Eduardo Barroso: “Em miúdo, em todos os planos que eu fazia estava com Marcelo”

Operou Marcelo, o melhor amigo de infância, e nos últimos dias recebeu no seu serviço no Curry Cabral o seu segundo presidente, Bruno de Carvalho, que também foi operado a uma hérnia. A dias de completar 69 anos, Eduardo Barroso revela que já escolheu a data de saída do SNS. A despedida será um livro.  

Que memórias guarda do início da amizade com Marcelo?

Conhecemo-nos aos 16 meses no Lar da Criança da Bertinha Ávila de Melo, que era a diretora. Éramos grandes alunos, fizemos a quarta classe mas depois não nos deixaram fazer o exame de admissão porque não tínhamos dez anos feitos até setembro. Foi esse ano que nos aproximou.

Não foi aborrecido?

Não, nós é que dávamos aulas. E depois havia competições, os melhores jornais de parede. O Lar da Criança tinha os alunos organizados em quatro casas e a Bertinha convidava os melhores alunos para presidentes. Lembro-me de dizer-lhe que preferia ser tesoureiro na casa do Marcelo do que ser presidente da minha.

O que vos unia?

Não sei, alguma coisa tem de haver. Aqueles 11 anos de escola cimentaram uma amizade para a vida. Lembro-me de ter chorado imenso quando a minha mãe me pôs no Colégio Moderno e ele ficou no Pedro Nunes. Todos os planos que eu fazia para a minha vida, aqueles sonhos de miúdo, era sempre eu e o Marcelo. E mais as nossas amigas da altura, claro.

Estavam misturados?

O colégio era misto, o que era raro, mas tínhamos aulas separadas. Aliás o castigo que mais me marcou foi uma vez a Bertinha obrigar-me a ir de bibe de menina para uma aula das meninas.

Hoje seria politicamente incorreto.

E até tenho pena de dizer isto porque a Bertinha era uma pedagoga fenomenal. Mas tive esse castigo e lembro-me bem da razão. 

Qual foi?

Ter contado a um grupo como é que os filhos nasciam. Disse um palavrão. Tenho muito boas memórias, fiz a primeira comunhão.

Tive uma fase agnóstica. Não compatibilizei o ser de Esquerda com a Igreja. Sei que nunca perdi a fé porque mesmo na profissão pedi ajuda. Houve doentes que inexplicavelmente se salvaram

Manteve-se ligado à Igreja?

Tive uma fase mais agnóstica aí a partir dos 14 anos. A minha família estava presa ou era da Oposição, cresci num ambiente algo anticlerical e antifascista. Não compatibilizei muito bem o ser de Esquerda – pensava que era de Esquerda mais radical do que afinal era – com a Igreja. Nunca perdi a fé, mas deixei de ir à igreja. 

E voltou?

Sou católico, vou à missa nos momentos importantes. Tive uma filha adotiva que tinha 24 anos quando desapareceu e na altura isso fez-me também perder a militância católica, mas hoje estou bem comigo. Sei que nunca perdi a fé porque mesmo na profissão muitas vezes pedi ajuda. Houve doentes que inexplicavelmente se salvaram e acho que houve uma ajuda qualquer.

Milagres?

Uma intervenção. Há mais de 20 anos tive um doente que ia morrer porque eu não conseguia parar uma hemorragia num diagnóstico que não tinha indicação para transplante. Depois de fazer a receção do fígado tinha feito um tamponamento, deixado umas compressas para estancar a hemorragia. Mas sempre que ia buscar as compressas, tornava a sangrar e tinha de pôr novas. Tive de dizer ao doente e à família que não era possível tirar mais. Estava condenado a morrer porque as compressas iam infetar. Saí do quarto comovido, era meu doente há muitos anos. Quando estava a entrar no elevador, telefonou-me um coordenador de transplantes a dizer que tinham um fígado de 84 anos e ninguém o queria.

Era muito velho?

Há 20 anos era impensável fazer-se um transplante de um fígado com 84 anos, hoje fazemos. Pergunto qual é o grupo sanguíneo e era igual ao do meu doente. Voltei para trás e ainda me arrepia essa imagem: o doente estava num cadeirão, todos a despedirem-se dele. E fiz-lhe a proposta: a única coisa que podia salvá-lo era um transplante e eu não poderia gastar um fígado com ele porque a patologia não tinha indicação. Mas tinha aparecido um fígado que, se não fosse usado, iria para o lixo. Não hesitaram e viveu seis anos, morreu de outra coisa. O mais inacreditável foi que passados uns anos voltou a acontecer.

Outro caso assim?

Sim. Uma senhora que também não tinha indicação. Na reunião multidisciplinar falei no caso mais antigo e disse que não tínhamos mais nada a fazer a não ser, claro, se aparecesse outra vez um fígado que ninguém quisesse. ‘Ia a Fátima se acontecesse’, disse eu. Duas ou três horas depois, o meu número dois recebe um telefonema e diz que temos um fígado de 84 anos, precisamente mesma idade, que mais uma vez ninguém quer. E era do mesmo tipo sanguíneo. Pensei que ele estava a brincar. Às vezes fazemos um bocadinho de humor negro para exorcizar as nossas tristezas. ‘Penso que vais ter de ir a Fátima’, disse ele. Eu até lhe respondi: ‘Não se brinca com estas coisas’. 

Sou um bocado truculento, de exageros, tenho o coração ao pé da boca. Mas sou a antítese da arrogância. Sei que às vezes falo de mais, mas nunca mudei

Foi a Fátima?

Fui, não fui a pé, mas fui. 

Voltando a Marcelo, operou-o de urgência à hérnia umbilical no final do ano. Operar um amigo é diferente?

Não era suposto ser eu. A patologia dele era simples. Aliás, ele escondeu-me sempre esta hérnia.

Porquê?

Deve ter pensado: ‘Se conto isto ao Eduardo vai querer operar ou fazer-me operar’. 

Mania de hipocondríaco?

Acho que ele não é nada hipocondríaco, é um grande conhecedor de medicina. Como dizia noutro dia o médico dele e meu amigo Daniel de Matos, é uma vocação frustrada. Só tive conhecimento em agosto: fiz o diagnóstico por uma fotografia na capa de uma dessas revistas cor de rosa. Vi a fotografia na primeira página dele na praia e pareceu-me que tinha uma hérnia umbilical.

Foi imediato?

Sim, fiquei ofendido. Era uma coisa terceiro-mundista. Um homem culto, um homem fantástico, tem ali uma protuberância no abdómen… os meus cirurgiões jovens começaram logo a comentar.

Tornou-se conversa de corredor?

Claro, era uma indicação operatória formal. Mandei-lhe logo uma mensagem a perguntar pela hérnia. Respondeu: ‘Ahah, tenho há seis anos e vivo feliz com ela’, como quem diz, ‘não te metas nisto’. Avisei-o de que ainda arranjava um problema, porque podia haver alguma complicação e ter de ser operado no estrangeiro, num sítio onde não houvesse um hospital decente. 

E falou com o médico dele?

Claro. Ainda não tinha conseguido pôr-lhe a mão na barriga! Eu e ele convencemo-lo de que a boa prática médica era tratá-lo cirurgicamente. Não somos cúmplices deste desleixo. É uma pessoa que estimo muito. Fui eu que indiquei há muitos anos o Dr. Daniel de Matos ao meu tio Mário Soares. Acompanhava-o desde que me formei sempre indicando os melhores médicos. Uma vez a minha tia teve um problema grave gastrointestinal, dormia lá em casa e fui buscar os melhores infeciologistas. Na altura eu até era do MES e o resto da família que a ia visitar hostilizava-me um bocado. Dizia-se que eu era um perigoso esquerdista. E o meu tio Mário: ‘Mas o que é que querem que o rapaz seja?’. Mas eu rapidamente saí: percebi que não era a minha vocação e não me deixaram ser candidato a deputado porque era sobrinho de Soares.

No PS também não o aceitaram.

Isso foi antes. Eu e o Daniel Sampaio fomo-nos oferecer ao PS, queríamos participar ativamente. Não nos aceitaram e foi por isso que fomos para o MES.

O seu tio não interveio?

Não falei com o tio. A minha reputação era um pouco estranha. Para os comunistas na faculdade eu era um perigoso social democrata e depois para a família era um perigoso esquerdista. Era o advogado do diabo mas ainda hoje sou. Sou um bocado truculento, de exageros, tenho o coração ao pé da boca.

Às vezes passa uma imagem um pouco arrogante.

Sou a antítese da arrogância. Mas há uma coisa que me disse o meu amigo Marcelo na véspera de perder as eleições para a câmara de Lisboa. Eu tinha mudado de casa e ainda lá estavam umas coisas que não davam bem com a nossa personalidade, assim rococó de mais. E ele na brincadeira disse: venho das visitas às barracas e acho que estou a ir lentamente da minha posição da direita mais para a esquerda, para a social-democracia. E tu, pelo que vejo, estás a ir da esquerda para a direita. ‘Qualquer dia cruzamos’. A outra coisa foi ele queixar-se de que o debate com o Sampaio tinha corrido mal, não tinha feito as coisas como queria porque tinha seguido conselhos de um assessor. Foi aí que disse: ‘Às vezes tens o coração ao pé da boca e podes arrepender-te, mas nunca mudes’. Sei que às vezes falo de mais, que às vezes falo do que não devo, mas nunca mudei. 

Voltando à hérnia, por que diz que não ia operar Marcelo?

Não ia operar um irmão muito chegado, não era necessário. Chamei uma colaboradora do ambulatório, a dra. Paula Tavares, e apresentei-os. Era assim que faríamos com qualquer outro doente. Ela foi vê-lo numa quarta-feira e marcou-se a operação para a quinta-feira da semana seguinte, 4 de janeiro. Até poderia estar na operação para tirar um pouco o stresse da colega porque para ela não era o amigo, era o Presidente da República, mas ela ia superar bem isso até porque as pessoas têm de saber operar vips.

Fiz o diagnóstico da hérnia a Marcelo pela capa de uma revista cor-de-rosa em agosto. Eu e o Daniel de Matos não somos cúmplices deste desleixo da Presidência. Quando o fui ver a Belém estava muito aflito

Porquê?

Têm de ser tratados como os outros e há uma tendência a não estarmos com a mesma tranquilidade. Por causa da minha idade, experiência e ligação, entre ministros, primeiro-ministro e familiares já cá contam mais de 30. E vips não são só os ‘importantes’. Os dois vips mais importantes que eu operei foram as mulheres dos meus dois chefes, quer o dr. João Pena, quer o dr. Câmara Pestana. Isto é que é uma grande prova de confiança. A operação mais stressante foi operar o dr. Câmara Pestana. Às varizes, veja bem.

Tinha receio de correr mal, de sair humilhado?

Não, mas é uma prova de grande confiança. Foi como operar familiares diretos do meu anestesista, a pessoa que melhor me conhece enquanto cirurgião. Isso é que são as minhas coroas de glória. Mas isto para dizer que quem ia operar Marcelo era a minha colega e a operação estava marcada. Mas depois houve aquela urgência e algumas pessoas tentaram caluniá-la a dizer que tinha sido ela que, naquela quarta-feira, ao introduzir a hérnia para dentro, manobra essencial para ter noção do buraquinho do hérnia, que tinha causado aquilo. 

Quando souberam que havia problemas?

O Presidente telefonou ao Daniel de Matos. Eu fui a Belém ver, já o Daniel tinha suspeitado que havia ali um problema sério. Em dois minutos disse ao Presidente que tinha de ser operado.

Marcelo esteve em perigo?

O que digo é que a complicação que tanto eu como o Daniel quisemos evitar entre agosto e janeiro não conseguimos evitar. Quando soube o diagnóstico devia tê-lo pressionado mais. 

Acha que o Presidente aprendeu a lição?

Acho que ele se pudesse tinha protelado aquilo. A ironia disto foi ter-se marcado para 4 de janeiro e no dia seguinte teve de ser urgência. Em Belém ele estava muito aflito. O Daniel de Matos esteve muito bem. Repare, um médico presidencial tem um poder especial.

Em que medida?

Eu estava com ele quando tomou a decisão de o Dr. Jorge Sampaio não ir a Timor por causa da pneumonia. Para um médico com menos personalidade ou menos coragem, decidir perante determinadas pressões seria mais difícil. Fui em algumas viagens quer do Dr. Soares quer do Dr. Sampaio para o caso de haver alguma situação mais complicada. Cheguei a fazer uma pequena intervenção cirúrgica ao chefe da casa militar de Soares no avião – era um hematoma infetado numa perna, estava a incomodá-lo, porque não drená-lo? Estendemo-lo no avião e pronto.

É um homem pragmático?

Os cirurgiões nisso são diferentes dos médicos: resolvemos. O meu pai era clínico geral, com vocação de pneumologia. O maior desgosto que eu lhe dei foi ter ido para cirurgia: ele receitava aspirinas, antibióticos e cirurgiões. Era este o prestígio dos cirurgiões…

Das pessoas que já perdeu, quem lhe faz mais falta?

Perdi uma irmã há dois anos, a Graça, primeira bailarina da Gulbenkian durante muitos anos. Faz-me muita falta. Médicos muito amigos. Agora estão a partir muitas. Eu próprio ainda cá estou mas percebo que isto é limitado.

Uma vez o Fernando Peres disse que eu era o ponta de lança com maior pique do futebol português. Não sei se teria sido o mesmo médico, mas tenho pena de não ter ido fazer uma época ou duas ao Oriental

Mas teve um susto há dois anos.

Isto da lesão na corda vocal? Não me assustou. Fiquei um bocado rouco, fui visto, acabei por ser operado no IPO. Sempre acreditei que não era nada, mas mesmo se fosse cancro não era operado, seria radioterapia e cura.

Foi um abanão forte o suficiente para deixar de fumar.

O meu otorrino enganou-me. Mentiu-me bem! [risos] Mas eu gosto muito dele. Para me convencer a operar, disse que depois talvez pudesse fumar o charuto. E depois disse que, ou não fumava, ou então não me tratava. E eu estou de acordo com ele. Arriscava-me a continuar e isto reaparecer de forma mais agressiva, ficar com uma traqueostomia. 

Largou então uma das suas imagens de marca, os charutos.

Há 20 meses. O charuto e o Cutty Sark que bebia todas as noites com cinco pedrinhas de gelo. 

Fumava 40 cigarrilhas.

Estava a fumar muito. Numa manhã já tinha fumado dez. No hospital não se pode fumar mas aqui no meu gabinete, onde não vejo doentes, fechava a porta, abria a janela e fumava ali. 

Outro seu colega no Lar da Criança, Francisco George, deve estar radiante.

Sim. Ele diz que me mudou fraldas porque é um ano e meio mais velho do que eu.

Depois estiveram juntos em Cuba no serviço médico à periferia?

Não, ele era do PC e foi depois para pôr ordem naquilo. Quando lá estivemos o MES teve 12%. 

Como foi os meninos de Lisboa chegarem a Cuba, Portugal profundo?

Vai sair agora um documentário. Para mim não foi uma experiência brilhante, tivemos um problema na Vidigueira com o presidente da câmara que era comunista, mas de resto o serviço médico à periferia foi uma experiência fantástica. Havia pessoas que nunca tinham sido auscultadas. Dizer a uma velhota alentejana que tinha de tirar as camisas para ser auscultada por cima da pele era uma coisa importante. E depois fui campeão pelo Sporting de Cuba.

Nessa altura ainda dividia a medicina com a bola?

Sim, joguei futebol na seleção universitária e no terceiro ano tive convites para ir para a Académica e para o Oriental, que estava na 1.ª Divisão. Foram falar com o meu pai que cobriu a oferta. 

 O meu tio Mário Soares desprezava o futebol, achava os programas uma coisa horrível. Hoje dou-lhe razão

Jogava em que posição?

Ponta de lança. E devia ser um excelente jogador. Uma vez o Fernando Peres, ex-jogador do Sporting e treinador da seleção de Medicina, disse que eu era o ponta de lança com maior pique no futebol português. O meu pai, conhecendo-me como conhecia, disse-me: estás a fazer um percurso brilhante, vais levar aquilo a sério e vais-te de perder.

Tem pena dessa outra vida que podia ter tido?

Não sei. Gosto da que vivi. Não sei se tinha sido o mesmo médico. Acho que pelo menos para o Oriental devia ter ido, fazer uma época ou duas. 

Como era a sua relação com o tio Mário Soares?

Era uma boa relação. Gostava que o tratasse por tiozinho. Quando estávamos de candeias às avessas e era só tio ele acusava logo. Dizia que eu era o único sobrinho que às vezes lhe levantava a voz. Tivemos algumas discussões.

Por causa de política?

Não. A última vez que discutimos política tínhamos ido almoçar uma feijoada à brasileira até com o meu primo João. Foi ele a convencer-me de que o Bush era péssimo e que o Iraque era uma tragédia, que não havia armas nenhumas, mas chegámos ao fim com ele a dizer-me que eu era irredutível. Mas politicamente nunca ligou às minhas coisas. Só queria saber quais eram as minhas ambições políticas e uma vez que eu lhe disse que a única ambição que podia ter era ser presidente do Sporting. Ficou ofendidíssimo. 

Mário Soares tinha clube?

Não, desprezava o futebol, achava os programas uma coisa horrível. Eu hoje dou-lhe razão. Depois de ter abandonado o programa com aquele energúmeno…

Pedro Guerra?

Pode escrever energúmeno. Só não acha que ele é um energúmeno quem é um energúmeno. 

Não é um bocado primário perder-se assim a compostura com as coisas do futebol?

Eu nunca perdi. Acho que isto atingiu um ponto… o único berro que eu dei, esteve aí no Youtube, foi com Fernando Seabra, de quem fiquei amigo, e sou amigo do Manuel Serrão, jantamos em casa uns dos outros. Mas não é como hoje em dia, as pessoas não se falam, como é possível falar-se ao Janela, ao André Ventura ou no meu caso ao Pedro Guerra? 

Como vê o presidente do seu clube usar expressões como lamber rabos para responder a um comentador?

Não foi ele que disse isso.

Respondeu com a mesma expressão.

Não me interessa nada. O Bruno de Carvalho é um excelente presidente do Sporting, salvou o Sporting da bancarrota. Merece ter um título relevante a curto prazo. É muito difícil porque partiu com um grande atraso. Quer dizer, quando ele tomou conta do Sporting, o Sporting esteve para não existir. 

O meu orgulho é ter formado uma equipa, para quando me retirar não termos de ir buscar pessoas ao estrangeiro ou a Coimbra

O Sporting tem-se cruzado com a medicina?

O Bruno de Carvalho foi tratado aqui neste hospital ontem [terça-feira]. Por coincidência, dois presidentes tratados aqui à mesma patologia.

Também foi de urgência?

Não, foi tratado no ambulatório pela dra. Paula Tavares. Felizmente não teve nenhuma intercorrência de urgência. Foi para casa logo, que era o que estava planeado para o Presidente dos portugueses. Bruno de Carvalho é presidente de 90% dos sportinguistas e acho que cada vez mais é de todos.

O Sporting e a medicina são dois amores no mesmo patamar?

A medicina foi uma paixão. Eu sempre disse que queria ser cirurgião, abria os ursos de peluche da minha irmã. Nunca quis ser médico, era cirurgião. 

E o Sporting?

O meu pai fez-me sócio quando nasci. Sou sócio 461. 

Só conviveu com o pai mais tarde.

Sim. O meu pai foi para a Índia e só voltou quando houve a invasão.

E como foi esse reencontro no início da adolescência?

Praticamente só o conhecia de fotografias. Demo-nos sempre bem. Não correu bem foi com a minha mãe. Doze anos sem ter vindo cá… O Mário, eu e a minha irmã fizemos um abaixo assinado para que eles se separassem. 

Não perdeu a fé no casamento.

Tenho um casamento de 10 anos e outro de 36. 

Acredita no amor para sempre?

Acredito que a relação de um casal que vive junto há 36 anos não é a mesma de quando começa, mas criam-se outros laços mais fortes que a paixão, que é limitada no tempo. O meu filho mais velho, para grande desgosto meu, separou-se agora. A primeira reação foi perguntar se não tinha solução: ‘Oh pai, eu tinha quatro anos quando te separaste da mãe’. Os pais não gostam de ver os filhos separados, não queremos que os netos sofram. Mas isto hoje em dia, não fiz a estatística, mas pelo menos metade da minha equipa tem um segundo casamento. E pensar que eu para registar o meu primeiro filho tive de esperar pelo 25 de Abril porque a minha mulher tinha tido um casamento anterior. 

Passam 50 anos do maio de 1968. Foi a Paris nesse ano.

Tinha lá o meu irmão. Não fui logo em maio, fui em junho ou julho. Parecia uma guerra civil. E era a explosão do amor livre. Eu com 18 aninhos vinha daqui reprimido. Cheguei a ter seis namoradas e não fazia nada com nenhuma, a não ser o permitido.

Beijinhos?

E muito às escondidas, nos cinemas. Chegar a Paris, entrar na Sorbonne e ver 30 casais a fazerem amor ao mesmo tempo…

Mas nos corredores?

Nas salas, era uma loucura.

Orgias?

Não eram orgias, eram relações de namorados assumidos. Tinha acabado de haver uma revolução e isso via-se em tudo. O maio de 68 foram guerras na rua, pedradas com a polícia. Sob o ponto de vista das minhas hormonas, foi uma época muito feliz.

Apaixonou-se?

Tive uma paixão louca em Paris por uma amiga do meu irmão. Era casada mas o próprio marido achava normal que a mulher se tivesse apaixonado por mim. Fui fortemente assediado, mas ainda bem. O meu irmão também fazia propaganda.

Portanto as suas memórias são mais dessa libertação.

Claro que havia política, fui a manifestações, fugia da polícia, apanhei muitos cagaços, mas todo o dinheirinho que havia, ou era para comer, ou para ir ao cinema. Cá não havia filmes, não havia livros. O meu irmão era um homem muito de esquerda, penso que quando foi para fora era do PC, não o quero ofender, mas ainda hoje o Mário mantém-se um homem de esquerda. Não como o meu primo Alfredo que se tornou bloquista. Está ali no PS de esquerda. Sei lá, a gente não discute política, já não sei o que sou. 

Então?

Sei que a única vez que não votei no PS ou mais à Esquerda foi agora no Presidente Marcelo.

Imaginava-o nesse lugar?

Aos dez anos disse que ele havia de ser Presidente da República ou Presidente do Conselho. 

Por que dizia isso?

Achava que ele tinha qualidades invulgares. Aos dez anos, quando somos inteligentes, temos a mania que somos os melhores do mundo. Eu achava que era mais inteligente do que qualquer pessoa menos do que do Marcelo. 

E ele, que dizia?

Disse uma vez que eu tinha de ter uma especialidade em que a decisão tivesse de ser rápida, em que fosse importante a rapidez. E eu acho que era de mim, de facto, ter de fazer cirurgia de urgência, o transplante, o inesperado. Ele achava que as minhas melhores características eram tomar uma decisão correta rapidamente.

Uma boa intuição?

Sim, mais do que amadurecer e discutir muito. Às quartas-feiras temos uma reunião em que discutimos os casos clínicos. Eu mais rapidamente do que outro colega chego à minha proposta, o que não quer dizer que seja a certa. 

E é-lhe fácil dar razão ao outro?

Na Medicina? Não é nada difícil. Tenho uma grande vantagem, a única coisa profissional em que peço meças a qualquer médico ou cirurgião do país, que é ter formado uma equipa. Tenho sete ou oito cirurgiões que começaram comigo e que são muito melhores do que eu com a idade deles. Na cirurgia, só 10% é habilidade. Isto não está nas mãos. Eu não perdi a habilidade de fazer os nós. Mas fazer um transplante às quatro da manhã é um pavor – felizmente já não me chamam, mas durante muito tempo fiz e ensinei. Ter formado uma equipa significa que, quando me retirar, não temos de ir buscar cirurgiões ao estrangeiro ou a Coimbra. Disso é que me orgulho muito.

Faz 69 anos para a semana. Por força da idade, será o seu último ano no SNS. 

Posso ir até aos 70 por lei, mas não me vejo a vir aqui em novembro sabendo que em janeiro sou obrigado a sair. Não consigo conceber.

Porquê?

Não consigo. Nessa altura já não estou cá a fazer nada. Só tenho que preparar que para a minha sucessão não haja divisões e isto se mantenha. Criei um monstro. 

Fala do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação aqui no Curry Cabral?

Falo da subespecialização em cirurgia geral. Tenho alguns adversários de peso que acham que a cirurgia geral generalista ainda é hoje o futuro. Acho há muito tempo que isso é um absurdo total. Temos o serviço organizado de forma a que uns façam cirurgia hepato-bilio-pancreatica, outros colorretal, outros esófago-gástrica, outros bariátrica, outros endócrina. O que sobra é o que os anglosaxónicos chamam cirurgia residual. Eu chamo cirurgia geral generalista: o outro nome dá ideia de ser cirurgia de segunda e o Presidente da República não fez uma operação de segunda. 

Já sente a nostalgia da despedida?

Sinto. Fiz a festa dos 25 anos da transplantação em dezembro. Passei a pasta. Devemos fazer agora os 2000 transplantes. Em relação à parte do tratamento de tumores do fígado e pâncreas fora da transplantação, acho que posso dar muito ao país e na Europa.

Vai continuar no privado?

Vou continuar se houver alguém fora do SNS que ache que eu sou uma mais-valia, uma instituição com a qualidade que defendo. Ainda posso dar um contributo. 

Não sente que é hora de parar.

De maneira nenhuma. 

Mas estabelece para si um momento em que parará?

Sim. Também temos de perceber quando é que as qualidades não são as mesmas. Agora eu sinto-me a 100%. Ainda por cima, como deixei de fumar, acho que melhorei algumas capacidades intelectuais.

O que sente?

Sinto-me mais lúcido. Sinto-me mais vivo. Como lhe disse, sempre bebi um Cutty Sark antes do charuto. Como não posso fumar, deixei. Depois aconteceu outra coisa. Em casa nunca bebia às refeições, só no restaurante ou com visitas. Acredita que já não bebo? Não me apetece. Bebo cerveja sem álcool ou água da torneira. Tenho um prazer em beber água hoje…

E não compensou com nada? 

Não. Tornei-me às vezes mais chato. Nunca comia uma salada e tornei-me um maníaco das saladas. Eu que dizia que a salada era para grilos. E não como pão.

Com este ‘monstro’ que diz ter criado, reconhece que tem alguns anticorpos pela forma como foi levando a sua avante?

É claro que tenho muitos amigos e tenho inimigos, inveja. Mas acho que sou reconhecido.

Acha que se não tivesse ligações familiares e de amizade ao poder político teria conseguido?

Eu já era um dos melhores alunos na instrução primária, no liceu e na faculdade e a minha família andava aí pintada nas paredes que eu tinha um tio terrorista. Eu já era o melhor. Quando vêm dizer que foi o apelido ‘Barroso’ ligado ao poder que facilitou e abriu portas, eu antes do 25 de Abril já estava no top e tinha um tio que esteve preso e deportado, um avô que quase morreu na prisão, antifascista militante. 

Mas fez o grosso da sua carreira já depois do fim do regime.

Que culpa tenho? Nunca fui militante do PS.

Como vê a atual situação política?

Marcelo trouxe uma descrispação. Não tem dificuldade em dizer que é preciso estabilidade, não faz oposição ao Governo.

E a solução governativa?

Estou mais satisfeito do que com a anterior, mas dei-me sempre bem com todos. As grandes transformações profissionais da minha vida aconteceram em governos PSD. A ida para o Amadora-Sintra, a vinda para o Curry Cabral dirigir o serviço. Podia ser milionário. Troquei isso em janeiro de 2003 deixando o grupo Mello para vir para aqui, deixando de ganhar o dobro. Por isso é que fico indignado quando vejo um jornal que mete na primeira página o meu vencimento, que era o que eu recebia e correspondia a um documento verídico, mas porquê? Era um salário num mês a seguir a termos feito 20 e tal transplantes. 

O valor (24 mil euros brutos) refletia a sua parte pelos incentivos à atividade de transplantação?

Não são incentivos. É uma alternativa ao pagamento de horas extraordinárias. Se a atividade fosse paga em horas extra ganhávamos mais. Temos uma política de distribuição. Eu só tenho uma parte fixa, todos os outros têm uma parte fixa e outra móvel: quem vier fazer mais, recebe mais. Eu recebo a mesma coisa vindo ou não mas tinha de ser assim e é assim desde o meu chefe João Pena: foi isso que me fez ajudar e passar a pasta. Se eu só ganho se vier fazer o transplante, venho ajudar? Então faço eu já que cá estou. A época do dr. Pena foi de pioneirismo. A minha foi aproveitar isto para fazer um dos maiores centros da Europa. Sem desvirtuar o transplante, fazemos 500 receções do fígado por ano. Tenho cirurgiões que fizeram mais receções que qualquer cirurgião da idade deles no mundo.

Sairá satisfeito com o SNS?

Saio como grande defensor. Quando cheguei aqui, as condições para fazer o centro não existiam. Os doentes, para fazer um exame de endoscopia, tinham de ir aos Capuchos. Radiologia de intervenção, que hoje fazemos mais de mil procedimentos/ano, não havia. Bati-me por isso e tiro o chapéu a Paulo Macedo que – é certo que reduziu as alternativas de pagamento nos transplantes em 50% – mas é responsável pela portaria que criou os centros de referência, para mim a reforma mais importante da cirurgia. O prof. Adalberto, com quem tenho uma relação de amizade e que é um perigoso benfiquista, felizmente prosseguiu essa reforma. Agora tem de ter efetividade, se não é uma farsa. Se houver um doente no Litoral Alentejano que tenha um cancro do pâncreas ou do fígado, o sítio mais perto para ser operado é Lisboa no Curry Cabral, não é no Algarve para não ter de fazer 300km.

E está satisfeito com o ministro?

O SNS não está como devia estar mas não tem nada a ver com este ministro, nem com o Paulo Macedo, nem com o Correia de Campos, tem a ver com dinheiro. As pessoas não podem dizer que era preciso controlar o défice e equilibrar as contas públicas e depois vir a direita protestar agora que se deixou de investir no SNS. Que há um subfinanciamento do SNS, há e é preciso invertê-lo. 

Mas gostava que, no momento de saída, o SNS estivesse mais forte?

Vai estar. Posso revelar que até lá o centro vai ter equipamentos novos. Já não é para mim mas vão ser três novos equipamentos e vão ser úteis sobretudo na radiologia de intervenção. São a prova de que algum investimento no SNS está a ser feito. Avaliações no geral não me compete, não sou ministro nem secretário de Estado.

Nunca foi convidado?

Tinha combinado vagamente com o Marcelo. Se alguma vez ganhasse eleições e constituísse governo, pelo menos convidava-me. 

O seu tio Mário Soares nunca tentou dissuadi-lo dessa amizade?

Nunca. Eu tinha uma aposta com o meu tio de 2000 contos de que o Marcelo haveria de ser primeiro-ministro ou Presidente da República antes do ano 2000. Perdi mas ele perdoou. Perdi por causa daquela estúpida demissão, porque o Durão Barroso ganhou e ele teria ganho. E foi por isso que Mário Soares perdoou a aposta. O Marcelo sempre foi um grande adversário e combateu Soares mas sempre teve por ele uma grande admiração. Depois da tomada de posse como Presidente, já estava o tio muito diminuído, ligou-me para lhe ir dar um abraço. Tenho fotografias desse encontro, um abraço muito simpático. Fiquei comovido. E por isso não me surpreendeu que tivesse lutado por aquele funeral e agora quando fez um ano, recém-operado, esteve na homenagem. É um homem emocional. 

Já tinha essa perceção.

Sim. Diz-se muita coisa do Marcelo, que a candidatura não foi espontânea. Sou testemunha, na minha cozinha, depois de um jantar, de ter de dizer que havia represálias se ele não se candidatasse. Não tenho a presunção de dizer que fui eu: fui mais uma gota entre várias pessoas que achavam que era um desperdício que ele não se candidatasse.

Marcelo liga-lhe de madrugada como dizem que é habitual?

Às vezes às quatro da manhã. ‘Não estás a dormir pois não?’.

Também dorme pouco?

Durmo profundamente. Mas vou dizer ao Marcelo que estava a dormir? Duas da manhã é o vulgar. Agora menos. Fui eu que tive de mandar uma mensagem quando soube que ele ia a Tondela a dizer ‘presumo que está tudo bem’ e disse-lhe para pôr a cinta. Ele respondeu com uma fotografia com a cinta colocada. Já lhe dei alta, mas gostava de ver a cicatriz, para que no próximo verão não apareça na revista.

Já decidiu em que data deixa o serviço?

Já, mas não lhe digo. Os meus colaboradores vão saber primeiro. 

Como vai ser a despedida? 

O mais natural será despedir-me com o lançamento de um livro. 

Memória mais feliz?

Talvez não haja o dia mais feliz. Entrar como cirurgião da casa aos 29 anos para os Hospitais Civis. Concorri com cirurgiões 10 ou 15 anos mais velhos. Depois o regresso de Cambridge com a noção de que sabia fazer transplantação hepática. Ao ir para Cambridge em 83 troquei uma vida já de grande qualidade, clínica privada, já tinha um Alfa Romeo. Tive de vender o carro, não havia os apoios da indústria farmacêutica que há hoje. Foi com ajuda da família e de uma bolsa que dava para pagar a renda de casa. 

De que tem mais saudades?

De estar de férias e ter saudades de operar. As saudades das cirurgias eram uma coisa patológica. Ao final de 15 dias começava a ter carências, a tremer as mãos, a sonhar com o prazer de operar. Isso passou-me. A cirurgia era como heroína. Agora já não é assim. Posso estar num mês de férias e gosto de voltar, mas não é a mesma coisa. No início, sobretudo no meu primeiro casamento, ficava tudo ofendido. Íamos com outros casais até médicos e eu a pensar em voltar para operar um estômago.