6 minutos mais 5.251 carateres

A mensagem de Marcelo na TV foi uma conversa em família, uma no cravo e outra na ferradura. A carta à AR foi só a malhar nos partidos e na falta de transparência

Marcelo Rebelo de Sousa leva dois anos como Presidente eleito e um mandato até aqui com aprovação com louvor e distinção, ou sem bolas pretas, na linguagem da praxis académica. Na avaliação do Professor, dir-se-ia mesmo com desempenho notável e nota máxima, não fosse dar-se o caso de o mesmo, enquanto comentador, ter por hábito desfazer no consequente argumentário quem lhe merecesse primeiro tamanho elogio.

Na verdade, tirando algumas falhas naturais em quem ainda se adaptava ao novo fato, Marcelo traçou o seu caminho e estilo próprios para o exercício do mandato presidencial, guiado pelo bom senso e pelo bom princípio do velho direito romano do bonus pater familiae. De que o povo gosta. E ainda bem.

Foi esse o estilo da breve declaração ao país, de seis minutos, na tradicional mensagem de Ano Novo.

Uma mensagem de tranquilidade, de estabilidade, de elogio do desempenho governativo ao nível orçamental e económico, mas também de responsabilidade e de solidariedade para com as vítimas das tragédias dos incêndios de junho e de outubro. Ou seja, e em suma, elogiou o que há para elogiar e criticou as falhas, graves, que o Estado obrigatoriamente tem de corrigir. Isto é, deu uma no cravo e outra na ferradura.

Reservou, porém e bem também ao seu estilo próprio, para o dia seguinte uma outra e crítica mensagem, esta à Assembleia da República, acompanhando a devolução (veto) das alterações à lei do financiamento dos partidos e, nesta sim, só a malhar na falta de publicidade e transparência do legislador. Em 5.251 carateres (incluindo espaços e salamaleques protocolares), Marcelo arrasou a lei aprovada por PSD, PS, BE, PCP e PEV que prevê o fim dos limites aos donativos privados aos partidos e o alargamento da isenção de IVA de que estes já gozam.

Marcelo, constitucionalista, é, talvez por isso, o Presidente da II República que menos recorre – ou melhor, não recorre – ao Tribunal Constitucional para justificar, reforçar ou alijar responsabilidades nas decisões que toma sobre as leis que lhe cumpre promulgar ou vetar.

Se tempos houve, no passado mais recente como no mais longínquo, em que o Tribunal Constitucional – como o Tribunal de Contas ou até a Procuradoria Geral da República – foi politicamente atacado como ‘força de bloqueio’, com Marcelo dificilmente sucederá.

Censurando o processo legislativo, Marcelo não deixou de dizer que a lei tem virtudes – em matéria de resolução dos problemas de fiscalização pela Entidade das Contas e pelo Tribunal Constitucional – mas tem também defeitos que têm de ser expurgados. O primeiro dos quais a ausência de debate e publicidade em torno das soluções adotadas em matéria do próprio regime de financiamento dos partidos.

E também não deixou de afirmar que não concorda com «a solução consagrada» (sistema misto público e privado em que se incrementam as receitas pelas duas vias – retirando os limites aos donativos privados e aumentando a subvenção pública por meio do alargamento da isenção de IVA).

Sublinha, porém, que, independentemente da sua posição pessoal, o Parlamento deve e tem de reapreciar as alterações legislativas promovendo debate público e cada partido assumindo e argumentando em favor das soluções que preconiza.

Quem de bom senso dirá que é quase básica e de elementar bom senso a mensagem ou lição de Marcelo.

E é. O problema é que é necessária.

E esse é que é o busílis do estado da nossa democracia e do nosso Estado: a falta generalizada de sensatez e do velho padrão do bonus pater familiae. 

Por isso, valha-nos Marcelo.