Sérgio Godinho. “Há que seguir em frente mas não esquecer o que ontem houve”

O país seria pior sem os discos do Sérgio Godinho, mas o passado é um país demasiado distante para servir de estância balnear 

“Não quero ver-te acorrentada/ sofrendo por tudo e por nada. Há de haver uma outra perspetiva/ Há de haver outra solução/ Para esta nação tão valente/ Há que ir em frente, nação valente”, observa Sérgio Godinho na canção que batiza a primeira coleção de novas cantigas em seis anos. A mensagem de alento de um observador do real que sempre usou o método de observação do real para refletir para dentro. E esta “Nação Valente” faz-se de cumplicidades: com o produtor Nuno_Rafael, Hélder Gonçalves (Clã), os pianistas Filipe Raposo e Filipe Melo; José Mário Branco, Márcia, Pedro da Silva Martins (Deolinda) e David Fonseca. Os concertos estão marcados para 23 e 24 de fevereiro no Capitólio, em Lisboa, e para 3 e 4 de março na Casa da Música, no Porto, mas a primeira rolha salta já no dia 2, pelas 18h30, quando se apresentar nos Armazéns do Chiado para toda a gente o (re)ver.

Esteve seis anos sem gravar um álbum de novas canções. Quis testar-se noutros artesanatos?

Fiz algumas canções, mas não para um disco meu. O “Tem o Seu Preço” para o [teatro] “Tropa-Fandanga”, que está no [álbum] “Liberdade ao Vivo”. Escrevi para outras pessoas, como a Cristina Branco, mas foram coisas pontuais. Todo o trabalho nas “Caríssimas Canções”, a partir de crónicas no “Expresso”, que resultaram num projeto global com disco e concertos, e o “Juntos”, com o Jorge Palma, absorveram o meu tempo.
E, depois, esse tempo criativo foi redirecionado para a escrita de ficção. Publiquei dois livros, um de contos e o [primeiro] romance “O Coração Mais que Perfeito”. Foram ciclos naturais, nunca fui de estar sempre a compor.

Não guardo canções na gaveta. Tenho apontamentos que podem redundar numa canção.

Mesmo neste disco, havia mais uma que ficou de fora. Em relação à pergunta, vai acontecendo. Senti um impulso em relação à ficção. Começou com os contos que, naturalmente, quis continuar com uma escrita de maior fôlego. Desenvolver personagens durante mais tempo para se autonomizarem de mim e perguntar-lhes para onde iam. Foi um processo natural, não programo ciclos. Até que senti que tinha vontade e necessidade de voltar às canções. Ao vivo, gosto de renovar o repertório. E a pesquisa que há de ser concluída em novas canções dá-me muito gozo. É outro mundo em que me meto.

A canção tem o poder necessário de síntese?

Gosto de trabalhar com duas matérias distintas, o que é necessariamente muito diferente da escrita de ficção, que tem as suas próprias regras. Mexemos com música – apesar de oito destas não serem minhas, as letras sim –, que tem códigos próprios, e a matéria das letras, que é diferente da ficção narrativa. Trabalho sempre com a rima porque me conduz para um outro tipo de narração. Não sei se a música é a arte que sintetiza tudo. Talvez essa seja o cinema, com banda sonora e imagem, mas tive necessidade de voltar a esta matéria. É um trabalho de joalharia, carpintaria e mecânica. Tem de haver equilíbrio.

Desde o “Coincidências” (1983) que não trabalhava com tantos parceiros. Porquê?

Surgiu de conversas com as pessoas que trabalham comigo, sobretudo com o Nuno Rafael. Senti que queria ser interpelado por outras linguagens e fazê-las minhas, a partir de uma conceção mais abstrata, que é a música, para uma mais concreta, que é a palavra. É como olhar para uma mancha e ver nela formas, caras ou corpos. Usei esse método no livro infantojuvenil “Pequeno Livro dos Medos”, que escrevi e ilustrei. Fiz manchas de aguarelas para partir do abstrato para o concreto. É algo similar à relação da música e da palavra. De um modo geral, gosto de trabalhar sobre a música, e depois encontro frases e cadências por si musicais. O trabalho é fazer com que seja um objeto uno que é a canção, até se tornarem inseparáveis. Uma não vive sem a outra. Trabalhei com o José Mário Branco, o meu parceiro há mais tempo. E gosto de trabalhar com pessoas novas como a Márcia, o Pedro da Silva Martins e o David Fonseca. Com o David já tinha cantado o “Sextos Sentidos” nos Silence 4 e a “Balada da Rita” no “Irmão do Meio”, mas nunca nos tínhamos cruzado criativamente. Apeteceu–me que me surpreendessem com o universo musical deles e fazer das canções minhas. No processo de criação, às tantas sinto que a música é minha, que já me apropriei. Os compositores ficam surpresos porque não estão à espera que vá habitar aquela casa. Dizem-me: “Parece que foste tu que fizeste.” E eu digo-lhes: “Acho que fui.” (ri) Canibalizo no bom sentido.

Sente-se bem em várias casas?

Sem dúvida, é mesmo isso. Sinto-me bem a fazer parte de outros universos. E também sou intrigado por essas outras linguagens de que não me lembraria. Por vezes, trabalho “por encomenda”, para teatro ou cinema. Uma determinada personagem tem de ter uma cara e, quando componho para outros, escrevo para a cara deles. Já fiz vários fados, apesar de não ser fadista. Claro que soará sempre a um fado à minha maneira, mas gosto de experimentar.

“Nação valente/ vamos andar para a frente”. A letra é bastante explícita.

É uma canção muito positiva. Pega na frase do hino. “Há que ir em frente/ nação valente”.

É uma canção, não diria política, mas que fala do país no pós-troika, a ressaca disso e a necessidade de avançar sem esquecer o passado.

Eu digo “esquece e lembra/ o que ontem houve” porque os portugueses são muito voláteis e, quando as coisas correm um pouco melhor, como penso que estão a correr apesar de sermos um país insuficiente e desigual, começa o crédito “à maluca” – com a ajuda preciosa dos bancos! – que, depois, as pessoas não podem cumprir. Seguir em frente, mas não esquecer o que ontem houve. Ainda estamos endividados por isso. A descrição ainda é atual, por isso digo: “Não quero ver-te endividada/ na contramão dessa autoestrada/ não quero pôr-te numa gaiola/ de mão estendida por esmola”. Estamos a sair desse período, mas nem de perto nem de longe estamos economicamente sãos.

Excesso de otimismo?

Não, o povo português precisa de balões de oxigénio. Em “Só Neste País”, eu digo “a transitar entre o granizo e a combustão/ entre a euforia e a depressão”. Somos um bocado bipolares, mas há uma crença no país. O refrão di-lo mesmo: “Fronteiras antigas/ fronteiras abertas/ quero um país de ideias libertas”. É uma canção sem o fatalismo atribuído a Portugal.

Depois do Barnabé, da Rita e da Etelvina, voltou às personagens com a Mariana Pais.

Elas sempre estiveram presentes. O que não fazia era dar nome a uma personagem há muito tempo. Só faltou o número de contribuinte e a impressão digital. (ri)

A conta de Facebook.

A conta de Facebook! A Mariana Pais é uma rapariga de 21 anos em formação e que tem vontade de ter mundo – na idade dela, eu também tinha. Tem as levezas dos 21 anos, mas também tem momentos de reflexão. “Penso no futuro/ em morder pão duro”.

Costuma reouvir os discos?

Pouco. O que acontece é que por vezes, quero recordar ou reouvir uma canção e acabo por ouvir cinco ou seis. Não há nada que me choque ou renegue. Há é linguagens que se vão atualizando: umas porque ficam datadas no mau sentido; outras, diria de uma maneira diferente, mas são compatíveis. Em “Com um Brilhozinho nos Olhos” mudei do Totobola para o Totoloto.

Ficámos sem Lou Reed, David Bowie, Leonard Cohen e Zé Pedro. Os heróis estão a ir-se embora?

Não, devagarinho aparecem outros. Há uma idade em que nos vamos embora. A comoção à volta do Zé Pedro foi muito grande porque ele era uma figura muito querida. Era amigo dele de casa. Ele viveu para lá do prazo por tudo o que passou mas, quando soube da notícia, não queria acreditar.

 

Espalhem a notícia. O melhor álbum de Sérgio Godinho desde o clássico dos tempos modernos “Domingo no Mundo” (1997) está aí. 

Esse vingava não só no arrojo mas também na pluralidade. “Nação Valente” é mais uno nas linguagens, apesar de oito das canções terem chegado por encomenda. Sobe o pano e o primeiro ato é como o adjetivo que lhe dá título. “Grão da Mesma Mó” tem carga teatral brechtiana, o que para uma composição de David Fonseca é surpreendente. O que não causa espanto é a capacidade de Godinho se apoderar da matéria-prima dos outros e torná-la sua. A desmaterialização da música é inimiga dos créditos e quem ouvir “Nação Valente” de mãos atadas, com acesso bloqueado ao livreto ou a pesquisar os autores na Internet, pode não topar as diferenças entre a escrita de José Mário Branco, Márcia, Pedro da Silva Martins ou os Filipes Melo e Raposo. O canto da boca de Sérgio Godinho continua a ser necessário para ver deixar cair o véu sobre um real confuso e bipolar. É o canto da lucidez em belíssimas canções deste tempo.