A literatura contra a gigantesca Medusa de cabeças de Nada

Relembramos algumas das edições que marcaram o ano, aproveitando o balanço para reconhecer o papel dessa raça discreta e de uma persistência heróica, os tradutores que, face aos constrangimentos de um mercado cada vez mais saturado de lixo editorial, se empenham para que esta língua não fique à margem dos abalos mais profundos que a…

De que há-de servir-nos outro balanço a respeito da vida literária e editorial se, por algum pudor diante do que, mais do que óbvio, se tornou já pornográfico, evitarmos falar na degradação do papel das instâncias de mediação? Hoje inoperantes, se nem estrebucham, mostram-se incapazes de opor qualquer resistência à cumplicidade entre os media e o mercado editorial que vai bulindo os juízos literários que vingam entre nós.

Há muito da sensação se passou a um amplo consenso de que os envolvidos não sabem fazer outra coisa senão participar em operações de auto-promoção. A agenda cultural surge, assim, submetida a um mercado de valores artificiais. E na sua contristada irrelevância, os prémios, como a generalidade das iniciativas por conta das instituições, renderam-se à bitola das campanhas de marketing dos grupos editoriais. Nisto, ao jornalista cultural resta fazer de chofer da maralha, ao passo que o crítico literário – por muitas aspas com que se vista e ainda que prefira não se assumir enquanto tal, passando por bartlebyana a indisposição para se ver confrontado com as opiniões que emite –, entre nós, vive num tímido entra e sai do catálogo das espécies extintas.

O ponto é este: chegámos hoje, neste país, a uma situação de tão profunda afasia no meio literário, com o termómetro a registar temperaturas bem abaixo do zero, em que fica difícil até manter a circulação do sangue e não o sentir gelar nas veias. Neste estado de coisas, um só instante de lucidez é o que basta para que se assuma que um machado lançado sobre a mesa tem muito mais peso crítico do que uma fina conjugação de palavras. Porque, na verdade, estas nunca puderam menos, exaustas de tantos rodeios, de serem devolvidas por falta de cobertura. Além de uns poucos danados distribuídos pelas suas ilhas de Elba, são raros aqueles a quem este modo de definhar provoca mais que um encolher de ombros, e a tensão polémica parece hoje arredada das lides literárias.

Não é de estranhar, neste contexto, que, à parte os clássicos e a ficção estrangeira – que se aproveita da inscrição do nosso meio editorial no corredor internacional que determina a fruta da época, ou seja, o lote de livros e autores vendidos por grosso para vários países em cada estação –, o programa editorial que vem sendo gizado nas últimas décadas para a literatura lusa nos pareça um museu de tristes figuras de cera, onde nada acontece e raramente passa uma corrente de ar. Há um corrupio dos mesmos pelas feiras e festivais, mas, no essencial, o próprio ar parece compungido, e o ambiente é azucrinante e frívolo como imaginamos que seja aquele em que se vive (e, sobretudo, se morre) numa empresa que vende papel.

Este ano fica, por isso, marcado por uma série de edições que recuperam, traduzem e reafirmam obras e autores que, na sua glória póstuma, não podem já ser confundidos com “a vasta mediocridade que se liga aos populosos consumos”.

No que respeita à poesia, 2017 é um ano em que os gigantes são os tradutores, figuras teimosamente relegadas para um segundo plano mas que, entre nós, têm mostrado um empenho heróico para que esta língua não dê por si trancada e contente com a sua bafienta ignorância. Do “Épico de Gilgameš” (Assírio & Alvim), com tradução de Francisco Luís Parreira, aos “145 Poemas” (Flop) de Konstantinos Kaváfis, resultado do incansável ofício de Manuel Resende ao longo de um quarto de século, passando por “A Balada do Velho Marinheiro” de S. T. Coleridge (Edições do Saguão), que além de beneficiar da erudição esmagadora e do génio inventivo de Alberto Pimenta, nos chega ainda num livro que, a par da reprodução das gravuras de Gustave Doré, é, ao nível gráfico, um verdadeiro primor, e provavelmente o mais belo objecto literário que entre nós se publicou este ano, até ao gozo sinistro que nos proporciona “Leviatã ou O Melhor dos Mundos seguido de Espelhos Negros” (Abysmo), livro que marca a aparição nesta língua do escritor alemão Arno Schmidt, mais uma vez um fruto da empenhada demanda do tradutor, Mário Gomes.

Não se pode também deixar de honrar o fôlego sem folga de Aníbal Fernandes que, aos 84, prossegue uma arquitectura paciente e esplendorosa pondo tijolo sobre tijolo, com obras escolhidas a dedo, talismãs caçados nos sarcófagos dos idiomas e latitudes mais diversas, sempre com aquele apuro de quem verte invenções de químicos através de uma alquimia que acrescenta ouro a esta língua, e que, se tantas vezes já lhe foi reconhecida, damos em esquecer, porque é tida já como património adquirido. Só este ano, fez crescer o nosso fascínio com, entre outros, títulos como “Gaspar da Noite”, de Aloysius Bertrand, “O Rato da América”, de Jacques Lanzmann, e Os “Cavalos de Abdera e mais forças estranhas”, de um dos autores favoritos de Borges, Leopoldo Lugones. Vale a pena acreditar em Deus só para pedir que lhe pague em nome desta nossa irremível ingratidão.

Depois, e no que toca a ensaios, crónicas e os géneros mais famélicos, ganhámos este ano a generosa e agitadora recolha de “Textinhos, intróitos e etc” (Pianola) de Vitor Silva Tavares, e os três volumes e quase três mil páginas da intervenção de Agustina Bessa-Luís na imprensa escrita ao longo de mais de meio século – “Ensaios e Artigos” (Gulbenkian). Reunidas também num único volume,  “Memórias” de Raul Brandão foi o maior dos lucros editoriais que tirámos da gorda efeméride que juntou os 150 anos do nascimento do autor e os 100 da publicação original de “Húmus”. E para recuperar do nosso persistente atraso além-fronteiras, temos de destacar a tradução que Paulo Osório de Castro assinou do formidável volume de ensaios de Elias Canetti “A Consciência das Palavras”, publicado pela Cavalo de Ferro, que é, este ano, a grande baixa da edição independente, passando a engrossar as chancelas do grupo 20 | 20.

Voltando à poesia, e num ano em que o nível dos originais publicados pelas editoras de maior expressão comercial se cingiu a marcar passo, não oferecendo motivos de particular entusiasmo, há três edições que nos vêm lembrar como, em Portugal, esta é a única das artes que “tem uma tradição capaz de afirmá-la ao nível dos desenvolvimentos internacionais”. Primeiro, a reunião da obra poética de Mário Cesariny, o mago que, sem encenações apoteóticas, soube provocar em poucas linhas calamidades belíssimas que ainda hoje estão a mexer com as placas tectónicas deste idioma e nos revelam a face do que de mais novo se tem feito para que a poesia seja ainda a tradição dos grandes amantes. Depois, temos a recuperação dos “Poemas Quotidianos” (Tinta da China) de António Reis, o poeta e cineasta que não precisou de esbracejar muito para, com dois livros e em cem breves poemas, capturar um sentido desesperadamente humano da vida. A força com que um olhar extrai de um quadro o “instante de coincidência entre toda a memória e toda a vida”.

Finalmente, é necessário fazer justiça ao esforço e ao cuidado com que a Do Lado Esquerdo, uma pequena editora de Coimbra, tomou a iniciativa de nos lembrar o singularíssimo caso de Rui Knopfli, poeta que deixou uma obra que soube antecipar e superar muito do que se fez em nome de um rigor entre o que se diz e sente, num compromisso com a realidade que mais gente tem dentro, e que logo nos convoca para um diálogo à luz da sua “subjectividade lúcida e autovigiada”. Sem versos a mais, sem o lixo de quem acaba a viver só de insistências, e a embalar-se com papel de presente e laço para teses académicas. Depois de o poeta estar lembrado, surgiu a antologia da Tinta da China, “Nada Tem Já Encanto”, e os que andavam esquecidos subitamente até pareciam ter pressa em ir buscá-lo ao exílio e à morte.

Para terminar, uma nota mais extensa sobre uma antologia que apareceu entre nós com toda a pinta de obra mercenária, com esse sentido de oportunidade do que visa conquistar um lugar debaixo do pinheiro de Natal e que, de resto, nem procurou disfarçar a ânsia de se vender muito e depressa. “Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos” (Companhia das Letras) é o género de edição que nos coloca perante um orgiástico acerto de condições que nos levam a sentir o quão embalados estamos num momento em que o juízo crítico parece suspenso, como se não houvesse futuro para isto. Um momento que, ou não se atribui a si mesmo qualquer crédito, ou então encara os presentes e os vindouros como uma chusma de pategos, incapazes de uma avaliação impiedosa por estarem imersos numa cultura de aberrações e excessos. Entre o trágico e o cómico, quando a confusão parece ter chegado ao ponto de ninguém conceber já onde o ridículo começa e acaba, há uns versos de David Mourão-Ferreira que apetece citar a este respeito: “de cabeças de Nada,/ do Nada se erguerá,/ gigantesca Medusa/ terrível Testemunha// para que em Julgamento o Nada que nós fomos/ de Nada nos acuse”.

Com um livro rendido, sob todos os aspectos, à lógica comercial – e fácil é perceber que não há outra para essa coisa impossível que é uma antologia dos “cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos” –, José Mário Silva vê culminar uma medíocre trajectória que passa por ser de crítico literário. E não contente com as manobras de gato por lebre, desta vez deixa todo o juízo crítico de lado para, sob aquele título, impingir uma lista de cem poetas (menos três, porque Fernando Pessoa “foi vários num só”) numa antologia que na própria contracapa já se assume como “arrojada”, “liberta e corajosa”. Não se percebe bem onde está o arrojo, a liberdade ou a coragem de fazer o que qualquer um estaria em condições de fazer se para aí estivesse virado, apresentando uma selecção que não define os seus critérios senão desculpando-se pelas suas limitações e insuficiências, e admitindo que não passa na verdade de uma escolha pessoal do antologiador em resposta à pergunta “Quais são, para si, os cem  melhores poemas portugueses dos últimos cem anos?”

Ora, a verdade é que nem isso. Reconhecendo que “uma antologia diz muito mais sobre quem selecciona do que sobre a matéria seleccionada”, o antologiador vem depois justificar a sua falsificação com a necessidade de fugir a equívocos quanto à representatividade entre o selecto elenco dos poetas que efectivamente terão escrito os melhores poemas dos últimos cem anos. Acontece que o antologiador preferiu ter do seu lado muita gente, e nivelar tudo, fingindo arriscar na zona do que de mais novo se tem publicado, mas eximindo-se de fixar uma visão realmente panorâmica não sendo possível discernir nesta recolha e organização qualquer linha de sustentação crítica, ou uma leitura própria, parcial e apaixonada. E, na boa tradição dos ilusionistas, surge brandindo um suposto “critério radical”, ao escolher um poema por cada poeta, o que não passa, afinal, de uma estratégia para agradar a mais gente. Aproveite-se para lembrar uma distinção que nos serve de farol no meio de tanta charlatanice: “a verdade artística significa não sermos dominados pela vontade de agradar” (Laura Morante). Assim, o simples facto de chamar antologiador a um mero arrumador de poemas tem o seu quê de vanglória injustificada.

Não vale a pena determo-nos aqui em miudezas. Para isso já Luís Miguel Queirós veio com o seu escalpelo mostrar as incoerências, fragilidades e gralhas, notando até que “a capa não faria má figura num prospecto da secção de frutas e legumes do Continente”. Mas não vai mais longe, e até a legitima. Além das diplomáticas três estrelas – isto para ninguém se chatear –, ajuda-a a atravessar a passadeira, dando-a como objecto digno de análise à lupa e faz-lhe o favor de não ver o que há nela de mais insinuante: o seu despudorado oportunismo comercial, a banalidade dos seus méritos, o vazio crítico de uma proposta que, dizendo recusar “cânones académicos e os espartilhos da notoriedade”, se auto-promove como “uma leitura incontida e luminosa do panorama poético português para fruir sem constrangimentos”, patati patatá. Sem constrangimentos!? No meio de tanto golpe publicitário é difícil perceber o que sobrevive a todos os constrangimentos com que esta antologia sufoca a poesia e, na verdade, o mais triste é dar-mo-nos conta de que toda uma geração se mostra tão dócil ao ponto de se deixar arregimentar nestes esquemas publicitários.

E uma vez que já não se consegue emitir um juízo sem se ser acusado de ressentimentos e outras motivações obscuras, recorra-se à autoridade de uma citação, para que assim a sentença óbvia se imponha contra aqueles que se tornaram especialistas em abater o mensageiro: “Ao contrário do que pensa uma grande parte dos intervenientes no nosso domínio cultural, talvez seja de acreditar que é mais importante para as novas gerações atravessarem o seu deserto, de preferência sob atenção crítica, do que verem-se rapidamente promovidas à dimensão dos estimáveis. Deveriam ser, portanto, inimigas de antologias, selectas escolares ou traduções programadas para os vários estrangeiros. Há tempo para todas essas coisas, caso ao tempo essas coisas venham a interessar. No entretanto, é mais útil o confronto consigo mesmo e com a tradição das escritas, a prática porfiada da recusa da repetição, o recolhimento no jardim de pedras onde a própria água se tenha de descobrir sem canalizações quaisquer. Entrar na feira das aulas, no panteão das recolhas, no mausoléu dos respeitáveis só concorre para travar o canto e para instilar a mais confusa das ligações aos mercados promocionais. Mais tarde, quando chegarem a morrer ou quando se tiverem tornado encanecidas criaturas, alguém se encarregará de os tornar bons para consumo” (Joaquim Manuel Magalhães, “Um Pouco da Morte”).