15 de janeiro de 2005. “No plaino abandonado que a morna brisa aquece…”

De repente, Ernesto Lopes Ramos, esquecido no Brasil, resolve falar. Dá uma entrevista, confessa-se, desmente e traz a lume mais alguns pormenores da armadilha que a PIDE montou a Humberto Delgado.

António Oliveira Salazar tinha uma voz fina, quase metálica. Era metódico nas palavras, suficientemente conciso e monocórdico para fazer com que as pessoas se inclinassem sobre o tal pequenino aparelho de que tanto gostava. 
Certa vez, num dos mais hipócritas discursos dirigidos à nação, comentou: “A nós convinha que falasse. A outros conviria mais o silêncio que só a morte poderia com segurança guardar…”

E, dessa forma soez, sacudia dos ombros a caspa incómoda de um assassinato canalha e misterioso perpetrado em Los Almerines, numa curva da estrada de Olivença, no dia 13 de fevereiro de 1965. O nome dos facínoras que abateram o general Humberto Delgado e a sua secretária, a brasileira Arajaryr Campos, não caíram no olvido: Rosa Casaco, Casimiro Monteiro e Agostinho Tienza.

Muito se escreveu sobre o assassinato de Delgado e da forma como o seu corpo, bem como o da sua acompanhante, foi abandonado nas redondezas de Villanueva del Fresno, como se de cães vadios atropelados se tratassem.

Mas, de repente, nesta busca constante sobre histórias desses dias de antanho às quais resolvi chamar, com a devida vénia a Nelson Rodrigues, “A Vida Como Ela Foi”, deparo-me com um personagem dessa vileza que parece saltar da mais profunda das brumas da memória: Ernesto Lopes Ramos.

A viver no Brasil, manteve-se cuidadosa e cobardemente numa penumbra própria de quem tem assuntos insanáveis para resolver com a sua consciência. Se é que os biltres têm consciência…

A famosa descrição do assassínio de Delgado desfiada ao pormenor por Rosa Casaco ao “Expresso”, seja ela eivada ou não de mentiras, serve para se perceber a forma como a armadilha foi montada. Mas, vendo bem, não é isso em particular que aqui me traz.

É mais uma entrevista trazida a lume por uma publicação online de nome “Tinta Fresca”, dirigida por Mário Lopes.
Ernesto Lopes Ramos também tem a sua versão dos acontecimentos, e muitas delas não são propriamente coincidentes. 

A brigada Rosa Casaco contou que o objetivo do plano era raptar o general e levá-lo clandestinamente para Portugal, para lhe ser dada voz de prisão e responder em tribunal por atos de terrorismo: cloroformizar Delgado por forma a adormecê-lo, transportando-o de seguida na mala do automóvel pela fronteira de São Leonardo.

O subinspetor Ernesto Lopes Ramos foi o elo de contacto com Delgado. Estavam ainda envolvidos os chefes de brigada Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro. Natural de Alcáçova (Elvas), Agostinho Giraldo Cilero Tienza entrara para a PIDE em 1947 e era o motorista de Casaco. Nascido em Goa, Casimiro Emérito Rosa Teles Jordão Monteiro só fora admitido na PIDE em novembro do ano anterior. No seu cadastro figuravam vários crimes de sangue, particularmente na antiga Índia Portuguesa. “Era um facínora”, acusava Casaco ao“Expresso”. “Matava a torto e a direito. Mas era um patriota exacerbado.”
Bela visão de amor pátrio.
Regressemos a Lopes Ramos.

Dizia ele, por seu lado, do outro lado do Atlântico: “É só esterco! O passado. A minha história naquele país só deixa esterco, não fica nada de útil. Portugal tem o vício de vasculhar esterco, mas aqui o peso relativo do esterco é mais fraco.” 

A brigada largou de Lisboa na tarde de 12 de Fevereiro. Monteiro e Tienza seguiram no carro deste, um Opel verde e creme, com a matrícula EI-44-39; Ernesto Lopes e Casaco foram na viatura do primeiro, o Renault Caravelle IA-65-40.
O grupo passou a noite numa pensão em Reguengos de Monsaraz. 

Casaco: “Verifiquei que, no carro do Tienza, se encontravam um garrafão, um saco com cal, uma picareta e uma pá. Admirado, perguntei a Tienza que material era aquele, respondendo-me o próprio que se destinava a umas obras que estavam em curso, na sua casa.”

Local ermo, à beira da estrada que liga Badajoz a Olivença. Foi aí que, cerca das 15 horas, surgiu a viatura de Ernesto Lopes, transportando o general. No assento da retaguarda, uma personagem não prevista no elenco idealizado pela PIDE: Arajaryr Campos, a secretária do general. Carioca de 34 anos, divorciada.
Os homens saíram dos carros.
Casimiro Monteiro desfechou um tiro em Humberto Delgado, que cai de borco. Morto.
Arajaryr grita, num histerismo súbito.
Alguém ordena: “Calem-me essa mulher!”
Quem a calou? Casimiro? Tienza?
Ernesto Lopes estava mais preocupado com outras coisas: “Ó pá! Não me fodas o carro!”
“A nós convinha que falasse”, perorava Salazar aos microfones.
Ernesto Lopes Ramos tem medo. Muito, muito medo.
“A partir daí, comecei a programar as minhas coisinhas para sair. Pedi para ir para África e, quando fui, acabei por vir parar ao Brasil…”
Brasil: país de Arajaryr.
Cuja biografia haveria de ser publicada postumamente: “Uma Brasileira Contra Salazar”.
Mulher sem medo assassinada lado a lado com um general sem medo.
Jazeram naquele plaino abandonado que a morna brisa aquece, como escreveuPessoa. Talvez tenha lá nascido um pé de araçá…