Salazar à cabeceira

Uma pequena montanha de livros empilha-se por estes dias na minha mesa de cabeceira e ameaça desabar. 

Não é que eu tenha decidido tornar-me, da noite para o dia, um homem bestialmente culto. Os volumes foram diligentemente trazidos para ali pelo meu filho mais novo, talvez porque, sabendo que gosto de livros, me quis agradar. E eu não o contrariei, até porque a mudança para junto da minha cama já representa um progresso em relação a atirá-los pela varanda, como fez ainda há pouco tempo, com grande risco para quem passava lá em baixo.

Pois bem, um desses livros que ele gentilmente me trouxe foi uma edição facsimilada de Férias com Salazar, de Christine Garnier, de 1952. E eu, como acho que devo aproveitar o que o acaso – aqui pela mão do meu filho – me apresenta, voltei a abri-lo alguns anos depois de o ter folheado pela primeira vez.

A ideia deste livro partiu do editor francês Bernard Grasset, que decidiu criar uma coleção em que mostrava a faceta mais privada das grandes figuras daquele tempo. Para o volume inaugural, escolheu Salazar, o homem que governava há cerca de duas décadas o país mais ocidental da Europa. Encomendou o retrato íntimo do estadista a uma jornalista de origem belga que se movia com à-vontade nos círculos da sociedade, talvez confiando na eficiência do seu charme. Ao que parece, terá resultado ainda melhor do que Grasset previra: Garnier e Salazar terão vivido mesmo um breve romance.
Arriscando tornar-me odioso aos olhos de muitos, devo dizer que gostei do que li.

Evidentemente há muito de encenação – quer por parte da jornalista francesa, quer por parte do ditador – neste Férias com Salazar. Garnier descreve um Portugal pitoresco e ‘autêntico’, cheio de flores, de sol e de mar. Quanto a Salazar, mostra-o como um ditador seguro mas humilde, simples mas enigmático, traço que o próprio também parece cultivar através de frases lapidares.

Ao contrário do que eu imaginava, porém, o livro não constitui uma completa apologia do Estado Novo, e a jornalista não se abstém de exprimir algumas das suas reservas: «Para uns, é V.ª Ex.ªum santo […]. Para outros é um chefe destituído de sensibilidade, de humanidade» ou «Julga, Senhor Presidente, que lhe será possível deter o movimento de emancipação que atrai as portuguesas?».

Claro que predomina o lado luminoso do ditador e do país – nem poderia ser de outra maneira. E há ainda as excelentes fotografias a preto e branco, que mostram Salazar no Forte de São Julião da Barra, a ler o jornal, à mesa de jantar ou a passear no Vimieiro. Por quem foram tiradas? Por Rosa Casaco, nada mais nada menos do que o principal responsável pelo assassínio de Humberto Delgado. Mesmo quando se reveste de uma aparência agradável, o lado sombrio do regime está à espreita.