Macau. Os dados estão lançados na nova Meca do jogo

Na antiga colónia pode-se visitar uma réplica da Torre Eiffel ou passear de gôndola num canal no interior do Casino Venetian. Com um crescimento de 27% ao ano, a presença portuguesa em Macau é cada vez mais ténue. Mas há um campo onde continua a fazer-se sentir:a gastronomia. Os restaurantes portugueses mantêm o seu prestígio…

Cercada, de um lado, por mais de quinhentos anos de História e convívio lusitano; e, do outro, pelo estatuto de Meca mundial do jogo – diz-se que o volume de jogo aqui é sete vezes superior ao de Las Vegas –, Macau é uma cidade de contrastes. A pujança económica não pára de se intensificar – só para este ano, analistas americanos preveem um crescimento perto dos 27%. Não admira, portanto, que num território onde turismo e cultura andam de mãos dadas, seja natural a aliança à indústria de cinema. Afinal de contas, Hong Kong, um tradicional potentado oriental nesse domínio, fica a dois passos.

Macau é também a cidade em que a grafia portuguesa convive com o mandarim, se bem que aquela se destine a um número cada vez menor de portugueses. Embora o português como língua oficial se mantenha até 2049, a língua de Camões perde força para quem anda pelas ruas – um alheamento mais acentuado desde a transferência em 1999. Ainda assim há vestígios dos intrépidos portugas, ou macaenses, que mantêm bem vivas as cores e os ícones nacionais. Sobretudo a comunidade de técnicos superiores e do staff da administração do território. E o chamamento dos outros países de língua oficial portuguesa acaba por colmatar essa falta de ‘portuguesismo’. Já na cotação da gastronomia, a cozinha tradicional lusitana continua bem viva e uma referência preferida por macaenses, mas também chineses, japoneses, coreanos, singapurenses, etc. A linguagem dos tachos é universal.

As atribulações de um português em Macau

A sensação de aterrar de paraquedas numa China onde quase tudo tem tradução em língua portuguesa pode assemelhar-se a algo próximo da experiência de Alice ao atravessar a fronteira imaginária do País das Maravilhas, embora numa versão totalmente ‘lost in translation’. O gigantismo dos edifícios modernistas, quase todos hotéis de cinco estrelas ou casinos cujo luxo desafia a imaginação, aliado a essa babel de signos, sons e ícones, como que prolonga um estado inebriante de ‘jet lag’, algures além do sonho exótico. Afinal de contas nada mais adequado a quem vem à procura de ficção num festival de cinema. Foi precisamente o convite para o 2º IFFAM, em português, Festival Internacional de Cinema e Entrega de Prémios Macau, que nos levou à descoberta das nossas raízes naquele lado do mundo.
Mas este não é o ‘Macao’ exótico que Joseph von Sternberg realizou em 1952 – aproxima-se talvez mais da versão multicultural de ‘A Última Vez Que Vi Macau’, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, de 2012. Algumas das principais vias têm nomes familiares:Avenida da Praia Grande, Rua de Macau, Praça Luís de Camões… Mas ficamos mais ‘em casa’ à medida que nos aproximamos das Ruínas de São Paulo, no bairro de recorte arquitetónico colonial. Mais difícil de encontrar é alguém que fale português. Talvez inglês, mas é raro também.

Em Macau a ficção dos filmes parece ter-se traduzido em delírio arquitetónico de casinos que apareceram como cogumelos de luxo, pagos com o peso da pataca e do dólar de Hong Kong, as moedas que convivem lado a lado em Macau. 

Quanto às tradições lusitanas, vão sobrevivendo sobretudo no campo da gastronomia, que nos permite continuar a conquistar povos por aquelas paragens. Que o diga o mestre Luís, o proprietário da Tasca do Luís, ou o Sr. António, o dono e senhor do reputado restaurante António, ex-líbris da qualidade e requinte da comida falada em português naquelas paragens. Cada um deles conserva e exibe os seus troféus: Luís tem em exposição o autógrafo do Cristiano Ronaldo à entrada e António as recomendações do guia Michelin.

Casinos e Studio City

No elevador do nosso hotel, mesmo ao lado do Casino Sands, somos interpelados por um indiano elegante e sorridente, de mala executiva e traje profissional, que nos interroga se somos jogadores. O jogo faz parte do quotidiano profissional e este homem faz o check out visivelmente satisfeito com os seus ganhos.

No entanto, não é difícil de perceber como o jogo é muito mais uma atividade popular dos high rollers que tratam os milhões por tu. E isso vê-se de imediato no permanente carrossel de shuttles que garantem um transporte gratuito e rápido entre os diversos hotéis e casinos, sobretudo na área da Península de Macau, onde está toda a parte mais antiga e monumental da cidade, como o histórico Casino Lisboa, mesmo ao lado do moderno Gran Casino Lisboa. Igualmente na recente agitação na ilha da Taipa, mais concretamente no Cotai Strip, crescem agora os mais modernos casinos do mundo, como Galaxy, com os seus 500.000 m2, o Parisian, com a sua réplica da Torre Eiffel, ou o Venetian, onde se desfruta de um passeio de gôndola num canal interior que corre no terceiro andar, com um majestoso mural de céu aberto pintado no teto.

Ali mesmo ao lado, sempre no Cotai Strip, ergue-se outro edifício majestoso, a Studio City, um imponente complexo de entretenimento que conjuga hotéis, salas de espetáculo, discoteca, parques de diversão, SPA, inúmeros restaurantes, lojas, bem como espaço de jogo, naturalmente. Por exemplo, num dos entretenimentos disponíveis podemos experienciar uma aventura de Batman em 4D, em que literalmente voamos numa cadeira como se estivéssemos dentro de um videojogo, na atração que ficou conhecida como ‘Batman Dark Flight’.

Entre o caldo verde do Luís…
Já do outro lado do Strip, mesmo em frente ao Galaxy, na Taipa Velha, sabíamos que iríamos encontrar diversas referências do portuguesismo em Macau. Para não fugir do tema, dir-se-ia a zona de casinos portugueses, mas o maior valor advém da qualidade na gastronomia. O ponto de honra parece ser a proveniência dos produtos tradicionais portugueses. Assim, entre as obrigatórias loiras Sagres ou Super Bock, ou a bela bifana, o rissol e outras iguarias comuns para o português, o asiático procura e encontra o que necessita para saciar o entusiasmo pela cozinha portuguesa. O mesmo se diga dos pratos mais requintados, embora sempre dentro da tradição. Nesse aspeto, o Restaurante António e as distinções Michelin, aliadas a diversos prémios, representa um pouco a alta cozinha naquelas paragens.

Apesar de levarmos uma recomendação para o famoso António, acabamos por improvisar e fazer um pit stop na Tasca do Luís, ali quase ao virar da esquina, no pequeno emaranhado de ruelas onde a presença portuguesa se faz notar em inúmeros restaurantes, muitos deles, porta com porta. Desde uma filial da Portugália, passando por outros, quase sempre devidamente personalizados, como o Manel, o Santos, o Lopes, ou o António, que também visitámos.

Nesta romaria principiamos por nos sentar com o Sr. Luís em frente da sua Tasca, que logo nos chamou a atenção por exibir à entrada uma fotografia do Cristiano Ronaldo devidamente autografada. Procurámos apurar como vê um macaense as recentes alterações do território e de que forma encara a sua ligação a Portugal. E ficámos a saber que, apesar dos santos da casa – que podem muito bem ser Cristiano Ronaldo, Figo ou Rui Costa, todos eles muito apreciados na Ásia –, face à distância o país de origem vai perdendo força diante a influência chinesa, tailandesa e do Oriente em geral.

Filho de pai transmontano, de S. João da Pesqueira, e mãe de Macau, Luís nasceu ali mesmo na Taipa, e foi para Portugal em 66 (ou 67, já não se recorda ao certo), regressando ao Oriente em 77. Enquanto sorvemos uma malga de caldo verde em seu azeite e beberricamos uma Sagres, vamos sabendo que foi jogador do Sporting de Braga e que se sente em casa, em Macau, onde vive há quase 60 anos. Confessa-se também mais próximo da cultura tailandesa, fruto da ligação com a sua quarta mulher – «sou meio bandido», diz sorridente – uma tailandesa que o faz agora aderir a uma cozinha de fusão na loja anexo da tasca.

Mas agora diz: «Sou franco. Quanto menos portugueses, melhor». Mas não se refere propriamente aos turistas, que são sempre bem-vindos. Luís refere-se aos tugas locais. E por uma questão muito simples. «O chinês come, bebe, ficou cheio, paga e vai-se embora. O português come, reclama, bebe, reclama e depois pede um café e fica horas. Uma pessoa quer fechar a casa e não pode. Mas nem todos são assim, ontem tive um grupo de portugueses radicados cá e foram impecáveis». Mas os radicados em Macau geralmente são os piores. Turistas também há, mas são muito poucos.

Ao reviver o passado, recorda os tempos em que «só parava nos nightclubs e discotecas, para os copos, isto muito antes de 1999, mas depois também. Embora na altura da transferência tenham ocorrido muitos problemas com as seitas, houve muitas mortes aqui em Macau», avisa. Seitas não só de Hong Kong ou Macau, mas também de Singapura, Malásia, Japão Coreia. «Agora está tudo muito mais calmo, por uma razão muito simples: eles querem é ganhar dinheiro». Até porque, confirma o nosso anfitrião, «o controlo da Polícia Judiciária é muito forte».

O sportinguista que jogou pelo Sporting de Braga, na época de 75-76, conforme o cartão de jogador exposto na sala de jantar, vai avisando que já não mantém uma relação muito afetiva com Portugal. «Não tenho mais nada em Portugal. Macau é a minha terra, nasci aqui. Gosto muito de Macau. Quando houver hipótese entrego a Tasca ao meu filho e vou para a Tailândia».

Mas quem tomar conta da Tasca terá de manter a qualidade do bacalhau, que aqui é confecionado das mais diferentes formas:Bacalhau com Repolho, Bacalhau à Tasca, Bacalhau à Tasca, Caras de Bacalhau. «Aqui não há falta de bacalhau», garante. «Temos azeite, bacalhau, sardinhas, chouriço, presunto». Ingredientes que chegam em quantidade através dos importadores. «O que é preciso é haver dinheiro para comprar».

… e as recomendações Michelin do António

A fama da gastronomia portuguesa em Macau precede o chef António Coelho. Se a Tasca do Luís é a pureza popular, o António é a quintessência da tradição e do requinte à mesa. Assim é desde 2008, quando ali se instalou. Ao fim e ao cabo duas vertentes de encarar a arte de bem comer em toda a mesa portuguesa.

«A descoberta de um novo prato contribui mais para a felicidade do género humano do que a descoberta de uma nova estrela!», declara o chef a quem visita o seu website. Uma das particularidades de António é o seu «culto da personalidade», como refere o cozinheiro Pedro do Carmo, que trocou os ares de Portugal e se estabeleceu em Macau com a família e na Rua dos Clérigos para confecionar novas iguarias. Trocou o curso de Filosofia pela culinária e hoje é o head chef do António.

Entretanto a nossa conversa acaba por ser interrompida quando a diligente e simpática Marcy, esposa de António, ausente de férias, aparece para dar indicações precisas ao cozinheiro para um grupo de convivas esperado para jantar. Percebe-se a atenção antecipada para que tudo funcione na perfeição. Ao mesmo tempo, vai-nos confidenciando que o ‘segredo’ do sucesso contínuo do restaurante se fica a dever à «manutenção da comida tradicional de autêntico estilo português». E que, para ter uma estrela Michelin, «provavelmente teria de ter um espaço maior». Mas vai avisando: «Acho que pela comida estaria à altura da estrela».

Depois, há o ambiente também. O fado é presença regular naquelas salas. 

Para passarmos da teoria à prática, Pedro traz umas ameijoas à Bulhão Pato acompanhadas por um refrescante vinho Cabriz branco. E uma água, igualmente importada de Portugal, para limpar os sabores.

* O jornalista viajou a convite do Festival Internacional de Cinema e Entrega de Prémios Macau