O doce amargo…

O primeiro-ministro em exercício proferiu em Bruxelas, diante de funcionários portugueses das instituições europeias, a frase que arrisca ser a mais infeliz do ano.  Ao declarar que «este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal», António Costa ou foi acometido por alguma amnésia súbita ou, simplesmente, decidiu ignorar, como se fosse irrelevante, mais de…

O primeiro-ministro em exercício proferiu em Bruxelas, diante de funcionários portugueses das instituições europeias, a frase que arrisca ser a mais infeliz do ano. 

Ao declarar que «este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal», António Costa ou foi acometido por alguma amnésia súbita ou, simplesmente, decidiu ignorar, como se fosse irrelevante, mais de uma centena de vidas estupidamente perdidas nos incêndios florestais de Verão – por comprovada ineficiência do dispositivo no terreno e incompetência dos comandos operacionais -, a que se somaram as vítimas de um surto de legionela, que não podia ter acontecido num hospital público.

Já se suspeitava que, ao viajar de férias enquanto Pedrógão ardia, o primeiro-ministro virava as costas ao fogo e ao drama das famílias sinistradas. A sua frieza deixara um rasto de profundas perplexidades. Esperava-se, ao menos, que tivesse caído em si e que o ato de contrição parlamentar, embora contrafeito, fosse um sinal de arrependimento. Puro equívoco, agravado pela desculpa esfarrapada de a frase ter sido citada fora de contexto. 

Para António Costa, o que aparentemente contou foi apenas o facto de terem sido escolhidos portugueses para cargos internacionais com visibilidade, e de o país ter saído do procedimento por défice excessivo, com uma subida no rating das agências de notação. 

O bom comportamento da economia, em parte empurrada pela onda positiva do turismo, devolveu-lhe a urgência de retomar o discurso otimista, o único em que se sente à-vontade. 

Mas nenhum cargo internacional, luzido que seja, pode apagar a memória de um ano trágico para inúmeras famílias, com largas responsabilidades imputáveis ao Estado, que não se resolvem com uma romaria improvisada para entrega de chaves.

Como pode António Costa achar «particularmente saboroso» um ano que cobriu de negro a floresta, incluindo o Pinhal de Leiria, que o Estado negligenciou, enquanto acusava os privados de não limparem as matas e os eucaliptos de serem ‘incendiários’? 

E como pode passar uma esponja pela rocambolesca história do roubo de armas em Tancos, cuja suposta investigação se ignora, apesar de toda a insistência presidencial no apuramento de responsabilidades «doa a quem doer»? 

Como foi possível permitir que uma associação como a Raríssimas, financiada generosamente pela mão do atual Governo, lançasse uma nuvem de dúvidas sobre o funcionamento de todas as IPSS, quando estas prestam, na esmagadora maioria dos casos, um importante serviço de apoio social? 

Ou como se quer transferir o Infarmed para o Porto, em jeito de prémio de consolação, tudo feito em cima do joelho, à pala de uma falsa descentralização, sem consulta prévia a ninguém – incluindo aos 400 colaboradores daquele organismo – e com custos significativos para o erário público?

E que dizer do ruidoso silêncio que cercou o enorme desequilíbrio financeiro da CGD, cujo inquérito parlamentar foi terminado a ‘trouxe-mouxe’ e deu em nada, sonegando-se a informação sobre os beneficiários de empréstimos ruinosos feitos pelo banco público?

Ao contrário do que foi dito por António Costa, este ano ficará na história por ter sido um dos mais mortíferos – até nas estradas! – e aquele que registou um completo desnorte do Governo. Algo que não é nada ‘saboroso’.

Há ministros que continuam em funções mas que já deveriam ter saído pelo seu pé, ou serem convidados a sair pelo primeiro-ministro. Manter Azeredo Lopes na Defesa, por exemplo, é consentir no branqueamento de Tancos e favorecer a impunidade; não substituir o chefe do Estado-Maior do Exército, apesar da sua intervenção errática, é outro mistério.

Na Saúde, como na Segurança Social, sobram as fragilidades e as razões para os respetivos titulares saberem tirar as consequências em tempo útil. Na Educação está um ministro inexistente, especializado em neutralizar o trabalho meritório dos seus mais recentes antecessores, em harmoniosa articulação com os interesses corporativos defendidos pelos sindicalistas da Fenprof.

É um Governo de incertezas que vai entrar em 2018, embora com o ego insuflado pelas sondagens, que valem o que valem. 

Nem com o melhor espírito natalício se compreende ou aceita que, em vez de recorrer aos melhores, António Costa se tenha rodeado de famílias do PS e de amiguismos, sem o menor pudor. E sem sequer acautelar eventuais conflitos de interesses.

Há empresas que estabeleceram como regra a não admissão de familiares de colaboradores nos seus quadros. Já o Governo da ‘geringonça’ parece cultivar o inverso, seguido zelosamente pelo Município de Lisboa, onde Costa deixou escola. A missão de governar não se confunde com uma atividade lúdica para dar emprego a compadres e a correligionários. O serviço público é algo mais.