Síndrome de Noé. Quando abrir a porta de casa aos animais não é suficiente

Dão abrigo a dezenas, às vezes centenas de animais, em condições que deixam muito a desejar. “Há muitas situações destas escondidas em Lisboa”, alerta Casa dos Animais

“A maior parte das pessoas não tem noção  de que isto existe, sabem que existem os ‘maluquinhos dos cães ou dos gatos’, mas não mais do que isso”, diz Rita von Bonhorst, médica veterinária no Hospital Veterinário do Arco do Cego. De tempos a tempos vêm a lume casos de pessoas que acumulam dezenas de animais em pequenos espaços ao ar livre ou em apartamentos e vivendas nas grandes cidades. É disto que fala Rita von Bonhorst e o fenómeno tem um nome: síndrome de Noé. É pouco conhecido, mas começa a merecer a preocupação de quem trabalha com animais. 
Na sexta-feira foi aprovada no parlamento uma recomendação do PAN para que seja criado um grupo de trabalho para elaborar um plano de resposta para estes casos, que podem tornar-se problemas de saúde pública. Como tudo começa? “Este tipo de pessoas estreia-se com um ou dois animais e depois começa a apanhar animais na rua sem controlo”, explica a veterinária Rita von Bonhorst. Estas pessoas pensam que “estão a ajudar todos os animais, mas na realidade “não lhes estão a dar as condições” necessárias para terem qualidade de vida. “São pessoas que não conseguem parar e que querem adotar mais e mais animais”, resume. 

A opinião é partilhada por Vera Ramalho, membro do Conselho Regional Norte da Ordem dos Médicos Veterinários, mas que acrescenta que “não é um problema só dos canis e dos veterinários”, mas também de psicólogos e de assistentes sociais, já que se trata de um distúrbio do foro mental que requer tratamento. 

Para Vera Ramalho, o fenómeno tem estado a aumentar em Portugal, pois os veterinários têm tido conhecimento de mais casos. Já Marta Videira, diretora técnica da Casa dos Animais de Lisboa, diz não ter dados suficientes para atestar um aumento, mas garante também que, em Lisboa, a sua instituição tem “vindo a lidar com muitos mais casos de acumulação de animais”. 

Um problema escondido “Há muitas situações destas escondidas em Lisboa”, sublinha Marta Videira. Alguns casos acabam por chegar a público, mas ninguém sabe quantos estarão por conhecer. 

Em novembro de 2017, a PSP deparou–se com 29 cães “fechados num espaço exíguo, no interior de um pequeno apartamento” em Campolide, Lisboa. Os animais e a senhora, que vivia sozinha na casa, coabitavam num espaço descrito pelos polícias como uma mistura de excremento, urina e lixo. Marta Videira, que já fez algumas intervenções em casos similares, assinala que a “acumulação de animais e de lixo encontram–se relacionados”, exceto, na grande maioria, no caso de acumulação de gatos. 

Outro caso foi descoberto em abril do ano passado na Moita, Setúbal. Uma mulher vivia com 69 animais – 43 cães, 25 gatos e um gaio-comum – num ambiente com falta de condições e maus-tratos. O Núcleo de Proteção Ambiental de Setúbal resgatou os animais e permitiu que a dona ficasse com seis cães, o número máximo definido pela lei. Entretanto, os animais foram disponibilizados para adoção, estando temporariamente à guarda do Centro de Recolha Oficial do Barreiro e da Moita. 

Vera Ramalho explica o procedimento. “Vamos ao local e verificamos se há excesso de animais. Fazemos uma visita conjunta com um delegado de saúde e elabora-se um auto.” Numa primeira fase, a pessoa é notificada para retirar os animais até ficar com o número previsto na legislação. Entretanto, se a pessoa não aceitar proceder ao exigido, “entra-se pela via jurídica” ao pedir–se “ao tribunal um mandado para entrada e retirada compulsiva dos animais”, esclarece a veterinária. 

Estas operações de resgate contam não poucas vezes com a participação de associações, que acolhem os animais resgatados, apesar de às vezes não terem espaço. “Para nós, em termos de canil, é sempre pior a entrada de cães por ser muito mais difícil alojar cães do que gatos”, diz a diretora técnica da Casa dos Animais de Lisboa. “A maior parte dos animais vêm sempre com muitos problemas de saúde”, complementa. Entre estes, encontram-se desde logo os problemas dermatológicos, a desidratação, a desnutrição, a infestação parasitária, mas também distúrbios comportamentais, em consequência dos locais confinados onde os animais são mantidos. 

Foi com base nestas situações e na sua divulgação – e da necessidade de resposta sentida no terreno – que o PAN avançou com um projeto de resolução no parlamento, levando a discussão da síndrome de Noé para a agenda política. Para o partido, o grupo de trabalho deverá envolver profissionais de saúde animal, psicólogos e assistentes sociais.

Lixo e animais A síndrome de Noé é considerada uma variante da síndrome de Diógenes, uma perturbação psiquiátrica que leva os indivíduos a acumularem lixo e objetos inúteis indiscriminadamente. A síndrome de Noé cinge–se à acumulação de animais, apesar de, em alguns casos, principalmente no caso de cães, o mesmo indivíduo também poder acumular lixo.  

“Normalmente são pessoas de meia- -idade cujos filhos já saíram de casa e que começam a sentir algum isolamento social”, descreve Rita von Bonhorst. “Acabam por transferir o afeto para os animais, mas em exagero.” Opinião diferente tem Ramalho, que considera que “são pessoas que não gostam de animais, apenas sofrem de uma patologia”. Já Videira considera que são pessoas “nitidamente com problemas” e, referindo-se a um caso, afirmou que “é uma pessoa que não via mal em ter cento e tal gatos num apartamento – apesar de todos estarem bem alimentados”. 

João Gama Marques, psiquiatra do Hospital Júlio de Matos, ajuda a perceber o comportamento do ponto de vista clínico: já foi observado em “doentes com perturbação obsessivo-compulsiva, demência, autismo, esquizofrenia, alcoolismo”. Contudo, o psiquiatra considera que este distúrbio pode desenvolver-se em conjunto com qualquer “outra doença que afete o encéfalo”. 

Apesar do diagnóstico psiquiátrico, não é de menosprezar a vertente social desta doença, nomeadamente o isolamento e a exclusão sociais, observados em variados casos.

O psiquiatra tem dúvidas de que o número de casos esteja a aumentar. Para João Gama Marques, é o facto de se falar mais do problema que leva a sociedade a estar mais atenta e sensível para a deteção destes casos.