Movimento #Metoo. Estamos a passar à fase da caça às bruxas?

Pedro Mexia, Bárbara Bulhosa, Patrícia Müller, São José Correia e Fátima Lopes, entre outros, falam ao i sobre o manifesto Deneuve.

Desde a publicação da já chamada carta de Deneuve no “Le Monde” que o consenso inicial em torno do tema do assédio parece desfeito. Partindo desta ideia, o i  fez duas perguntas:

1. Qual é para si a fronteira entre sedução e assédio?

2. Qual a sua posição em relação à carta aberta subscrita por Catherine Deneuve e os contornos que está a ganhar movimento #MeToo?


Bárbara Bulhosa sobre #MeToo: “Nos últimos tempos tem havido muitos exageros. A confusão está instalada”

1. A fronteira entre sedução e assédio está na existência de relações de poder hierárquico e na violência que pode ser exercida por quem assedia. Caso contrário, estaremos a falar de uma insistência que pode ser chata, mas não a considero crime. Este caso do comediante norte-americano Aziz Ansari é paradigmático para ajudar a esclarecer esta confusão. Na minha opinião, e pela descrição pormenorizada (que considero obscena na devassa da privacidade de uma figura pública), o que aconteceu naquela noite foi um desencontro de expectativas, mas não vejo ali qualquer agressão. Contudo, este episódio pode destruir uma carreira. Para além da proscrição social, temos a profissional. A rapariga (que curiosamente mantém o anonimato) tem dúvidas se foi violada. Acredito que se tivesse sido, não as teria.

2. O movimento #MeToo é importantíssimo. As vítimas de assédio e abuso sexual, por parte de homens e mulheres poderosos, devem falar, sob pena de estarem a ser cúmplices destes crimes. Contudo, nos últimos tempos tem havido muitos exageros. A confusão está instalada e existe um poder que pode ser muito capcioso. Em nome de uma causa justa, podemos estar a criar mais vítimas. Não acredito nesse caminho. Há um clima de vingança para com os homens e uma desqualificação das suas opiniões por serem homens. É muito injusto. Foi este o contexto que fez aparecer a Carta das Cem ou o texto de Margaret Atwood. São dois textos fundamentais porque são escritos por feministas que não acreditam que os meios justificam os fins e que para se ganhar uma causa, não se devem perpetuar os mecanismos que fizeram com que a desigualdade entre géneros exista até hoje. Eu acredito na igualdade.


Patrícia Müller: “Insistência, agressividade e desconforto não estão no limite do engate”

1. O “Guardian” fez uma lista de perguntas que devemos fazer a nós mesmos para termos a certeza das águas em que navegamos. Entre elas, incluiu: “A outra pessoa deixou claro que não está interessada?”; “O meu avanço pode assustar a outra pessoa?”; “O meu avanço não é adequado nem no sítio, nem no espaço temporal?”. São perguntas assustadoras. Se eu achar que o meu avanço pode assustar, ser inapropriado ou se não souber escutar um não, está tudo estragado. Sedução é perceber que a outra pessoa está em sintonia connosco; que quer relacionar-se e que corresponde ao nosso interesse. Sou implacável com o resto. Insistência, agressividade e desconforto não estão no limite no engate, estão muito para lá do admissível.

2. É altura de mudar as coisas. Serão cometidos excessos em alguns casos, mas na essência é preciso abanar a estrutura. Teremos de ser mais #metoo que Deneuve, se queremos que comportamentos sejam alterados. Talvez isto se traduza num encolhimento masculino (literal e metafórico), mas parece-me que esse terá de ser o caminho até se atingir um equilíbrio.


Pedro Mexia: “O consentimento nem sempre é explícito”

Pedro Mexia, Poeta e cronista

1. A palavra assédio tem mais utilidade no contexto de uma relação de trabalho ou de poder. Aí, o que está em causa não é tanto a questão sexual, mas a questão hierárquica de alguém que se está a aproveitar da sua posição – seja como patrão, como produtor, etc. – para exercer um poder que, neste caso, é de natureza sexual mas poderia ser de outra. Quando se passa disso para a sedução no sentido lato da aproximação sexual entre pessoas, a regra que vigorava até agora – a do consentimento – parece-me boa para continuar a vigorar. O consentimento nem sempre é explícito ou explicitado, há zonas de dúvida ou de sombra, mas eventos como este [envolvendo Aziz Ansari] de alguém que decide a posteriori que foi abusado abrem a porta para a confusão entre aquilo que é uma experiência negativa com uma de abuso, e a partir daí nunca mais paramos.

2. A carta da Deneuve e das outras 99 chama a atenção para aspetos que me parecem importantes: que, sendo tudo comportamentos negativos, há uma gradação entre um comentário sexista, por exemplo, e uma violação. Não é sério dizer-se que é tudo a mesma coisa. É sério dizer que tudo é censurável, mas com graus diferentes. 
Já a expressão do “direito a importunar” não me parece particularmente feliz. E há certos traços geracionais no tom do texto, como uma ideia de relação entre homens e mulheres que me parece antiga, portanto não posso dizer que o subscreva. Subscrevo, sim, o texto da Margaret Atwood.


Inês Coutinho (Violet): Carta de Deneuve é “muito fraca”

Inês Coutinho (Violet), Produtora musical DJ e ativista

1. Estamos numa sociedade em que vivemos o sexo como uma espécie de tabu, em que a interação não é direta e se baseia por isso em jogos, que estão largamente desenhados segundo o paradigma patriarcal e capitalista em que vivemos. Essa fronteira deixará de existir quando conseguirmos chegar a um patamar de entendimento que tem o consenso e respeito mútuo na sua base, em que os homens não dominam a narrativa e em que podemos tratar as coisas pelos nomes e ser uma sociedade mais sex-positive e ainda assim mais segura.

2. É uma carta muito fraca, redigida de forma pouco informada e baseada em preocupações neoliberalistas, que acabam por apenas proteger o privilégio da classe média-alta, branca, e no fundo reforçam o status quo patriarcal. A própria Deneuve acabou por pedir desculpa às vítimas, porque o backlash que a sua carta gerou deixou claro o quão despropositado é transformar este movimento numa “witch hunt” aos homens e à liberdade sexual. Irónico como a própria expressão “caça às bruxas” denota a opressão histórica da mulher: é auto-explicativo que não haja uma palavra que denote que há homens perseguidos apenas por serem homens – isso é um desprivilégio reservado às mulheres. Enquanto houver estas tentativas de trazer uma perspetiva de neutralidade a movimentos urgentes como este, o progresso ficará adiado por mais um tempo. Neutralidade política é uma ilusão preguiçosa que nunca adicionou conquistas à história dos direitos humanos.


João Pedro Vale: “É assédio desde o momento em que coloca em causa a segurança da pessoa seduzida”

João Pedro Vale, artista 

1. Diria que se trata de assédio desde o momento que coloca em causa a segurança da pessoa seduzida, mas os contornos deste espaço de segurança são difíceis de definir, resultam de um processo de negociação que terá de ser gerido pelos agentes envolvidos.

2. Não concordo nem com uma posição nem com outra, porque me parece que ambas são extremadas, essencialistas e oriundas de um lugar de privilégio. Por um lado, existe uma grande dose de puritanismo e de caça às bruxas na instrumentalização, assimilação e mediatização do movimento #metoo. A forma como este movimento infantiliza o papel da mulher e o seu agenciamento e higieniza as relações pessoais e sociais parece-me perigosa na medida em que tenta estabelecer um modelo fascista para a forma como as pessoas se devem relacionar. Por outro lado, o excessivo reconhecimento e empoderamento do papel da mulher defendido pelas francesas parece-me ilusório, na medida em que reconhece para a generalidade das mulheres um privilégio que ainda poucas têm, pondo em causa as que não vêm desse lugar de privilégio. A minha simpatia inicial pelo movimento #metoo prendia-se com as possíveis consequências positivas que poderia ter para outras camadas menos privilegiadas da população, consequências essas postas em causa com a instrumentalização e mediatização de que esse movimento está a ser alvo.


Rodrigo Vaiapraia sobre o assédio: “Não é sexy insistir”

Rodrigo Vaiapraia, músico 

1. Se eu saio à noite e quero seduzir alguém, a primeira coisa que faço é olhar para essa pessoa. Se vejo que não há reciprocidade, procuro andar para a frente. A partir do momento em que tenho noção de que essa pessoa não está interessada em mim e continuo a importuná-la com a imposição da minha presença, do meu olhar ou dos meus gestos, estou a cometer um ato de assédio. Não é sexy insistir, muito menos aceitável.

2. Tudo o que tenho a dizer sobre essa carta é que é um ato de violência. O movimento #metoo tem sido uma onda de consciência que torna alerta e visível o quão reais e frequentes são os assédios para as mulheres (cis e transgénero), assim como para as identidades não-binárias. Creio que esta partilha de informação pode criar redes importantes de solidariedade e empatia. No entanto, é preciso não esquecer que se trata de tornar público algo absolutamente íntimo e ninguém se deve sentir obrigado a tal. Há mais assédio, para além daquele anunciado pelo #metoo. Os hashtags são ferramentas de mera sinalização e não de resolução de nenhum problema. O trabalho verdadeiramente radical também tem de começar a partir de quem já cometeu atos de abuso, na procura de um projecto proactivo de consciencialização e responsabilização.


São José Correia: “A fronteira entre sedução e assédio está na cabeça de cada um”

São José Correia, atriz

1. Essa fronteira [entre a sedução e o assédio], na verdade, está na cabeça de cada um. Está naquilo que as pessoas se permitem ou não fazer e naquilo que permitem que os outros façam. É indecente que um homem tente abusar de uma mulher (ou seja, tocar-lhe, beijá-la) quando a acha atraente? É indecente que uma mulher use o seu corpo (muitas vezes, o único poder que possui naturalmente) para conquistar o lugar que procura (trabalho, posição)? São perguntas que cada um tem de responder pela sua cabeça, de acordo com a sua educação, religião, moral, etc. Quanto a mim, a sedução é muito bonita e a palavra não tem muito poder. 

Viva a liberdade. 

2. Sem muito a dizer, digo: Viva o folclore do século XXI!


Cíntia Gil: “Carta de Deneuve parece ter sido escrita por velhas bêbadas”

Cíntia Gil, diretora do Doclisboa 

1. É uma questão extremamente íntima, tem a ver com as relações entre as pessoas, que são subjetivas, mutantes. A resposta é a que cada um terá no seu momento. Claro que depois há a questão do poder. E é evidente que há casos muito claros de assédio em que o poder é usado como modo de persuasão e invasão. Vivemos numa sociedade de caráter heteronormativo e patriarcal e acho que é preciso reinventar estas relações de poder, tanto para as mulheres como para os homens, para se ultrapassar esta ideia de um feminismo baseado na anatomia e para que a liberdade sexual passe verdadeiramente por quebrar a fronteira entre homens e mulheres e a forma estanque como os papéis foram definidos.

2. A carta de Deneuve é que me parece uma carta escrita, nem sei se isto se pode publicar assim, por “velhas bêbedas”. Compreendo-a, porque é escrita por mulheres que viveram numa época em que a questão da libertação sexual foi fundamental, mas de uma maneira que hoje em dia já não é a mesma. Traz uma questão importantíssima, e que tem sido posta de fora da equação, que é a questão do desejo, e outra que é a da censura e dos mecanismos de opressão que estão a ser usados por parte destas so-called feministas, com destruição de personalidades e julgamentos em praça pública. Há um texto muito interessante da Atwood sobre isso. E é antifeminista, porque é a reprodução dos modelos mais castradores e antiquados desta sociedade.


Cláudio Ramos sobre #MeToo: “Achei o discurso da Oprah oportunista”

Cláudio Ramos, apresentador e comentador 

1. Vivemos um momento em que podemos achar delicado tentar seduzir sob pena de sermos mal interpretados. Acredito que a fronteira é posta quando se vê que do outro lado não há resposta. Percebo perfeitamente a discussão, mas acho que cada caso é um caso. Corremos o risco de perder a nossa capacidade de interagir uns com os outros com naturalidade.

2. Entendo e concordo com os dois lados. Acho fundamental que se tenham levantado vozes a contar o que acontece nos bastidores do cinema e da moda – mas atenção que acontece em todos os lugares. Acho importante que se grite, se fale, se denuncie, mas não compactuo com o facto de parecer que ninguém sonhava que isto era verdade. Toda a gente sabia o que se passava. Se não sabia, imaginava ou já tinha ouvido falar. Mas não tinha coragem de dizer. Entendo o silêncio das vítimas porque o medo faz isso. Mas não entendo o silêncio de muita gente que agora grita e quer aparecer e nunca fez nada. Foi por isso que critiquei o discurso da Oprah. Achei oportunista. Ninguém me convence que não lhe tinham dito o que se passava. Por outro lado, acho que a Catherine tem o direito de dizer o que pensa e muitas pessoas pensam da mesma forma. O alvoroço mediático nunca é bom para se fazer uma análise justa de nenhuma situação  e perdem-se boas mensagens no meio do barulho. E ‘assediar’ não é uma característica unicamente masculina. 


Fátima Lopes: “Acho que não se deve radicalizar e pôr tudo e todos dentro do mesmo saco”

Fátima Lopes, estilista 

1. A fronteira entre a sedução e o assédio é o consentimento. Sedução é um jogo entre duas pessoas que partilham as mesmas vontades e desejos. O assédio é unilateral, é irracional, muitas vezes, usado como uma tomada de poder que ataca e ofende a dignidade do mais fraco.

2. Acho que é necessário haver alguma prudência e, sobretudo, garantir a verdade e os direitos de todos os lados. Evidentemente o assédio é condenável e concordo com o movimento #metoo, sobretudo, porque se tornou uma chamada de atenção para o mundo e um grito de que não mais será tolerado e permitido. É, sobretudo, importante porque veio dar voz a quem não a tem e, muitas vezes, não tem capacidade para se defender. No entanto, acho que não se deve radicalizar e pôr tudo e todos dentro do mesmo saco, pode abrir portas a injustiças e condenações antes dos próprios julgamentos.