Guida Maria. Atriz de todas as mulheres

Em 1973, num filme de António de Macedo, foi a primeira atriz a aparecer despida num filme português. Na viragem do milénio, foi ela própria a Nova Iorque comprar os direitos de Os Monólogos da Vagina, de Eve Ensler. O espetáculo que marcaria de forma definitiva uma carreira que se fez quase tão longa como…

Descontraia… Descontraia a vagina… Descontraia a vagina? Mas a minha vagina não é burra, sabe muito bem o que a espera, e não se vai descontrair para que eles possam enviar aqueles horríveis instrumentos gelados por ela acima. Nem pensar! Exames vaginais… é mais uma execução vaginal do que um exame. Mas por que é que não me envolvem num delicioso manto de veludo, não me deitam numa colcha de algodão macia, calçam umas simpáticas luvas cor-de-rosa, ou azuis, e colocam os meus pés nuns estribos forrados de pele. Aqueçam os instrumentos, por amor de Deus, e depois façam lá o que têm a fazer na minha vagina. Deixem-se de torturas.» Descrição de uma ida ao ginecologista por Guida Maria, que na viragem do milénio estreava no Casino Estoril Os Monólogos da Vagina, de Eve Ensler. Texto que a própria foi buscar a Nova Iorque e mandou traduzir para português, para levar à cena num espetáculo com encenação de Celso Cleto, no Casino Estoril. Era o ano de 2000, viragem de milénio, e Guida Maria fazia o monólogo que marcaria definitivamente uma carreira que levava já mais de 40 anos. 

Numa entrevista que deu a Ana Sousa Dias no programa Por Outro Lado, da RTP2, quando a peça estava ainda em cena, já a atriz falava numa «vitória para o teatro». Os Monólogos da Vagina, texto cujos direitos ela e Celso Cleto compraram com as suas economias, foi visto, só no Casino Estoril, por perto de 20 mil pessoas. Chegaria depois a outros lugares, e Guida Maria voltaria a ele, por duas vezes. A primeira em 2002, no Teatro Villaret; uma outra em 2009, mas já não sozinha, no Casino Lisboa, em 2009, dividindo o palco – e o texto – com outras duas atrizes – Ana Brito e Cunha e São José Correia. Este modelo seguiu-o várias vezes nos últimos anos da sua carreira. Conta ao b,i.. António Pires, amigo da família e encenador que dirigiu três espetáculos da atriz, que depois da extinção da Companhia Residente do Teatro Nacional D. Maria II, em 1998 e onde Guida Maria trabalhou por 20 anos, passou a ser esse o seu método. «Começou a fazer as coisas dela. Eram espetáculos próprios, com produção dela, textos que ela tinha vontade de fazer. Era uma pessoa muito independente, muito forte, com muitas convicções, e que tinha coisas que queria dizer. Muitos desses textos tinham personagens femininas muito fortes, muito afirmativas.» Como Guida Maria, de resto.

Assim trabalhou o encenador com a atriz em Andy e Melissa (2001), Zelda (2004), a prolífica mulher de F. Scott Fitzgerald – escritora, pintora e bailarina – e ainda, já em 2006, Stôra Margarida.

Essa força feminina – feminista – recordava esta semana, com a notícia dá morte da atriz, aos 67 anos, vítima de um cancro no pâncreas, Marcelo Rebelo de Sousa, destacando a forma como o sucesso de Os Monólogos da Vagina contribuíram para «a afirmação política da feminilidade que fazia jus à personalidade de Guida Maria». Já a memória que melhor dela guardava o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, era mais antiga, dos primeiros anos da carreira da atriz, filha do ator Luís Cerqueira, que começou aos 7 anos, com Fogo de Vista, de Ramada Curto. «A primeira vez que fui ao teatro na minha vida foi para ver O Milagre de Ann Sullivan, com Guida Maria no papel de Helen Keller, foi no Teatro García de Resende, em Évora», escreveu o ministro no Facebook numa nota em que acrescentava: «Ela tinha a mesma idade que eu: nessa altura 11, 12 anos? Achei-a lindíssima, admirei alguém da minha idade a ousar atuar num palco e foi a minha primeira emoção com o teatro, confundida desde o início com aquela linda menina cega a acordar para o mundo. Tão bonita… Nunca mais a encontrei. Agora não voltarei a encontrá-la.» Era com esta peça com encenação (e tradução) de Luís de Sttau Monteiro que em 1962 Guida Maria chamava pela primeira vez a atenção da crítica. Tinha apenas 13 anos e o papel era o de uma menina cega, surda e muda. Papel para o qual estavam à procura de um rapaz que não encontravam, contava a própria, e para o qual o seu pai acabou por a levar. 

Foi o primeiro de dezenas e dezenas de espetáculos da atriz que cresceu na Parede e para quem tudo começou cedo. Ser mãe, por exemplo. Em 1967, tinha o seu primeiro filho, aos 17 anos. Numa entrevista à revista Sábado, contava como conseguiu, contra a vontade do pai, levar a gravidez até ao fim, depois de ter deixado uma carta com uma amiga. «Quando o meu pai anunciou que íamos a Lisboa [para abortar], disse-lhe: ‘Se eu morrer, há uma carta que segue para a polícia’.» E assim teve o seu primeiro filho, Pedro, a quem, na mesma entrevista, conta ter ensinado antes de qualquer outra – até de «mãe» – a palavra «puta», para que assim respondesse às senhoras que lhe lançavam olhares reprovadores quando o passeava de carrinho. «Estamos a falar de 1967, dark ages, não foi fácil», recordava em 2000 a Ana Sousa Dias. Mas, como diz o povo, tudo se cria. «Hoje parece que é vulgar, no meu tempo é que era uma coisa horrível, era uma desavergonhada.» A atriz Julie Sargeant, sua segunda filha, nasceria em 1970, em Londres, onde chegou a viver com o músico Mike Sergeant, com quem se casou. 

Do teatro nacional a cannes… e à TV

No teatro, onde começou, o percurso de Guida Maria seria longo, mas em paralelo com outros. Ainda na década de 1970 e, só com António de Macedo, fez vários filmes. Primeiro A Promessa, em 1973, adaptação da peça de Bernardo Santareno em que protagonizou a primeira cena de nu integral do cinema português. Filme estreado na seleção oficial do Fesitval de Cinema de Cannes, a competir pela Palma de Ouro. Depois desse, O Princípio da Sabedoria (1975), A Bicha de Sete Cabeças (1978), Os Emissários de Khalom (1988). Papéis em filmes foram-se multiplicando por essas décadas, como os realizadores: Lauro António, em O Vestido Cor de Fogo, Rosa Coutinho Cabral, em Serenidade, e, já em 1992, João Botelho, em No Dia dos Meus Anos. Enquanto isso, continuava a trabalhar como atriz na companhia residente do Teatro Nacional D. Maria II – com uma pausa, em 1980, para voltar a estudar, dessa vez na American Academy of Dramatic Art, em Nova Iorque, graças a uma bolsa.

Período em que foi trabalhando no que foi preciso para pagar as contas. De uma galeria de arte a uma loja de chineses, e mais, segundo contou na mesma entrevista à Sábado: «Fui mulher-a-dias de um judeu que me fez a vida negra. Um dia chateei-me e esvaziei-lhe a cama de água. Deixei-lhe uma nota a dizer: ‘Agora faça-a você.’ Ele devia ter umas grandes festas no quarto. Tinha um espelho no teto e uma máquina de filmar apontada à cama.» Nesses 20 anos de D. Maria, couberam textos como Auto da Geração Humana, O Alfageme de Santarém, As Alegres Comadres de Windsor, A Bisbilhoteira, A Casa de Bernarda Alba, Romance de Lobos ou Bodas de Fígaro, e muitos outros. E nesta longa carreira caberia ainda a televisão, onde se estreou em 1981 com Uma Cidade Como a Nossa – e quanta televisão. Quem Manda Sou Eu (1990), Nico D’Obra (1993), Na Paz dos Anjos (1994), Nós os Ricos (1996), Filhos do Vento (1996), Esquadra de Polícia (1998), Guida Maria esteve em todos. Também nas telenovelas. Foi aliás na participação que fez em 11 episódios de uma telenovela da TVI – A Única Mulher – que a vimos no seu último papel televisivo.