José Manuel dos Santos. “Como PR, Marcelo quer ser o Soares da direita”

Uma conversa sobre a vida de Mário Soares, o seu exemplo e legado, e as comparações que nos ajudam a ler o presente 

Um ano depois da morte de Soares, a História mal teve tempo de aclarar a voz, de secar as lágrimas de um lado ou, do outro, baixar as armas, mas a partir de domingo um tributo e uma exposição, no Cemitério dos Prazeres, será uma boa forma de olharmos de volta sobre os dias em que o país se despediu da figura central da sua jovem democracia. “A Cerimónia do Adeus” recorre a uma selecção de entre as fotografias que foram publicadas pela imprensa, e traz-nos um retrato do primeiro Funeral de Estado da Democracia. José Manuel dos Santos, o amigo íntimo e antigo assessor, foi uma vez mais o homem de confiança da família, e foi com ele que fomos falar sobre a vida e a morte embrulhada nas velhas polémicas.

A morte de Mário Soares, em linha com a vida que viveu, foi ainda um momento de debate, de discussão, de contradições. O que lhe pareceu a polémica que gerou, o ter sido uma morte combativa?

Era o Stendhal que dizia que um grande homem só o é se, passado 100 anos, tiver ainda a sorte de ter inimigos. Passado 100 anos ainda há quem diga mal dele. O próprio Soares contava uma história engraçada que ouviu de alguém da tertúlia dele, certamente literária, e que dizia de um outro escritor: esse tipo é tão desgraçado que nem tem ninguém que diga mal dele ali nos cafés do Rossio. Portanto, o Soares, que adorava que gostassem dele, e que fazia o que podia por isso, nunca deixou de dizer o que pensava, ou de fazer o que achava necessário por causa disso. Assim, é natural que a sua figura causasse divisões. Era uma personalidade muito afirmativa. Teve várias vezes o destino do país nas mãos e a sua grande preocupação foi a liberdade. E num país que não é assim tão afeiçoado à liberdade quanto isso, naturalmente dividiu as pessoas. Ele sabia que a política se faz com amigos e com adversários, se faz com ideias, a favor de coisas e contra outras coisas… E, portanto, o que ele mais detestava era essa espécie de Papa, figuras que buscam o consenso, mole e universal. Sendo que, quando era importante, ele também gostava de criar alianças e promover o consenso. Mas sabia que há momentos em que tem de se dividir, clarificar e separar as águas, e há momentos em que depois é preciso unir o que se dividiu. Esse foi sempre o jogo dele na política.

No momento da morte de Soares, não caiu bem a algumas pessoas, mesmo dentro do PS, que António Costa não tenha interrompido a visita à Índia para estar presente nas cerimónias fúnebres.

Falei disso logo na altura, tendo dito que me parecia que o Soares teria feito o mesmo. E há antecedentes. Quando o João Soares teve aquele acidente [aéreo] brutal, soube-se de madrugada, e ele iniciava nessa manhã uma visita de Estado e manteve-a, tendo ido a mulher à África do Sul, que o manteve informado… Quando foi possível foi para lá, mas não deixou de cumprir com o que sentiu que era o seu dever. Para além disso, morreu também um grande amigo dele, o [François] Mitterrand, quando ele estava em Angola. Ele enviou em seu nome a filha, e não foi a correr, sendo que tinha com o Mitterrand uma relação muito próxima. São estes os precedentes que conheço e testemunhei e que me permitem dizer o que disse. E isto tendo em conta que aquela visita à Índia não era uma visita qualquer. Além de não ser aqui ao lado, os indianos não aceitam visitas destas todos os dias, e, portanto, ter-se-ia perdido uma grande oportunidade num momento decisivo. Acho que o Soares compreenderia perfeitamente. O António Costa seguiu tudo em permanência a partir da Índia, enviou uma mensagem de lá, que foi transmitida, e, por isso, esteve presente desse ponto de vista.

Angola. Estamos outra vez num momento particularmente tenso nas relações com aquele país. O período em que Portugal talvez tenha mantido piores relações com Angola foi quando Mário Soares estava à frente deste país. Ora, em grande medida, as acusações de que Soares é alvo vêm dos supostos negócios obscuros que mantinha em Angola bem como dos retornados, descontentes com a forma como decorreu a descolonização.

São coisas diferentes, e, aliás, de alguma maneira, as más relações do regime angolano com Soares e a má opinião dos retornados contradizem-se. Porque se o Soares fosse aquilo que os retornados diziam que ele era teria a gratidão eterna do regime angolano. Os retornados acusavam-no de ter entregue Angola, por exemplo, ao MPLA. Mas foi exactamente porque o Soares não queria entregar o país ao MPLA, e também por tudo o que depois disso foi dizendo do regime angolano, que há este antagonismo.

Foi então por convicção, por não acreditar que o MPLA pudesse dar a independência ao povo angolano?

Ele achava que os Acordos de Alvor não se tinham cumprido, via como aquilo, na geoestratégica mundial, tinha uma finalidade claríssima no momento em que o regime começa, e depois achava que este se tornou aquilo que todos hoje sabemos que é. Não vale a pena classificá-lo, embora o Soares às vezes não se tenha coibido de o fazer, de uma maneira veemente e até, por vezes, brutal. Hoje, é de alguma maneira o actual presidente [João Lourenço] quem, ao proceder como está a proceder, está a confirmar tudo o que Soares disse daquele regime.

Houve um episódio a certa altura em que Jaime Gama, na altura à frente do MNE, sentiu necessidade de se demarcar, ao governo e ao PS, de declarações acintosas feitas por Soares sobre o regime angolano. Como é que ficaram as relações entre os dois?

As relações entre eles foram, em certos momentos, muito próximas, noutras mais frias. Da parte do Soares havia uma admiração pela inteligência e pelo talento político do Jaime Gama, mas haveria certamente alguma diferença a nível temperamental. Eram pessoas diferentes, e a maneira como faziam política era também diferente. Houve momentos de aproximação e de afastamento, é o que vale a pena dizer.

Falando das inimizades, além das mais óbvias, como Cavaco…

Mas o Soares quando teve inimigos, teve-os porque eles representavam coisas às quais ele se opunha. Por isso é que alguns dos amigos se tornaram inimigos. Não havia razão nenhuma para o Soares se ter zangado com o [Francisco Salgado] Zenha, foi uma coisa gravíssima na vida do Soares, e uma coisa dificílima, porque era de facto o melhor amigo dele, tinham uma cumplicidade de décadas, era o padrinho da filha, etc., mas o Soares afrontou o Zenha porque achou que ele estava profundamente errado sobre o que queria para Portugal. E, em relação às coisas essenciais, o Soares nunca tinha dúvida nenhuma. Durante muitos anos acusaram-no de ser um grande táctico, mas de não ter grande estratégia. Eu penso que se passava exactamente o contrário. O Soares tinha uma estratégia claríssima, e uma ideia que ele tinha, e já se desvelava no “Portugal Amordaçado”, era a de transformar Portugal numa democracia europeia. Como eram as democracias europeias daquele tempo, o que não tem nada a ver com o que são hoje as democracias europeias. Por isso mesmo também, nas últimas décadas da sua vida, ele opôs-se ferozmente ao que considerava que era o desvirtuamento, e quase a traição, das democracias europeias pelos seus dirigentes. Mas isto para dizer que o Soares tinha noções muito claras quanto, nomeadamente, à subordinação do poder militar ao poder civil, para aproximar Portugal dos países europeus. Tinha havido uma revolução, na qual os militares tinham tido um papel que demorou a desvanecer-se, e Soares achou que havia ali um momento decisivo em que o país tinha de se tornar uma democracia europeia sem nenhuma ambiguidade. Nisto afrontou aquelas pessoas dentro e fora do PS que se opunham a isso. E o Zenha apareceu como um dos líderes dessa oposição, e, portanto, ele não teve contemplações, embora o tenha feito com grande angústia pessoal e tristeza, ao afrontar o Zenha. E fez isso sempre em relação a tudo.

Como o combate ao PCP?

Soares afrontou o Cunhal até às últimas consequências porque achou que o seu projecto de fazer Portugal uma democracia europeia não era compatível com os objectivos na altura do Partido Comunista. Já agora, posso dizer uma coisa que às vezes me perguntam, que é existirem pessoas que dizem que o Soares estaria contra a geringonça. Acho que não estaria contra a geringonça porque o Soares via perfeitamente qual era o papel do PC no país, mas também qual era o seu papel geoestratégico a nível mundial… Recordo-me que, a partir da queda do Muro de Berlim, ele ter dito que dali em diante o PC passara a ser outro partido, e o Soares dizia: ‘Estão ali aqueles votos, temos de os saber aproveitar’. Portanto, acho que ele seria um grande advogado desta solução.

Apesar de terem sido pontuais as suas grandes desavenças, parece haver um certo cinzentismo que marca aquelas figuras que não tinham a estima de Soares. Ramalho Eanes, Cavaco Silva, dentro do PS, Vítor Constâncio…

São casos totalmente diferentes uns dos outros. Mais uma vez, a oposição que o Soares fazia a essas figuras era porque representavam certas noções ou ideias que ele repudiava. É o Soares quem faz do Eanes Presidente. Não era possível sem o apoio do PS que aquela candidatura ganhasse. Mas a certa altura ele acha que o Eanes se tornou uma espécie de catalisador de vários interesses e projectos contraditórios, que para Soares não se alinhavam com o caminho para uma democracia europeia, com a subordinação do poder militar ao poder civil, sem nenhum estatuto privilegiado para as Forças Armadas. Recordo-me de quando ele Soares se auto-suspende de secretário-geral para não apoiar o Eanes na reeleição, dá uma entrevista em que diz que o Eanes quer fazer um partido político. Nessa altura, muitas pessoas amigas do Eanes, algumas delas do PS, dizem: ‘Este homem está a delirar. O ódio ao Eanes leva-o a imaginar que este possa fazer coisas impensáveis’. A verdade é que o Eanes vai fazer um partido político passado uns anos.

E com Cavaco?

No caso do Cavaco, para além de obviamente haver uma diferença abissal a nível pessoal, de entendimento da vida, a nível também cultural, há ali um momento em que o Soares percebe que o Cavaco está a representar coisas que quanto a ele significam uma perversão da vida democrática pluralista, que há uma tentativa de submeter a política à economia e às finanças – deriva que depois se foi agravando –, e que há uma substituição dos políticos, dos grandes políticos humanistas, com cultura histórica, com cultura literária, como era o De Gaulle, o Churchill, como era o Willy Brandt, como era o Mitterrand e como era o próprio Soares, por tecnocratas. E o Soares achava que isso era mau para a democracia. Portanto, o Cavaco aparecia-lhe como alguém que sinalizava essa passagem. Foi por isso que o Soares se tornou um adversário e lutou contra ele. Porque, na verdade, o Soares nem tinha uma grande motivação pessoal que o movesse contra o Cavaco. Se não fossem as funções que ocupou, não era uma pessoa que lhe interessasse especialmente. No caso do Constâncio, o Soares tinha consideração intelectual por ele, mas achava também que o Constâncio não tinha certas qualidades que era exigíveis a um líder político do Partido Socialista. O que há é uma certa percepção da parte do Constâncio de que o Soares não acreditava no seu êxito como líder, e depois há uma série de circunstâncias que levam a um afastamento. Mas também houve momentos de grande proximidade entre os dois. Tinham era dois visões contrastantes sobre o que era a política.

Parece que em anos recentes estivemos sujeitos à autoridade dos tecnocratas, e agora volta a haver um certo fascínio pela ideia da política, mas isto acontece sobretudo pelo êxito e pela afirmação de Marcelo.

Mas também pelo Costa. António Costa é um homem político com as características dos verdadeiros políticos.

Mas vamos ao Marcelo. Haveria vaidade magoada do Soares ou, porventura, alguma preocupação diante da forma como Marcelo se tornou um presidente e um ídolo?

Não. Em primeiro lugar porque o Soares sabe que há três ou quatro momentos que o põem na História a uma altura que mais ninguém tem e esses momentos não têm a ver com os cargos que ele desempenhou. Ou só secundariamente têm a ver. Isso é uma coisa que lhe dava uma certeza e segurança absoluta, olhando para a sua vida, como o Adriano no livro da Marguerite Yourcenar, que conseguia ter um olhar suficientemente frio e distanciado para poder julgar e analisar a devida importância das coisas. Sabia, por isso, que tinha havido alguns momentos em que as suas qualidades políticas tinham sido postas à prova e venceram, e que esses momentos ninguém lhos tirava. Por mais popular que seja um Presidente da República, por mais consensual que seja, acho que isso não põe ninguém na História só por isso. Ou não põe ninguém na grande História só por isso.

Mas há uma convergência entre a forma como o Marcelo entende a política…

Em Marcelo há uma convergência muito grande entre a sua experiência de comunicador, o seu temperamento e o seu desejo de popularidade. Nesse sentido, ele está de acordo com o espírito do tempo. O Soares fez política num tempo em que aquilo que hoje se chama mediatismo não tinha atingido o paroxismo que hoje se verifica. Portanto, há aí uma diferença acentuada. Agora, eu acho que o sonho do Marcelo é ser o Soares da direita. Olhando para o percurso do Marcelo no pouco tempo que tem como Presidente, julgo que ele aprendeu – e ele sempre foi um grande observador da vida política – com o Soares. Ele não ignora que o Presidente que mais sucesso teve, e prestígio como Presidente da República, foi o Soares, portanto acho que algumas das coisas do Soares ele tem como referência. Isto na forma. Porque, obviamente, depois, os valores e os objectivos são diferentes.

Mas nesse sentido o Marcelo será o último de uma estirpe de políticos…

Eu acho que o Marcelo é um político, e isso para o Soares já fazia a diferença, alguém que tinha as características e as qualidades de um político. O Soares ficava sempre danado quando o Cavaco dizia que não era político. “Mas se ele é primeiro-ministro, se ele é líder de um partido, como é que não é político?”, dizia o Soares. A verdade, porém, é que ao dizer que não era político, o Cavaco estava a usar isso a seu favor porque percebia que havia um descrédito da política e dos políticos, mas provavelmente, sem o saber, estava a fazer uma confissão de fraqueza. Soares achava que todos esses equívocos, que considerava oportunistas, não contribuíam para dignificar a política nem para aperfeiçoar a democracia. Daí o ter escrito aquele livro, que era de alguma maneira a continuação do “Portugal Amordaçado”, que se chama “Um Político Assume-se”, e que começa por explicar que a política, quando feita como deve ser, é a mais nobre das atividades, porque é dessa atividade que depende a vida das pessoas.

Indo agora então ao Costa. O Costa tem sido descrito como um político muito hábil, até pela oposição…

Acho que o Costa, embora não tendo estado muito próximo do Soares em muitos momentos da vida do PS, pertence à linhagem política do PS.

Sem sabermos exactamento o que se passa nos bastidores, se vemos nele um negociador extraordinário, ao criar consensos e sobretudo soluções que lhe são favoráveis, e se conseguiu o que ninguém esperava ver – um Partido Comunista domesticado–, e uma solução viável para um governo, não faltarão ao Costa precisamente as qualidades de um líder com uma mensagem clara, e que tem um desígnio a longo prazo? Às vezes parece que não se sabe o que pensa.

Mas do Soares dizia-se exactamente a mesma coisa.

Que não se sabia o que ele pensava?

Sim, sim. E que pensava muitas coisas e que era contraditório, e que prometia e não cumpria. Acho que isso é uma acusação clássica que se faz ao primeiro-ministro e sobretudo quando este é um político. É como fazer essa acusação a um artista. Para mim o que está mais próximo de um político é um artista. Um escritor se quiser… Porque o político trabalha com o mais amplo espectro da vida, os grandes políticos todos têm em si muitas qualidades opostas. E se em muitas pessoas isso as paralisa, no caso destes grandes políticos, há uma espécie de harmonia de opostos. Como me parece que há no caso dos grandes escritores ou artistas. Essa harmonia de opostos leva-os a serem uma série de coisas que nos aparecem como contrárias entre si. São rígidos quando é preciso, mas depois sabem ser flexíveis, são calorosos e frios, são próximos e distantes, são liberais no trato com as outras pessoas, e outras vezes quase parecem autoritários… Isso é que lhes dá a capacidade maior de responder às circunstâncias quando elas próprias se mostram mais contraditórias e que exigem para cada momento uma resposta pensada só para aquele momento. E muitas vezes um político, se for muito rígido, não consegue responder a essas circunstâncias. O Soares costumava dizer, citando o Pascal, que as pessoas se dividem em dois tipos – e hoje em dia a psicologia já não diria assim mas… – entre aquelas que têm ‘espírito de finesse’ e as que têm ‘espírito geométrico’. E o Soares achava que era o exemplo claro do espírito de finesse e que tinha pouco do espírito geométrico. E achava também que um político tem de ter essa finura, intuição e subtileza porque tem de ser capaz de falar com as pessoas e compreender o que é que eles são. Tem de ter o gosto de compreender as pessoas, de perceber se o estão a enganar ou não.

O Soares era conhecido por ser alguém que gerava grandes paixões e ódios, ao passo que a visão que temos do Costa é a de um político que é menos de mobilizar do que de distorcer a imagem das circunstâncias a seu favor.

Mas isso é uma acusação que se faz a todos os políticos. E também se fazia ao Soares. Acho que isso é uma acusação clássica e que está em todos os manuais. E fez-se ao [Felipe] González, ao Mitterrand, e fez-se a todos. Isso faz parte do arsenal do ataque aos líderes.

E que visão é que lhe parece que o Costa defende, o que é que ele tem em vista para as próximas décadas?

Não se pode simultaneamente pensar que se trata de um prodígio, de uma grande proeza, o facto do Costa ter conseguido alcançar esta solução governativa que funciona, e sobre a qual a grande dúvida que se punha era: como é que esta fórmula, que toda a gente duvidava que pudesse resistir, como é que consegue, sem lançar outra vez Portugal para a bancarrota – a acusação que se fazia no tempo da troika e do PSD –, como é possível ele conseguir ter os resultados económicos que tem… É quase a quadratura do círculo, e conseguiu que esses dois partidos [PC e Bloco de Esquerda] entrassem nessa fórmula e duradouramente. E não, como alguns previam, à custa da vinda do Diabo.

Mas essa harmonia de opostos desvirtua a posição do PC e do Bloco.

Mas desvirtua?

O certo é que hoje é difícil defender a noção de que o PS governa à esquerda, porque, com menos bravata, de modo mais moderado prosseguiu os compromissos com os credores e as metas europeias…

Mas acho que há uma diferença abissal entre aquilo que o PS está a fazer e aquilo que o PSD fez. Essa diferença, antes de ser económica, financeira e social, que também é, é política e moral. Desde logo o ter mudado completamente o discurso, aquele discurso punitivo e justiceiro, de vir dizer: ‘vocês são uns malandros, precisam de ser castigados, estiveram a viver não sei quantos anos acima das vossas possibilidades…’. O ter acabado com isso, e ter dito: não senhor, nós somos um grande país, e não precisamos de ser os pobrezinhos da Europa para ter algum êxito… Só isso já mudou completamente as coisas. Como dizia o outro, a política é antes de mais persuadir as pessoas.

Quem é que foi que o disse, para não aparecer só ‘o outro’?

Até acho que foi o Luís XIV. A política antes de mais tem de convencer, mesmo a política que não é democrática. Ele sabia que tinha de convencer as pessoas de que estava certo sobre a visão que tinha para o país. Isto foi uma mudança radical. O estado de espírito, a imagem que as pessoas tinham de si mesmas e tinham do país, tudo isso de repente mudou. Portanto, eu acho que há aqui uma grande diferença. E o segredo no meio disto é o PS saber que, neste quadro europeu, tem de ser fiel aos compromissos. E isto mesmo se o próprio Costa já deu sinais de que nem sempre concorda com algumas dessas linhas de força do quadro europeu. Mas também aqui é preciso uma outra quadratura do círculo. Há algo que representa já uma derrota política e ideológica terrível, e que não tem sido assumida em todas as suas consequências, é o facto de até aqui toda a gente dizer – a opinião publicada sobretudo, os comentadores, etc. – que era impossível a economia evoluir positivamente. E a verdade é que correu bem e eles agora estão calados.

Voltando ao Soares. No seu texto [para o catálogo da exposição] fala de como a morte era para ele um assunto a evitar…

Também me lembrei depois de ter escrito o texto, de que há um grande espírito stendhaliano no Soares, talvez sem ele ter a consciência clara disso. O Stendhal dizia que o carácter de um homem se define pela maneira habitual como ele procura, conquista e caça a felicidade. E com o Soares era como se cada dia fosse uma espécie de procura ou, até mais, de caçada da felicidade. Ele transformava todos os deveres em prazeres pela forma como punha nas coisas alegria e convicção. Ora, o Stendhal diz-nos que já que a morte é inevitável, ao menos esqueçamo-la. Acho que era essa a atitude que o Soares tinha face à morte. Também digo lá que o Soares era em política kantiano, achava que a democracia era o regime da razão, na vida nietzscheano, porque tinha um instinto vital, e na morte espinoziano. Uma vez, a meio de uma campanha eleitoral, a última, em que as coisas estavam a correr pessimamente, fui almoçar com ele a um restaurante. Era um dia terrível de chuva, estávamos na ponta final da campanha e já se percebia que ia haver o desastre que houve. Estavámos a comer pescada cozida e, às tantas, veio um empregado que disse: ‘ahh sôtor, tenho imenso gosto em tê-lo aqui, tenho a maior admiração por si, sempre votei em si…’ E o Soares disse-lhe: ‘então agora não se esqueça que no domingo tem de votar outra vez’. E o homem disse-lhe: ‘ahh, sôtor, mas isso agora é que eu não posso fazer porque o senhor já tem 80 e já lá esteve. O Soares ainda tentou argumentar com ele, e quando ele se foi, disse-me: ‘este tipo é mesmo parvo’. Em resposta, citei-lhe uma frase do Nietzsche que diz: “A arte existe para que a verdade não nos destrua”. Ele sorriu melancolicamente, continuámos a comer e, passado uns três minutos, ele diz-me: olha que esta pescada não está nada má. (Risos) Era sempre esta caça da felicidade. Mas o Espinoza diz na “Ética” que os grandes homens pensam menos na morte do que em qualquer outra coisa, e que a grande sabedoria é meditar sobre a vida e não ir dá-la à morte. Neste sentido, acho que o Soares era isto também.

Ele gostava do Manuel Alegre
como poeta?

Ele gostava do Manuel Alegre como pessoa e, portanto, gostava também dele como poeta. Mas o Manuel Alegre tem uma poesia política, sobretudo da resistência da primeira fase, de que obviamente o Soares gostava imenso. Soares tem um livro chamado “Incursões Literárias” no qual ele reuniu retratos que faz de escritores de quem gostava e, no prefácio, diz: ‘o meu pai achou sempre que eu devia ser escritor porque tinha jeito para escrever. Provavelmente tinha até demasiado jeito, demasiada facilidade para escrever, e um escritor não pode ter tanta facilidade. Agora, confesso que tenho uma visão literária da vida e sempre tive gosto em inventar histórias, e em inventá-las sobre as pessoas de quem mais gostava e que conhecia’. E isto tem muito a ver com a sua própria biografia, com o facto de até aos 50 anos ter vivido num país amordaçado.

Política e literatura estavam ligadas?

Para o Soares política e literatura estavam ligadas. Toda gente sabe que ele gostava do Romain Rolland, toda a gente sabe que ele gostava da Sophia, sendo que muito da poesia combatia a ditadura. Embora a poesia de Sophia fosse menos directa do que outras nesse combate. É uma poesia que, por isso, se tornou mais intemporal e menos ligada às circunstâncias do que outras. Mas o Soares gostava disso. Era essa a biografia dele e estava preso também às circunstâncias histórias que o tinham marcado. O Soares gostava muito das coisas do Junqueiro, as coisas anti-clericais e anti-monárquicas, gostava dessas coisas todas. A pouco e pouco foi descobrindo também, talvez até depois do 25 de Abril, que a literatura pode ser outra coisa também. Mas, às partida, era provável que o Soares gostasse mais de um poeta como o Junqueiro do que um poeta como o Camilo Pessanha. Acho que a pouco e pouco, quando a luta pela liberdade e a resistência estava feita, passou a interessar-se por poetas que antes não se interessava. Ele já gostava muito do Cesário, mas isso talvez por aquele realismo, por aquele retrato extraordinário da cidade… O Soares era um lisboeta muito afeiçoado à sua cidade. E, conhecendo aquelas coisas mais vulgarizadas do Pessoa, para a geração do Soares e as anteriores, o jogo dos heterónimos, o drama em gente, tudo aquilo, eles tinham dificuldade em levá-lo muito a sério. Acho que o Soares começou depois a interessar-se por isso porque terá certamente falado com Casais Monteiro e com o Agostinho da Silva, mas não foi uma atracção imediata, é uma coisa pela qual se foi interessando a pouco e pouco.

Há um aspecto que se pode analisar bem aquando da morte do Soares, e é uma coisa que a Agustina criticava ferozmente, que era uma certa disposição sentimentalóide portuguesa, e que me parece que se sentiu nas reacções à morte do Soares. A esse respeito é bom fazer-se um elogio sem necessidade de reservas ao seu texto no “Público”, por ser um dos poucos textos que abre uma perspectiva realmente profunda para a vida e as questões que eram essenciais para Soares. Isto quando a maioria dos outros testemunhos pareciam reduzir Soares aos momentos em que apareceu na vida delas, quase como um figurante de luxo. Só conseguiam contar episódios, anedotas…

E muitas vezes falavam era delas próprias. Eu tenho o escrúpulo de tentar nunca fazer isso, ou fazê-lo apenas se for inevitável. Ao longo desta conversa, houve momentos em que poderia ter falado de mim, nomeadamente nas conversas que tive com o Soares sobre literatura. Conversei muito com ele sobre literatura, sobre poesia. Ele deu-me a conhecer autores, eu dei-lhe outros a conhecer. Sou de outra geração, é natural que tenha outras referências. Mas não tarda muito corria o risco de vir dizer que fui eu que apresentei o Fernando Pessoa ao Mário Soares. Quer dizer, seria uma estupidez total estar a dizer uma coisa destas. Mas às vezes há pessoas que parece que é isso que querem dizer. O Soares tinha milhares de estórias, muitas delas ouvidas e aprendidas à mesa do café, quando havia tertúlias. Uma das coisas que se ouvia e que era extraordinária nele era a sua grande gargalhada. Essa gargalhada enchia salas e muitas vezes era virada sobre ele próprio, sobre situações em que  tinha estado envolvido. Acredita que, no caso de Soares, sendo um homem que se interessava por pessoas, há um efeito em que estas acabam convencidas que ao cruzarem-se com ele foram elas que o marcaram?

Ele sabia dar às pessoas a ideia da importância que tinham para ele. Mas isso das pessoas virem depois falar da forma como foram importantes na vida dele é inevitável… Isso também acontece com muitos escritores. As biografias em geral muitas vezes são escritas por tipos que se servem delas como pretexto para falarem deles, para aparecerem no quadro. Essas são normalmente as biografias ou memórias pouco interessantes.

No texto do catálogo desta exposição pensa também sobre o papel da fotografia, a forma como fixa e também mata, nos expõe perante um vazio. Como é que este ano o foi confrontando com o desaparecimento de Soares?

O que mais sinto é que muitas vezes, nós os amigos dele, dizemos uns aos outros a pena que temos de ele não estar aqui porque se ia rir muito disto ou ia perder as estribeiras por causa daquilo, ou tentamos divisar entre nós os comentários que ele faria sobre as coisas que se vão passando. É alguém de quem continuamos a falar como se estivesse muito presente. Esta exposição tem um aspecto importante, e isto prende-se com o parecer-me que as democracias, as repúblicas democráticas, precisam de ter os seus rituais. A Monarquia tem aqueles que lhe são habituais, e em Portugal a ditadura viveu também muito os seus rituais de Estado. Provavelmente por isso, a democracia ao princípio tinha alguma acanhamento em assumir uma certa liturgia ou ritual em relação aos grandes acontecimentos. Mas eu acho que as comunidades precisam de ter símbolos, os símbolos precisam dos seus mitos, e o rito é uma espécie de actualização do mito. E sendo o Soares de facto o principal fundador da democracia e tendo morrido depois desta vida tão longa e tão criadora, a maneira como o funeral dele foi feito – é o primeiro grande funeral de Estado da nossa democracia –, o registo disso é uma coisa importante. Notei, quando o funeral foi feito, que houve, ao mesmo tempo, uma emoção por se ter feito uma coisa em que as pessoas se reconheceram. Tenho testemunhos de diplomatas estrangeiros que participaram nas cerimónias, por exemplo no claustro dos Jerónimos, e que disseram que estas tinham tido a beleza de representar uma leitura da vida do Soares e que tiveram uma dignidade estética, política e até ética que era do melhor que tinham visto. Os jornais publicaram muitas imagens e era bom submeter, passado um ano, esse cerimonial à prova da memória, e da memória visual. Portanto, foi pedido a todos os fotógrafos que tinham feito a cobertura, para nos darem cinco fotografias (quase todos deram cinco, alguns deram menos, e eles próprios fizeram uma selecção), eu escolhi uma de cada, e o resultado é uma selecção extraordinária.