Nacional-cançonetismo. Estrela pop a preto e branco

Ela sem “Ele e Ela” não era ninguém, mas a carreira de Madalena Iglésias não se esgota numa das bandeiras do Festival da Canção. Foi Rainha da Rádio, protagonizou uma rivalidade particular com Simone e dizia-se à frente do seu tempo musical. Em tempo de privação e anseio, Madalena Iglésias trouxe luz ao monocromatismo.

Defendia estar dez anos à frente do seu tempo, “pelas orquestrações, pelo guarda-roupa e pela forma de estar em palco”. A beleza de Madalena Iglésias era fundamental mas, por ser bonita, foi obrigada trabalhar que “nem um animal”, confessava à “Lusa” em 2008.

“O ‘muito bonita’ perseguiu-me toda a vida, criou-me o complexo de que fosse só isso. E, como tal, trabalhei que nem um animal, tentei superar-me, estudei, aprendi idiomas, fiz exames no Conservatório, para melhorar o meu trabalho e a mim própria como pessoa”, reconhecia na entrevista de há dez anos. 

Madalena Iglésias foi uma estrela pop de um tempo político sem televisões a cores, quando o país ligava a telefonia para saber as últimas notícias e seguia hipnotizado em frente ao ecrã o frente a frente mais apetecido do Festival da Canção: Madalena Iglésias e Simone de Oliveira eram protagonistas de um derby muito particular, arbitrado pelo júri. 
Chamavam-lhe “nacional cançonetismo”, um tipo de música ligeira batizado pelo tom anasalado da voz da rádio João Paulo Guerra. Os estandartes são figuras de reconhecimento nacional, picadas pelos cravos. Luís “Ser Benfiquista” Pissarra, Gabriel Cardoso, Tony de Matos e Madalena Iglésias, todos já desaparecidos; e os sobreviventes Simone de Oliveira, António Calvário e Artur Garcia (ver ao lado). 

Talvez Madalena Lucília Iglésias do Vale clamasse para si o vanguardismo no desassombro de “Ele e Ela”. Os arranjos sinfónicos não estancavam o swing ié-ié, importado da música popular anglo-saxónica dominada pelos Beatles, que o regime temia poder demonizar a mocidade portuguesa. 

Nos anos 60, o nacional cançonetismo dominou a televisão e a rádio mas não viveu exilado. De carro, ou através das ondas hertzianas, o ié-ié transpôs a barreira de Vilar Formoso e chegou através dos Sheiks ou do Conjunto Académico João Paulo. A arte de ser elétrico manifestou-se também em conjuntos (assim se dizia então) como os Ekos, Conchas, Daniel Bacelar, Quarteto 1111 ou Victor Gomes e os Gatos Negros, sobretudo através de “traduções” de temas populares do rock anglo-saxónico.

Todavia, as grandes estrelas da rádio e da televisão afirmavam-se nos Reis da Rádio e no Festival da Canção. E apesar do arrojo assumido por Eduardo Nascimento em 1965 com “O Vento Mudou” – um épico sinfónico sobre um futuro anunciado e cada vez menos longínquo – dominava um conservadorismo musical e lírico, liderado por autores, compositores e maestros. Exaltavam-se valores nacionais como a vida dos campos, o folclore, o conservadorismo, a submissão feminina e a religião. Deus, pátria e família. 

“O que fazia era inovador para o nosso país. Eu sentia-me, e sentiram-me, sempre adiantada ao meu tempo”, defendia Madalena Iglésias, mas a conotação com um género tão reacionário, o controlo exercido pelo regime sobre as suas maiores figuras e sobre a informação, não deixou que essa perceção passasse para a opinião pública. Nem que as suas digressões internacionais tivessem visibilidade. Madalena Iglésias deixou os palcos portugueses em 1970, mas “a sua agenda internacional era muito maior e ainda continuou, depois de se casar, devido aos compromissos”, recorda a biógrafa Maria de Lourdes Carvalho à Lusa. 

O primeiro contrato internacional foi assinado em 1959 e levou-a à televisão espanhola, RTVE, e à rádio La Voz de Madrid. O rastilho necessário para conquistar público espanhol e sul-americano. Visitou regularmente a Venezuela entre 1961 e 1972, recebeu um Guaicaipuro de Ouro e foi condecorada pelo Governo de Caracas. 

O 25 de abril foi implacável para com as vozes protegidas pelo poder – o fado sofreu por arrasto, levando na corrente vozes assumidas de esquerda como Carlos do Carmo ou politicamente neutras como Amália Rodrigues – mas os trovadores do protesto eram os primeiros inimigos da banda sonora do regime. “Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e music-hall de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja atualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair”, defendia José Afonso. 
Madalena Iglésias parou de cantar “sem mágoa” no tempo dos cravos, mas o cançonetismo já perdera o coro nacional.