninas que chegavam a ter nove anos de idade. 

Fez uma série televisiva, em 1997, e um livro sobre o Ballet Rose, um dos grandes escândalos do final da ditadura. Por que se interessou pelo caso?

Na época saiu uma reportagem da Felícia Cabrita. Foi isso que voltou a atiçar a minha curiosidade sobre o caso. Eu lembro-me, era muito novo na época, do desterro do Mário Soares para São Tomé, por causa de ter denunciado o caso. Por outro lado, uma das grandes protagonistas do Ballet Rose era da minha terra. 

A costureira?

Sim, a costureira. O que me provocou sempre um fascínio muito grande. Não vou dizer quem era, porque na série e no livro optei por não colocar os nomes reais das pessoas. Até porque muitas delas estavam vivas e outras tinham filhos, netos e família entre os vivos. 

Apenas os nomes das vítimas, das raparigas menores que foram levadas para essa rede de prostituição?

Não, todos os nomes estão ficcionados. Na altura pensei muito sobre isso, e decidi que não colocaria os nomes verdadeiros. Tinha sido um grande escândalo. Ainda havia eco disso. Não estava para magoar os filhos por causa dos pais. 

Não acha que devido à gravidade dos crimes cometidos,  justificava-se, pelo menos, em relação aos que estavam vivos que se apontassem quem tinha praticado aqueles atos?

Julgo que a Felícia fez isso na sua reportagem, mas a mim interessava-me a coisa em termos de ficção. Para mim, a história transcendia o próprio caso concreto: era um caso de moral e de poder. Essa é que a grande história do Ballet Rose. 

Mas é significativo ser uma história de devassa, de violação de menores num regime com pergaminhos de ser tão clerical.

Aquilo que é perturbador e obsceno é exatamente essa promiscuidade forte entre a Igreja e o Estado Novo.

Está a referir-se às relações de amizade entre o cardeal patriarca Cerejeira e Salazar?

Sim, mas é preciso notar que na altura em que eu faço a série, o cardeal patriarca já era outro. Essa promiscuidade não só política, mas também moral, de um regime que alardeava uma moral católica estrita,  fez com que a obscenidade ainda fosse maior: algumas das grandes figuras do regime estavam no escândalo, frequentavam as prostitutas menores, tinham mulheres por conta.

Estamos a falar de raparigas muito jovens, algumas com 11 anos ou menos.

Sim, raparigas e mulheres muito novas. Eles pagavam às prostitutas para “desflorarem” as filhas, e elas levavam-nas. Um deles, na altura um dos homens mais importantes do partido do regime, a União Nacional,  pagava para desflorar as crianças. Quer uma professora, a Rosa, quer outras mulheres com que eles se davam arregimentavam crianças, todas miúdas, para esse individuo tirar-lhes a virgindade. E depois havia bacanais em que entravam as filhas, as mães e mais mulheres. Havia menores de nove e 10 anos no grupo.

Como é que o escândalo foi descoberto?

O caso foi investigado pela Polícia Judiciária com muita discrição, até porque a PIDE controlou a investigação e o processo desde o início. Mas foi uma investigação grande. Foi uma investigação razoavelmente bem feita. Mas como estava envolvida no caso muita gente, a informação começou a saber-se. Havia muita gente que frequentava a rede e havia dois pontos de encontro importantes: um era ao pé do Marquês de Pombal em Lisboa, se não me engano era na Rua Eça de Queiroz, e o outro ponto era no Estoril. O que vem desencadear a investigação é o aparecimento de um familiar dos Espírito Santo morto no Estoril. Na altura, não se consegue determinar pela autópsia se se tratava de um homicídio ou de um suicídio. Ele era homossexual e morreu na praia e isso espoleta uma investigação, que começa pelos meios na zona que estavam ligados aos atentados ao pudor e ao abuso sexual. Por outro lado,  já se falava nos círculos das elites de Lisboa dos escândalos, do que estava a acontecer e quem é que estava envolvido nessa rede de prostituição infantil. Algumas pessoas envolvidas estão vivas e são muito conhecidas do grande público. E alguém, presume-se que tenha sido Mário Soares ou Francisco Sousa Tavares, pai do Miguel Sousa Tavares, denunciam isso em França. A primeira repercussão pública do caso vem à luz num jornal de direita francês, julgo que no “L’Aurore”. É aí que é denunciado pela primeira vez o escândalo. Depois, o Urbano Tavares Rodrigues e o Mário Soares ajudam um jornalista alemão, creio que da  “Der Spiegel”, que vai publicar um dossier com grande impacto internacional sobre o escândalo, com fotografias de vários dos implicados. [em algumas biografias de Mário Soares também é referido a ajuda do líder socialista a um jornalista do jornal britânico “Sunday Telegraph”]. Torna-se um escândalo mundial, com referências em jornais de todo o lado, menos nos portugueses, sujeitos à censura.

Salazar toma algumas medidas?

Toma várias. Obriga os visados a pararem os seus comportamentos e manda controlar a investigação. No escândalo estava envolvido o seu homem de confiança, que supostamente era o seu sucessor indigitado, o ministro de Estado Correia de Oliveira. Era um homem interessantíssimo, com uma cultura notável, um extraordinário melómano, que até escrevia artigos na revista “Flama”. Ele tinha uma mulher com uma doença incurável e era atraído para estas festas por razões de libertar o espírito, digamos assim. Havia outros homens que frequentavam este circuito, ligados à União Nacional, gente ligada à administração da Companhia Nacional de Navegação e até o dono do Casino do Estoril, que era um ex libris do país. Havia tanta gente ligada ao regime que Salazar mandou controlar a investigação à distância, pela PIDE, e a certa altura o caso começa a parar. A PJ fica sem meios e acaba por só levar ao tribunal um caso de atentado ao pudor e pouco mais. Sentam-se no banco dos réus várias mulheres e poucos homens. Acaba com a condenação da maioria das mulheres e com a multa a um dos homens.        

Quando em 1998 é exibida a série, alguém teve medo que o caso retornasse à baila? Teve pressões?

Foi muito falado. Houve polémica e houve pressão até para que a série não fosse emitida. E ela acabou por ir para o ar, não só com três bolas vermelhas [risos], sempre depois da meia noite. Apesar disso, chegou a ter maior audiência que o telejornal exibido às 20 horas. Isso devia-se a que, na altura, havia ainda muita gente poderosa que tinha estado envolvida no caso e tinha o nome no processo, nomeadamente um sacerdote importante. Aliás, posso dizer que a série só foi para o ar quando ele morreu. 

Era o Cardeal Patriarca de Lisboa?

Não lhe vou confirmar, apenas dizer que era um homem que veio a ter um papel muito importante na Igreja e a televisão teve algum tempo à espera que ele morresse. Na série ele é ainda um jovem padre e não é um cardeal. Isso condicionou a exibição. O país tinha memória desse escândalo que tinha envolvido o poder e tinha-o enlameado, e que politicamente tinha tido consequências graves: a prisão do Urbano Tavares Rodrigues e de Francisco Sousa Tavares e o degredo para São Tomé de Mário Soares. Essas figuras são perseguidas com a argumentação de estarem a denegrir o bom nome do país ao inventarem um caso criminal, escandaloso e de costumes para difamar o regime. 

A investigação podia ter ido mais além?

Os inspetores fizeram um bom trabalho. O caso tem vários volumes, a PJ ouviu muitas testemunhas. Começaram por fazer um trabalho sério dentro do quadro legal que tinham e os condicionalismos políticos, e percebe-se que, a certa altura, o processo começa a ser limitado. São impedidos de aceder às grandes figuras implicadas. 

Li que o caso se desenvolve quando aparece uma mulher com a filha que denuncia o caso.

Não é bem assim. A lista dos clientes é dada por uma prostituta e a filha. É esta última que reconstitui os lugares e os clientes que tinha tido. A mãe tinha vendido várias vezes o desfloramento da filha. Devo dizer que elas simulavam esses desfloramentos com sangue de coelho e de galinha, para ganharem mais dinheiro. As gradas figuras do regime eram enganadas por elas. É essa miúda que tinha tido mais clientes que deu à PJ a lista de clientes e as casas. Elas são detidas, são feitas rusgas. Mas há um momento posterior em que o processo começa a afunilar. Começam a desaparecer figuras importantes denunciadas e a ser trocadas por nomes menos relevantes e com menos importância. 

Quem é que na PIDE fazia esse trabalho?

Faziam-no sob ordens do Silva Pais [diretor da PIDE]. Ele tinha homens para controlar os envolvidos ligados ao regime e para controlar as investigações da PJ. É preciso dizer que há um homem importante no desencadear do processo, que era o ministro da Justiça da altura, Antunes Varela, que competia com o ministro envolvido, o ministro de Estado e do presidente do Conselho, para suceder a Salazar e que dá luz verde à investigação. Esse antigo ministro da Justiça ainda me ameaçou, mas depois percebeu que eu defendia a sua intervenção no processo. Era um homem da extrema-direita, ligado ao Kaúlza [de Arriaga], que foi um dos putativos sucessores do Salazar. O ministro da Justiça deu cobertura à PJ; Silva Pais deu cobertura para se parar o processo. 

O Salazar saberia do caso antes?

O Salazar sempre soube tudo. Quando o caso se tornou público, fez o que tinha a fazer: impediu-os de continuar a fazer essa vida e mandou controlar a investigação. Não havia nada que passasse pela PIDE, que ele não soubesse. Isso implicava muitos homens do regime. 

O caso abala os alicerces do regime?

É um caso que começa no início dos anos 60, mais precisamente em 1959, é julgado em 67, e coincide com a guerra colonial e é o corolário com arranque da guerra. Do ponto de vista internacional, a guerra já era complicada, o caso vem agravar a situação de um regime que se pautava por um pretenso moralismo.

O homem da Igreja que estava envolvido tinha um papel ativo ou apenas de encobridor do escândalo?

Ativo. E teve problemas com isso. Quando veio cá o Paulo VI teve um encontro com ele muito duro. E ele foi enviado para uma espécie de reclusão. 

Um espécie de cura de reabilitação como fazem as vedetas de Hollywood?

Mais uma travessia do deserto [risos]. E ainda bem que assim foi. Era um homem com muito valor, que teve depois um grande papel.