2 de Janeiro de 1970. Por detrás da flanela colorida havia um sonho de bola redondinha…

Chico Buarque respeitou a sua indumentária intelectual com a roupa que vestiu no Casino do Estoril, num espectáculo de passagem do ano. Esteve-se nas tintas para o cinzentismo!

Lisboa. O ano a começar. Ou melhor, a década a começar.

Fervia a cidade de espectáculos!

E de gripe! Mas para essa havia um remédio santo: Argotone.

O Cantinflas no Eden: D. Quixote Sem Mancha.

Teatro Villaret: Raul Solnado e o Vison Voador. “Uma comédia sexacional!”

No São Jorge: 007 Ao Serviço de Sua Majestade, com o inédito George Lazenby a fazer de James Bond.

No Maria Vitória: Esperteza Saloia, com José Viana e Dora Leal.

Pior para Vasco Morgado, que perdida a estrela que brilhava, fazia sair de cena Os Elefantes Não Sentem as Pulgas por falta de espectadores.

Depois havia o Casino do Estoril: Chico Buarque.

“Não diga nada que me viu chorando…”, cantava.

Samba de Orly.

Poucos artistas gostarão tanto de futebol como o Chico. Chico Buarque de Holanda, por extenso.

“Coerente com as suas canções, apresentou-se assim durante a sua actuação de fim de ano no espectáculo do Casino do Estoril: de calça de flanela de xadrez, camisola de gola alta e botas claras de camurça”.

A malta, na plateia, de roupa escura e solene de um Portugal que já não há.

Portugal a preto e branco.

O Chico, um tudo nada nas tintas. Tintas que para ele eram a cores, mesmo no seu tempo de exílio: “Bom ano para todos vocês e tudo o mais!”

Depois cantava: “Aqui na terra ‘tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.

Era o país triste no tempo do regime bacoco.

Agora, recentemente, também cantou: “Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos e de joelhos vou-te seguir”. E, então, a coisa ficou preta para ele. Foi de machista para cima.

Não sei se alguém reclamou algo idêntico quando ele compôs: “As jovens viúvas marcadas/E as gestantes abandonadas/Não fazem cenas/Vestem-se de negro, se encolhem/Se conformam e se recolhem/Às suas novenas, serenas”.

Também não sei se a mulher com filhos largada pelo homem que seguiu a amante de joelhos se conformou e se encolheu. É questão de lhe perguntarem. Isto é, se verdadeiramente alguém a conhece ou se ela existe. Existe certamente. Existem tantas!

O Chico nunca foi de se encolher.

Cinzento. “O tudo mais revela o que foram as suas baladas suaves de belos poemas”, escrevia-se em jornais visados pela censura, com direito a carimbo e tudo. “Mensagens de esperança que se casavam perfeitamente com os desejos de prosperidade tão próprios desta época”.

Prosa bisonha de um jornalismo sem chama.

Ou com medo de se queimar.

Chico tinha pressa.

No ano anterior, o mestre da vaga geometria tinha estado na Luz, tirando fotos com Eusébio e com Coluna.

Queria voltar lá. Ver os seus amigos das canções com uma bola dentro.

Vestir a camisola do Benfica e ameaçar uma pelada. Ainda não tinha trauteado – “Se eu fosse o Rei/Para tirar efeito igual/Ao jogador/Qual/Compositor/Para aplicar uma firula exata/Que pintor…”, dedicado a Pagão, seu ídolo de menino.

Chico Buarque de Holanda tinha 25 anos. Vivia longe de casa sem poder voltar. Para lá da imaginação jogava a tabelinha infinita: “Para Mané para Didi para Mané Mané para Didi para Mané para Didi para Pagão para Pelé…”.