Montepio. A história de um banco social “é uma lengalenga”

Bagão Félix não tem dúvidas. A entrada da Santa Casa no capital do Montepio é contra os estatutos da instituição, é um investimento especulativo e a decisão é do governo

O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) gostaria que uma decisão sobre a possível entrada na Caixa Económica Montepio Geral (banco Montepio) fosse tomada até ao final do ano. Mas, a poucos dias desta data, são cada vez mais as dúvidas em relação à forma como este processo tem sido conduzido e mais audíveis as vozes críticas a este negócio. 

Uma das mais críticas é a de Bagão Félix, ex-ministro das Finanças, que se tem manifestado muito cético em relação a esta transação. Ao i, o antigo governante defende que a “SCML, estatutariamente, não pode considerar esta eventual transação, ainda por cima com montantes bastante elevados face aos seus recursos, como adequada”.

Segundo Bagão Félix, a instituição não existe para “pôr 200 milhões num banco. Existe para proteger os mais desfavorecidos da sociedade de Lisboa. Tudo o resto são lateralidades face ao estatuto”.

De acordo com o provedor da SCML, Edmundo Martinho, em entrevista ao “DN/TSF” no início do mês, “está a ser feito um processo de avaliação desta participação, que não pode ser vista apenas naquilo que é o valor nominal correspondente às ações, porque tem este valor estratégico da entrada e de reforço da economia social no setor financeiro, uma coisa que do nosso ponto de vista representa um objetivo importante”.

Um argumento que, apesar da estima e respeito que tem para com Eduardo Martinho, não colhe junto de Bagão Félix. Ao i, o economista aponta que a “SCML pode e deve rentabilizar os ativos” e dá como exemplo o vasto património imobiliário que detém. Mas “no caso da operação com um banco, ainda por cima numa posição francamente minoritária face a um outro sócio [a Associação Mutualista] com uma posição francamente maioritária, a questão que se coloca é se a SCML vai daí tirar alguns dividendos”. De imediato responde à própria pergunta: “Não creio”.

Depois, argumenta, “um valor tão alto retirado à liquidez da Santa Casa e substituído por ações num banco não é a mesma coisa que investir em imobiliário. Corre mais riscos. Entrar na lógica da compra de ações do banco não tem o rendimento nem a própria segurança que o ativo imobiliário tem”.

Para o ex-ministro das Finanças, a lógica segundo a qual a transação  pode influenciar a vida, a dinâmica e os negócios de um banco que ficaria agora vocacionado para a economia social “é uma lengalenga”.

“O que é um banco de economia social? Vai dar crédito mais barato? Foge das regras comerciais normais?”, pergunta, lembrando que os “estatutos do Montepio revelam que é claramente um banco comercial”. 

Ao i, o economista, que salienta estar a falar apenas no exercício da sua cidadania, aponta ainda um quarto aspeto para a sua relutância sobre a entrada da SCML no capital do Montepio, sem “colocar em causa o reforço de capitais que são positivos” para o banco.

Dinheiro público Na semana passada a Fitch reavaliou o ‘rating’ do Montepio, que apesar de ter subido continua no grau de risco altamente especulativo. 

“O Montepio está cinco graus abaixo do rating da República” e “estamos a falar de dinheiro público que vem do monopólio dos jogos sociais”, afirma Bagão Féix, que deixa uma nova pergunta: “Faz sentido a uma entidade parapública fazer um investimento tão avultado para uma posição claramente minoritária e em que o risco de especulação é elevado?”

Mesmo na administração da Santa Casa a operação tem sido muito criticada e na véspera de Natal o “Público” noticiava que há administradores sem certeza de como vão votar.

Defensor da entrada no capital do Montepio, Edmundo Martinho deverá contar com os votos favoráveis do vice-provedor da instituição, João Pedro Correia, e de dois vogais com ligação ao PS (Sérgio Cintra e Filipa Klut). 

Helena Lopes da Costa, ex-deputada do PSD, e Ricardo Alves Gomes, antigo adjunto de um governo PSD, ambos trazidos para a Santa Casa pelo antigo provedor, Santana Lopes, poderão achar a opção demasiado arriscada.

Na véspera tinha sido o “Expresso” a destacar o “papel decisivo” do ministro do Trabalho e da Segurança Social na aproximação da SCML ao Montepio.

De acordo com a notícia, Vieira da Silva manifestou junto de Santana Lopes, quando este ainda era provedor, a “intenção do governo” de que a instituição entrasse no capital do Montepio. Já este dezembro, depois de sair do cargo de provedor, Santana Lopes revelou que a Santa Casa recebeu um pedido do governo e do Banco de Portugal, para entrar no capital do Montepio. 

Sem pressão Vieira da Silva, por seu lado, desmente que tenha havido intervenção do governo. “Não fiz pressão sobre ninguém” e “o governo não fez pressão sobre ninguém”, garantiu na semana antes do Natal.

Para Bagão Félix, todo este desenrolar são histórias e remete mais uma vez para os estatutos, lembrando que é o “Ministério do Trabalho que tem a tutela da SCML e que é a esta que compete a definição das decisões gerais de gestão”. 

De acordo com o número 2 do Artigo 2.º dos Estatutos da SCML, a “tutela abrange, além dos poderes especialmente previstos nestes estatutos, a definição das orientações gerais de gestão, a fiscalização da atividade da Misericórdia de Lisboa e a sua coordenação com os organismos de Estado ou dele dependentes”.

Para Bagão Félix, “é evidente que é o governo quem decide um negócio de 200 milhões de euros”, uma vez que “se esta não é uma orientação geral de gestão, o que é?”

Ao i, o economista alerta que esta é uma “transação que está a passar entre os pingos da chuva”, que o governo não pode alegar que se está a “pôr de lado de uma decisão que é fundamental para o futuro da SCML” e que deveria haver uma maior “análise, reflexão e debate”  na sociedade sobre o tema.

Bagão Félix remata lembrando mais uma vez os estatutos, que definem as competências da instituição no âmbito da economia social. No artigo 23.º estão elencadas várias destas e a “transação do capital da SCML para o Montepio foge dos estatutos”, refere, argumentando ainda que esta “vai contra a matriz cristã dos estatutos da Misericórdia”.