O ‘amplo consenso’…

Ficou provado que esquerda e direita se unem quando se trata do reforço dos cofres dos partidos

Ao traçar um risco ao meio no ano findo, Marcelo Rebelo de Sousa valorizou, como lhe competia, a primeira metade do ano em andamento positivo (nas finanças, no futebol, na Eurovisão, no turismo), em contraponto à deprimente segunda metade (incêndios florestais e vidas ceifadas, ‘perplexidades’ de Tancos, o Funchal e a seca). Pediu a «reinvenção da confiança dos portugueses na sua segurança», perante um Estado que falhou em 2017 nos momentos críticos.
Faltou à mensagem presidencial de Ano Novo propor a ‘reinvenção’ do sistema partidário, que bem precisado anda.  

Ao percorrer incansavelmente o país, partilhando tanto as euforias como as desgraças, Marcelo afirmou-se como um dos mais interventivos presidentes no histórico da democracia portuguesa.

Há quem o veja, por isso, talhado para agir como um Presidente-Rei, ou, simplesmente, com feitio e condições para dar o passo no sentido de uma presidencialização do regime.    

O pior, em tal cenário, seria sempre o pós-Marcelo, no deserto de valores que circulam por aí.

O sistema partidário envelheceu e enfeudou-se. O Estado engordou e, quanto mais obeso, mais voraz se mostra.  O eleitor, consultado periodicamente, funciona como fonte de legitimação e de lubrificante para se alcançar o patamar do poder. Depois, fica esquecido até à consulta seguinte.

O quadro partidário estagnou. Foram raras as experiências que romperam o statu quo. O PRD, nascido a partir de Belém, em meados dos anos 80, sob a égide do general Eanes, apresentou-se como uma novidade, no discurso e no estilo, para «moralizar a vida política nacional». Mas foi ‘sol de pouca dura’ e cedo soçobrou, enveredando pelas receitas convencionais que ditaram o seu fim.   

Numa paisagem política imobilista e conservadora, como se perfilam, neste começo de ano, os partidos com assento parlamentar? 

O PSD deixou que amarrassem Passos Coelho ao pelourinho da austeridade, sem um esforço para o convencer a ficar quando decidiu ‘bater com a porta’.  Os dois candidatos que oficializaram a disputa da herança só podem agradar a António Costa, tranquilo com ambos. 

O PS continua em ‘falência técnica’, com um passivo que ultrapassa os ativos em registo de banda larga. Chegou depauperado à ‘geringonça’, e, desde então, tem procurado reequilibrar as finanças promovendo uma ‘dieta’ interna e negociando o passivo com a banca.

O PCP, apesar de ser hoje uma curiosidade arqueológica no contexto da Europa da União, respira saúde financeira, graças ao elevado património de que dispõe e aos contributos da Festa do Avante! e dos militantes.  Afastado o susto da troika e do Governo «neoliberal», recuperou via CGTP o controlo das principais estruturas sindicais, sobretudo na administração pública e transportes, que é o que mais importa.  A Autoeuropa era uma ambição antiga, que lhe caiu também no regaço. 

O Bloco de Esquerda contestatário esgotou-se na oposição à coligação PSD-CDS e procura, desesperadamente, um lugar no Governo, como ‘tábua de salvação’ para evitar uma nova fragmentação, que lhe poderia ser fatal. Sonha com um PS sem maioria que o eleja como parceiro preferencial. 

O CDS já foi uma firma unipessoal de Paulo Portas e hoje ainda não interiorizou totalmente Assunção Cristas, embora esta se tenha revelado muito mais aguerrida do que parecia.  

Quanto ao PEV e ao PAN, procuram fazer ‘prova de vida’ mas não passam de berloques que enfeitam o hemiciclo.

Neste contexto, o que espantou não foi o veto presidencial à lei do financiamento dos partidos, saída de uma espécie de ‘consistório’ às escondidas.    

O que espantou verdadeiramente, nas despedidas do ano foi o «amplo consenso» invocado por António Costa para justificar o entendimento interpartidário para se livrarem de aflições financeiras. 

Na realidade, quase todos vivem acima das suas posses, com relevo para o PS, cujo passivo em 2016 era superior a 20 milhões de euros. 

Com exceção do CDS – que, embora em dificuldades, se distanciou do documento – e do solitário PAN, que se pôs de fora, os demais partidos do espetro  parlamentar não se isentaram de legislar, à sorrelfa, em benefício próprio.

Ficou, assim, provado que esquerda e direita se unem quando se trata do reforço dos cofres dos partidos ou de arranjar sinecuras para os fieis, na CML ou na órbita do Estado.  

Bem se sabe que a democracia não se faz sem partidos e que custa caro. Mas não se encubram mordomias e privilégios que ficam mal e afastam os melhores da coisa pública.

O Presidente passou ao lado do arranjo que ditou a lei do financiamento partidário. Ainda lembrou ao primeiro ministro e aos   subscritores do diploma que poderiam ‘emendar a mão’. Não quiseram. O veto era inevitável. Seguramente, com ‘amplo consenso’…