A Juventude morreu de velha?

A ideia de juventude perdeu prestígio e hoje confunde-se cada vez mais com noções superficiais de beleza física, moda e consumo. Mas se, por um lado, foi esvaziada, por outro tem-se dilatado ao ponto de, na cultura e nas artes, as ‘promessas’ de 40 e 50 anos se terem tornado um fenómeno comum.

[este texto resultou de uma correspondência com António Guerreiro]

O erro é, desde logo, assumir que todos tivemos uma. Que por um período, ainda que breve, nos tocou a todos essa «embriaguez sem vinho», o estado de furor que bate de frente com a caquexia que vai encostando o ritmo do mundo a uma mediania sufocante. Mas já em 1927, ano obscuro que, entre as duas Guerras, tresandava a «cadáveres mentais», ao procurar dirigir-se à juventude, Louis Aragon espantava-se por ver como essa idade crepuscular, da qual se espera a capacidade de indignação e força para mudar as coisas, se mostrava então pouco inquieta, aguentando bem o ramerrão do mundo. «Cagarolas como nunca. Descobriram o esquema. Lá estão eles pacificamente sentados no meio das máquinas infernais».

Décadas antes, também Rimbaud – o prodígio atemorizante que justificou que se dissesse que depois dele «todos os escritores precoces foram na verdade tardios» – se mostrou desapontado com essa juventude ociosa, escrava e submissa que, por delicadeza, deixa escapar a sua hora e, consequentemente, perde a sua vida.

Este adolescente atroz, cujo mito é indissociável do abandono da poesia com apenas 21 anos, deixou à sua passagem uma devastação de tal ordem que instigou uma reviravolta, não tanto na direção como na intensidade, no apelo de «desregramento de todos os sentidos», para que a arte pudesse ser resgatada antes que desse por si como mais uma «tontice», outro vício para adiar a morte.

Estas desilusões não serão partilhadas a menos que tenhamos depositado na juventude a esperança de que venha dela a grande ansiedade de novos horizontes, esses gestos de repúdio capazes de gerar no mundo a vergonha em relação aos seus velhos e desusados hábitos. E sabemos como, pelo menos desde os anos 60, a própria noção de juventude se robusteceu a partir de manifestações e comportamentos transgressivos, encarados, no limite, como obscenos, e que corporizavam o desejo de conquistar um espaço, realizar a sua identidade, o que, evidentemente, não podia ser feito sem forçar os limites, sem desalojar os anteriores inquilinos e, até, contestar a propriedade do senhorio.

Esse momento de definição só se alcançou, contudo, porque o abalo foi sentido e propagado pela cultura popular, que na degenerescência ganhou uma nova pregnância, assistindo-se à emergência não só de uma subcultura juvenil mas, por via desta, a uma série de choques que instauraram o campo de uma contracultura. Se a generalidade das artes repercutiram esta nova sensibilidade, uma estética que não abdicava de um intoxicante grau de ilusão, foi a música que se tornou o hino da nova condição. É o próprio Relatório sobre a Juventude da UNESCO em 1968 que, nas suas palavras-chave, nos apresenta os traços mais firmes deste desafiante rosto: confrontação, contestação, marginalização, contra-cultura, contra-poder.

 

Mastigados pelo pragmatismo

Se entendermos que a grande abertura que se verificou no espaço público e mediático e que o tornou mais plural e mais controvertido, espelha os conflitos que acompanharam uma série de mudanças sociais e políticas, é bastante claro, como, bem antes do início deste século, estas manifestações culturais, se não perderam o apelo, parecem ter perdido a sua eficácia no que toca a modelar os comportamentos. É possível que a cultura juvenil tenha ficado refém das tais máquinas infernais, de uma economia global que amadureceu e que soube afetar, limar as unhas ou mesmo superar (desanimando e desalmando) essas manifestações.

Hoje, o diagnóstico diz-nos que a juventude tem envelhecido muito mal. Pouco restou daquela década que ficou marcada pelo fenómeno hippie, pela derrota das grandes narrativas à boleia das quais os desígnios associados à ideia da Nação ou Pátria foram atirados para o sótão como velharias ideológicas, por essa que foi a idade clássica da juventude, «vivida com o entusiasmo moral de quem se sentia uma espécie de grupo messiânico, chamado a acabar com a opressão e a injustiça do mundo e a libertar a humanidade», como escreveu António Guerreiro.

Mastigados pelo pragmatismo, que nos deixou reféns de tudo o que não nos sendo dito descobrimos juntando as peças que a hipocrisia esconde mal, mais tarde ou mais cedo, trocamos o quarto na república de estudantes, onde, de um desgraçado sofá-cama, cheio de queimaduras de cigarro e todo o tipo de nódoas, tínhamos uma boa vista para o futuro, e acabamos num T2 nalgum dos dormitórios do cinismo. E damos com essa frase quotidiana que invariavelmente acaba por conjugar alguma ou várias destas novas palavras-chave: desemprego, precariedade, penúria, ansiedade, sobrevivência.

Muito antes de os efeitos da crise financeira terem acelerado de forma dramática a perda de protagonismo da juventude enquanto contrapoder, António Guerreiro tinha já refletido sobre a sua neutralização, e no início dos anos 90, notou como «nas atitudes heterodoxas dos jovens não havia já transgressão mas apenas errância em relação a um estado de coisas estabelecido». Já em 2014 afirmou que tínhamos passado para «a época em que ser jovem significa ausência de projeto, aceitação dos limites, repetição», frisando como, «do grande espaço público, a juventude passou para a estrita cena privada». E remata: «A ideia de juventude desligou-se, aliás, de uma ideia cultural e ficou vinculada apenas a lógicas de consumo, de trabalho, e a modos de ocupação do tempo».

 

Youthquake, a palavra do ano

Se a juventude parece ter perdido o seu élan, aquilo que lhe conferia uma identidade substantivada, é necessário recuar ao início do século XX para compreender a forma como chegou a determinar a cultura daquela época, tendo aparecido em vários países europeus uma série de movimentos de juventude e de estudantes, produzindo esse efeito que agora se está a tentar recuperar, através de um rebranding, com os dicionários Oxford a elegerem ‘youthquake’ como a palavra de 2017.

A expressão cunhada pela indústria da moda, em 1965, viu-se repescada, ganhando outra persuasão para traduzir agora «uma mudança social, cultural ou política significativa consequente das ações ou influência das gerações mais jovens». A utilização da palavra terá aumentado 401% no ano passado, com o pico a coincidir com as eleições britânicas no passado mês de junho, quando os conservadores tiveram um resultado dececionante, atribuindo-se a subida dos trabalhistas à alta participação de eleitores mais novos.

Também as eleições na Nova Zelândia foram citadas como outro exemplo desta mobilização dos jovens em apoio à oposição, e Casper Grathwohl, presidente dos Oxford Dictionaries, foi mais longe nas explicações desta escolha, afirmando que se tinha partido da constatação destas alterações bem como do interesse linguístico da palavra, mas sublinhou que: «mais importante, para mim, numa altura em que a nossa linguagem reflete a nossa profunda inquietação e até o esgotamento nervoso, trata-se de uma rara expressão política que faz soar uma nota de esperança. Às vezes escolhemos uma palavra como a do ano porque reconhecemos que já deflagrou, mas outras vezes escolhemos uma que está a bater à porta, e queremos ajudá-la a entrar».

Apesar da boa vontade, o facto é que não só os trabalhistas não conquistaram uma maioria como o Brexit – um cavalo de guerra dos velhos que contraria os interesses dos jovens – continua a tropeçar sobre si mesmo, sendo difícil perceber se o tal sismo conseguiu mais do que fazer vibrar a cristaleira e arrancar suspiros àqueles que anseiam por um verdadeiro abanão.

O ponto é este: comparando o momento atual com o início do século XX, em que na Alemanha, por exemplo, os jovens lutaram contra a entrada na I Guerra, o que abriu uma linha divisória decisiva, com uma cultura própria e que se definia por oposição à dos mais velhos, é difícil vislumbrar hoje, entre a juventude, uma cultura com valores próprios e orientada por um sentido do ‘novo’.

Aquela foi, como é sabido, uma geração trágica, precisamente porque viveu intensamente o seu tempo, nas suas dimensões mais violentas – e não podemos esquecer que a I Guerra Mundial, revelando um poder de destruição até ali inaudito, deixou marcas profundas e gerou um grande pessimismo na consciência dessa juventude, que viu interrompidos os seus sonhos, as suas utopias.

Contudo, é preciso destacar que essa geração encarava a juventude como um valor em si mesmo, não a ideia da juventude como um «estilo», esta da geração pós-moderna que veio afirmar o primado das aparências, que se foi agudizando até um registo que só é digno de ser pensado como uma absurda auto-paródia e que passa pelo culto obsessivo da beleza física e da moda, vidas que se esgotam à superfície de si mesmas, mas uma juventude vivida como arte, e à sombra do «espírito».

 

Cometas de passagem

Não se pode, de resto, conceber esta noção desvinculada daquilo que foi o percurso das vanguardas artísticas, a grande efervescência no plano da criação literária e filosófica das primeiras décadas do século XX. Essa cultura que foi obra de jovens, que beneficiou do rasgo de uma série de personagens fortíssimas, que atingiram o pico entre os 20 e os 30 anos e que, em muitos casos, arderam fortemente e se apagaram antes de chegar aos 40 anos, morrendo ou definhando.

Walter Benjamin começa a militar nesses movimentos de estudantes e de juventude quando era ainda adolescente, e a sua obra, hoje tão influente, começou a ser escrita quando tinha cerca de 16 anos; Wittgenstein escreveu o Tractatus Logico-Philosophicus com pouco mais de 20 anos… São inúmeros os exemplos destes cometas, que fulguraram de passagem, mas o que é imperativo é notar que, contrariamente ao que se passa com a atual juventude, a identidade desta se norteava pelo imperativo da superação da cultura dos «velhos». 

Isto implicava um corte com a tradição, uma atitude perante a história de acordo com a qual esta só pode avançar através de grandes saltos, o que lhe conferia um alto valor filosófico e sociológico. 

Isto contrasta com a atual ideia de juventude, abatida e desfasada do seu próprio tempo, relegada para a sala de espera do poder, num longo estágio em que ser jovem é algo mais da ordem do decorativo, definindo-se pelo aspeto, pelo físico, pelas modas, pelos consumos. Ser jovem hoje não dá acesso a nada de verdadeiramente profundo ao nível da superestrutura cultural, social e política – a «cultura» é assim algo que não tem nenhum poder efetivo.

Tome-se como exemplo aquilo que se passa hoje na escola e na universidade, em que voltou a cavar-se um fosso enorme entre os professores e os alunos, e em que a diferença de idades é cada vez maior, até por razões demográficas. O número de alunos vem diminuindo e os professores, e por já não ser necessário contratar tantos, não precisam de ser substituídos. Não se renovando o corpo docente, os mestres estão cada vez mais alheados da cultura e dos interesses dos seus alunos, e, esta é, por isso, uma geração que viu a escola e a universidade – que deveriam ser lugares de irradiação de uma cultura jovem – tornarem-se lugares de inércia, determinados pela exigência de terem uma qualidade que assinala atualmente o alfa e o ómega da universidade: a «empregabilidade».

Face ao atual horizonte, em que a juventude fica meramente sujeita à aquisição de experiência – precisamente aquilo que antes repudiava, encarando a experiência como atributo dos mais velhos -, esta organiza-se muitas vezes como uma nova frente reacionária, também à esquerda, e muitas vezes em contradição com aqueles valores anárquicos que inspiravam as vanguardas artísticas. 

O ideal da juventude hoje passa pela formação para o trabalho e a competição para chegar aos lugares privilegiados na pirâmide social, algo que não podia estar em mais firme contradição com aquilo que foram os valores do «espírito» no princípio do século XX. Então, qualquer espécie de reivindicação profissional estava completamente ausente do horizonte da juventude, e as atuais ambições eram olhadas como uma traição da própria ideia de juventude, que se orientava segundo uma atitude desinteressada, desprezando tudo o que se organizava segundo os princípios de uma economia de utilidade e da busca da riqueza material.

Não há hoje sinal de um mais retorcido e anedótico esvaziamento do conceito de juventude do que assistir a forma como esta tem sido dilatada, abrangendo já, na área da cultura e das artes, como jovens e ‘promessas’ personagens que já conhecemos há décadas. Assim, não é de estranhar que nos periódicos balanços auto-celebratórios desta cultura anémica – como aquele que publicou há duas semanas o Expresso, assinalando os seus 45 anos, ou como fez o El País há alguns meses, quando Portugal foi o país convidado da Feira do Livro de Madrid -, na intenção de perscrutar o futuro, «saber o que aí vem e quem serão os grandes protagonistas das mudanças que se seguem», tenhamos visto uma vez mais a promoção de personalidades já nos 40 ou até 50 anos, e precisamente aquelas que, ao invés de um efeito de corte, garantem uma continuidade sem percalços da cultura dos «velhos». O que significa que vivemos uma época que não só conseguiu marginalizar a juventude, como ainda a rouba da sua identidade, envelhecendo-a, substituindo os seus heróis pelos seus caudilhos.

 


 

ALGUNS EXEMPLOS

O nascimento de um ícone

Antes de Miguel Ângelo se oferecer para ‘dominar’ um enorme bloco de mármore imaculado de Carrara adquirido no início do século XV pela guilda Arte da Lã para decorar a Catedral de Santa Maria del Fiore, já dois artistas haviam trabalhado nele. Primeiro, Agostino di Duccio, que abandonou a escultura após ter modelado os pés, as pernas e o tronco. Depois Antonio Rosselino, que não conseguiu também levar o projeto avante. A pedra ficou esquecida nas oficinas da catedral durante 25 anos, altura em que um jovem talentoso e atrevido se propôs fazer aquilo que dois mestres não tinham conseguido. A escultura com mais de cinco metros de altura foi destapada a 8 de setembro de 1504. O seu autor, Miguel Ângelo, tinha 29 anos e entrou de imediato para a posteridade.

 

Da fama à divindade

Quando morreu prematuramente, aos 37 anos, Rafael Sanzio era considerado quase divino, tendo deixado uma obra impressionante. Discípulo de Perugino, muito cedo se afirmou como um dos maiores pintores do seu tempo. Em 1508, com apenas 25 anos, foi chamado a Roma pelo Papa Júlio II para decorar várias paredes do Vaticano. Assim nasceram as Stanze, entre as quais se encontra a famosíssima Escola de Atenas, que o artista pintou quando tinha apenas 27 anos.

 

A versatilidade do génio moderno

O ‘wunderkind’ que redefiniu o campo do entertenimento moderno, e um dos artistas mais versáteis do século XX no campo do teatro, do rádio e do cinema, Orson Welles alcançou a fama com apenas vinte anos graças à espectacular obra radiofónica A Guerra dos Mundos, tendo filmado a sua obra-prima, Citizen Kane (1941) com apenas 26 anos.

 

A matemática da juventude

No livro Apologia de um Matemático (Gradiva), G. H. Hardy diz-nos que «nenhum matemático deveria esquecer que a matemática, muito mais do que qualquer arte ou ciência, é uma ocupação para jovens. […] Newton abandonou a matemática aos cinquenta anos, e já muito antes perdera todo o entusiasmo por ela; de facto, aos quarenta anos Newton reconhecera já que os seus grandes dias criativos tinham chegado ao fim. As suas maiores ideias, as fluzões e a lei da gravidade, surgiram por volta de 1666, quando tinha vinte e quatro anos – ‘naqueles dias estava na flor da idade e da invenção, e ocupava-me mais do que nunca da matemática e da filosofia’. Newton fez mais descobertas até perto dos quarenta (a órbita elíptica aos trinta e sete), mas a partir de então pouco mais fez do que polir e aperfeiçoar.

Galois morreu aos vinte e um anos, Abel aos vinte e sete, Ramanujan aos trinta e três, Riemann aos quarenta. […] Não conheço […] um único exemplo de um grande avanço matemático iniciado por alguém depois dos cinquenta anos. Se um homem já na idade madura perder o interesse pela matemática e for levado a abandoná-la, a perda não será por certo considerável, nem para a matemática nem para ele próprio». 

 

O pico de um xadrezista

O xadrez é um desses desportos cerebrais que nos mostra como as capacidades da mente estão em linha com as do corpo no que toca a atingir em tenra idade o expoente máximo. Numa entrevista recente, Garry Kasparov, que abandonou as competições de xadrez aos 41 anos enquanto campeão do mundo, lembrou que o xadrezista atinge o pico das suas capacidades por volta dos 25 anos.

 

O poster-boy da rebeldia

Tendo morrido aos 24 anos, pode atribuir-se ao facto de nunca ter envelhecido o ter-se tornado o ícone cultural que melhor personifica a ideia de rebeldia e as angústias próprias da juventude. James Dean é também, porventura, o primeiro mito jovem do cinema a empurrar definitivamente os trintões e quarentões charmosos, tipo Clark Gable, para a lista fúnebre das estrelas (de)cadentes.

 

Rock: O Olimpo dos Jovens 

Aos 18 anos, Elvis Presley era já um mito nos anos 50.  E depois de ele ter consagrado definitivamente a música rock como o hino supremo da juventude, além de toda uma mitologia de jovens heróis, a partir dos anos 70 surge o «Clube dos 27», o grupo de ícones da música que morrem com 27 anos: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain, Amy Winehouse…