Biblioteca Pessoal : Leitura na sala do trono

Há quem o faça sem quaisquer complexos, quem o faça de forma discreta e até quem o faça quase às escondidas, mas o facto é que as leituras no ‘trono’ – para usarmos uma expressão respeitável – são um hábito muito arreigado entre os portugueses. E não só entre portugueses, devo dizer. Em tempos, visitei…

Há quem o faça sem quaisquer complexos, quem o faça de forma discreta e até quem o faça quase às escondidas, mas o facto é que as leituras no ‘trono’ – para usarmos uma expressão respeitável – são um hábito muito arreigado entre os portugueses.

E não só entre portugueses, devo dizer. Em tempos, visitei com alguma frequência um casal de amigos em Londres em cuja casa fiquei muitas vezes instalado. Nesse pequeno apartamento, como é hábito naquele país, o duche e a retrete encontravam-se em casas de banho separadas. Na da retrete, havia dois livros pousados em permanência sobre o depósito do autoclismo. O primeiro chamava-se The Little Book of Farts – título que me absterei de traduzir – e tinha em epígrafe uma frase em latim, da autoria de Pitágoras, a desaconselhar o consumo de uma certa leguminosa. O segundo era um calhamaço que reunia epistolografia de pessoas célebres.

Devo dizer que li trechos muito substanciais de ambos.

Ao longo da vida conheci quem não entrasse numa casa de banho sem um jornal meticulosamente dobrado e metido no bolso das calças e até quem, no local de trabalho, guardasse um livro atrás do autoclismo – posso assegurar que o conteúdo era perfeitamente idóneo – e o tivesse lido de uma ponta à outra em sessões sucessivas ao longo de semanas.

Outros leitores compulsivos, igualmente reservados mas menos engenhosos, confessaram-me que tinham de recorrer a rótulos de sabonetes, etiquetas do vestuário ou a talões na carteira para terem alguma coisa com que se entreter na casa de banho.

Mas esses tempos de obscurantismo acabaram. Hoje, com a democratização dos smartphones, podem ler-se notícias, artigos de fôlego, grandes reportagens ou até romances integrais em formato de e-book enquanto se está confortavelmente instalado. Ler no trono tornou-se um privilégio ao alcance de qualquer um.

Ou quase. Nas minhas viagens por algumas partes do mundo constatei que há países que ainda não se renderam aos encantos da retrete. Para quê sanitários em cerâmica ou luxos supérfluos quando um buraco no chão ligado a um cano resolve o problema? Ainda assim, julgo que a ausência de um trono condigno é um sintoma inequívoco de atraso civilizacional. Haverá, afinal, maior prova de que um povo ainda não adquiriu hábitos de leitura?