Maria Ondina Braga. Dobar até à morte os fios da solidão

Cosmopolita, discreta, solitária, enigmática; entrega-se e furta-se-nos, como se tivesse um segredo a proteger. “Descobrir Maria Ondina Braga” é justamente o título da exposição biográfica que pretende assinalar o dia do seu aniversário, a 13 de Janeiro

“Eu Vim para Ver a Terra” (1965) – assim se apresentou no nosso meio literário Maria Ondina Braga. Não era uma quarta Maria. Nem um “Pigmalião de saias”, como lhe chamou Gaspar Simões, aludindo a “Estátua de Sal” (1969), a sua biografia ficcionada. As palavras, afastadas da militância feminista, saíam-lhe aparentemente serenas, sóbrias, indagadoras (do mar ao céu), carregadamente simbólicas, por vezes quase secretas, atraídas por tudo o que se oferece ao olhar, hiper-sensíveis à paleta das cores, aos sons, aos perfumes, adquirindo um timbre particular, um peso subtil, uma pulsação, uma sóbria exuberância. E sempre a flutuar entre o ocidente e o oriente, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, inquietantemente adjacentes.  

Veio para ver a terra. Chegou, viu e perdeu – primeiro o pai, contava apenas dez anos, pouco depois a mãe, logo a seguir o tio, “morria toda a gente da família”. É pois situada no lugar de uma profunda solidão que falará de si e do mundo, valorizando a sua densidade simbólica, o seu lado vendado. “Vidas Vencidas” (1998) diz-nos das derrotas a que o tempo, uma vez expirado, nos sujeita. Acabou a entregar-nos uma espécie de dicionário postal do muito mundo que correu, a descer às profundezas da memória e a baixar aos infernos da infância e da juventude: “vi o rosto disforme das fúrias e ouvi o grito dos condenados. De dia era pálida e bela. Perseguia-me, porém, o medo terrível desses fantasmas, um medo que parece nunca ter morrido de todo em mim”. 

Num tempo em que o Estado Novo ainda destinava à mulher o curto trajecto que ia da cozinha à sala de costura, empurrando-a para o espaço dos limites moralmente desejáveis, Maria Ondina (assim começa por assinar os seus livros) declinou continentes – Europas, Áfricas, Ásias -, palmilhou capitais: Londres, Paris, Angola, Goa, Hong-Kong, Pequim …, cruzou culturas, percorreu espaços, transitou entre géneros narrativos, acumulou moradas, formas breves, quartos de desconforto – tudo aglutinado, a ir e a vir numa escrita firme mas delicada, envolvente, tão atenta aos movimentos mais íntimos do mundo interior como à detida contemplação do mundo exterior: “Há uma desgraça, um fatalismo próprio das ruas íngremes. Ao contrário, as ruas largas e planas, as avenidas, as estradas chãs, comunicam uma espécie de júbilo, uma esperança, uma sensação de eternidade”. 

Nunca ninguém a esperá-la. Ninguém a recebê-la. Ninguém a quem se declarar “Ninguém” – palavra que, uma vez pronunciada, haveria de colidir com uma pulsão vitalista que, na sua ficção marcadamente autobiográfica, sempre se sobrepõe a uma pulsão desistente, a uma vontade esvaziada de sentido. Tal como no romeiro de Garrett, de que esta escritora-peregrina constitui o equivalente impossível, o passado projectará a sua longa sombra sobre o presente. Mas ao contrário do regresso esvaziado do romeiro, esta viajante, por vezes exausta, chega para se contar sem fingimentos, sem artifícios. Não regressa: chega. De cada vez para se buscar e aprender a morar nela mesma. O apelo da partida é nela um ímpeto vital: “Partir é bom, mas, pensar em partir, melhor ainda. Quanto a mim, acho que tenho sempre chegado. Partir é esperança. Chegar, desencanto”.

“A escrita é a única coisa que tenho na vida. Sozinha com a escrita. Digamos que é uma fatalidade…”, disse numa entrevista ao Diário de Notícias. Dir-se-ia que foi uma mulher fora do lugar, por não haver lugar onde habitar, por incapacidade de se acomodar à vida. Nunca esqueceu a cidade dos Arcebispos e das “Nossas Senhoras de todos os nomes” onde nasceu em dia aziago. Mortos queridos, lamparinas sempre acesas, cera a arder aos santos, fisionomias inflexíveis, dobrar de sinos, tias católicas até aos ossos vêm compor a católica cenografia de uma tristeza de que nunca de desprenderá. Há caminhos que não se extinguem com o tempo, como o do liceu de Braga: “Tão triste esse caminho! Se lhe quero dar cor, só a do luto: o roxo do papel frisado das coroas fúnebres, o roxo dos polvos secos à porta das mercearias, os panos de dó na casa funerária, os cabelos e a cara negra da carvoeira louca insultando os moços”.

 “Cave canem” [Cuidado com o cão!], lê-se num mosaico em Pompeia, poupado à destruição. Está por todo o lado este aviso, mas Maria Ondina Braga deixou-se morder por aquela que escolheu para a acompanhar na vida – a solidão, “que se [lhe] agarrara ao peito como hera a um muro”, escreve em “Estátua de Sal”. Foi em Londres, onde completa o curso da Royal Society of Arts, que se sentiu “rasgada pelas unhas venenosas da solidão”. A sua boca era sempre mais larga, mais insinuante, mais dessatisfeita, mais impiedosa, mais dura de roer. Maria Ondina desencantou-se de si e dos outros. Teve medo de amar, medo de não amar, de alguém totalmente a querer, medo da incapacidade de se dar por inteiro. Num dos contos de “Amor e Morte” faz dizer a uma das suas personagens que, por vezes, “se jura amor a alguém por se andar cansada de não se amar ninguém”. E uma outra faz notar que num beijo pode haver “uma tristeza primitiva e amarga.”

Quem a ouve contar, se de Maria Ondina Braga se quiser aproximar, não sabe exactamente a que porta bater. Às casas das cidades do Oriente, onde, numa normalidade ameaçada, se movem as muitas mulheres solitárias e atormentadas para quem o amor é apenas conjectura e desencontro? Ou ao edifício da sua própria solidão, onde viveu a pendurar auto-retratos que nos levam desprevenidamente onde não pensaríamos ir. Onde não gostaríamos de ir, por tanto se parecerem com o nosso rosto. 

À margem do cânone literário, a autora de “A China Fica ao Lado” ou “Nocturno em Macau” é hoje, entre nós, um nome pouco lembrado, ora a ilustrar a tradição do imaginário asiático na nossa literatura (Wenceslau de Moraes, Camilo Pessanha, Ruy Cinatti), ora chegado à etiqueta da escrita feminina, tão redutora que mal lhe cola. O silêncio que após a morte, em Março de 2003, caiu sobre a sua obra tem sido quebrado, a espaços, por iniciativas que a resgatam ao esquecimento. É justo assinalar o colóquio internacional que lhe foi dedicado em Outubro de 2016 e de que resultou o precioso volume de ensaios “Maria Ondina Braga. (Re)leituras de uma Obra”, coordenado por Cândido Oliveira Martins, da Universidade Católica Portuguesa, e Isabel Cristina Mateus, professora da Universidade do Minho. E alegrem-se os devotos da escritora: o empenho de ambos possibilitará a reedição da obra completa da autora, prevista ainda para este 2018, com o contributo de especialistas estrangeiros. Por agora, o dia do aniversário de Maria Ondina Braga, 13 de Janeiro, será assinalado com a exposição “Descobrir Maria Ondina Braga”, patente ao público até ao final do mês, e com uma mesa redonda evocativa. Centrada na vida e na obra da escritora-viajante, a mostra é apoiada pelo Museu Nogueira da Silva, onde está sediado o Espaço Maria Ondina Braga, e pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Fica o cartaz, em jeito de convite.