Hugo Vau. “Ter sido pescador ensinou-me muitas coisas boas para a vida do surf de ondas grandes”

O surfista português relembrou o momento em que se lançou na “Big Mama”: “Se essa onda me caísse em cima, matava-me. Quase de certeza”   

Aos 39 anos pode ter batido o recorde mundial de maior onda alguma vez surfada, mas isso não é algo que invada constantemente o pensamento de Hugo Vau. Quando vai para o mar não é com o objetivo de quebrar recordes, mas sim de surfar. Apesar de andar pelas ondas gigantes da Nazaré há dez anos, o surfista português garante que arriscou muito mais a sua vida nos tempos em que foi pescador, uma atividade que lhe trouxe humildade, espírito de sacrifício e muito, muito sangue-frio. Praticou natação de competição, passou pela pesca submarina e é o pioneiro do tow-in surf em Portugal. A vida para Vau só faz sentido se meter água e os seus projetos para um futuro muito próximo são feitos à medida deste “Gigante”.

 

Quando surfaste aquela onda recebi uma mensagem, com o link do vídeo, que dizia: “Já viste este louco”? Tens noção de que, provavelmente, esse é o adjetivo que mais utilizam para te definir?

Sim, sim, pode dizer-se que é uma loucura, mas acho que é das loucuras mais saudáveis que se pode ter. Claro que para as pessoas que não estão habituadas àquelas condições é tudo muito estranho e é visto quase como algo mortal. Mas nós também temos anos de treino e tentamos, de certa forma, minimizar os riscos em que nos envolvemos. Tudo o que está ali tem uma razão de ser, sejam dispositivos de segurança, tudo o que utilizamos para a flutuação, as próprias pranchas que utilizamos, desenvolvidas pela Mercedes e pela Prio. Tudo isto são instrumentos que utilizamos para sobreviver, minimizar riscos e tentar que a surfada seja o mais agradável e segura possível.

 

O que motiva uma pessoa a querer ser surfista de ondas XXL?

O meu percurso foi natural. Se for de coração, mesmo que leves com uma onda de 20 ou 30 metros será agradável porque faz parte de uma coisa que adoras, que é o surf. O que me motiva para estar ali é surfar pelas razões certas, não pelo mediatismo ou pelo dinheiro, mas sim por gostar mesmo do que faço. No fundo, é a ligação com a natureza. As sensações que se têm a surfar uma onda de um metro são multiplicadas, por exemplo, por 30! Qualquer pessoa consegue fazer o que eu faço, tem é de dedicar muito do seu tempo e ter muito amor por aquilo que faz.

 

Voltando a 17 de janeiro, consegues lembrar-te da sensação que tiveste quando apanhaste a “Big Mama” ou só depois de saíres do mar e veres a reação das pessoas é que te apercebeste da dimensão da onda que tinhas acabado de surfar?

Estou muito habituado à Praia do Norte, já há dez anos que ando lá, e consigo perceber quando uma onda é mais vertical e quando demora mais tempo a descer. Quando as ondas são grandes, parece que o drop é interminável, e isso aconteceu-me naquela onda. Além de a “Big Mama” nunca ter rebentado naquele sítio e muito menos da forma como o fez, tão agressiva. O que aconteceu foi um cruzamento de duas ondas [vai fazendo o gesto com as mãos] no timing perfeito… Apercebi-me logo de que era uma onda que nunca tinha surfado antes e que nem nunca tinha visto nada assim tão perto.

 

As histórias que eu ouvia sobre esta onda eram contadas pelos pescadores. Em sete anos vi esta onda rebentar assim duas vezes”

 

Estavas à espera desta onda há sete anos. Em algum momento achaste que já não iria chegar?

São tantos factores num universo tão grande como é o mar, o oceano… A quantidade de coisas que se conjugaram para que estivessemos na água naquele dia… Eu e o Alex [Botelho] éramos para ter ido para Mavericks, ele para um campeonato e eu para participar num documentário para o Olympic Channel. Naquele dia fomos para a água, estivemos lá imenso tempo, e não desistimos. Parece que estava destinado. A onda tinha de chegar. As histórias que eu ouvia sobre esta onda eram contadas pelos pescadores. Em sete anos vi esta onda rebentar desta forma duas vezes, a 11 de dezembro de 2015 – em que ficou registado eu, o Andrew Cotton [surfista irlandês] e o Garrett [McNamara] a fugir de mota –  e esta que eu surfei. Eu estou lá [Praia do Norte] todos os invernos, todos os dias, e em sete anos só vi isto duas vezes…

 

Tu e o Garrett são pioneiros das ondas grandes cá em Portugal. Como se cruzaram as vossas vidas?

Eu comecei a fazer tow-in, esta vertente do surf rebocado, depois de uma viagem que fiz ao México, em 2003/04, e achei curioso porque nunca fui muito de acordo com as motas de água nas praias por causa do barulho e da poluição. Mas depois de ter tido contacto com este desporto no México, achei que realmente era útil e necessário. Há ondas que a partir de uma certa dimensão são praticamente impossíveis de remar. Em 2007 começo a fazer segurança na Praia do Norte, no campeonato Special Edition. De edição para edição, todos os outros elementos que estavam nas motos a fazer segurança iam mudando, menos eu. Fui ganhando cada vez mais experiência e em 2010 recebi um telefonema do Garrett a pedir para fazer segurança dele num campeonato de tow-in que ia realizar-se na Nazaré. 

 

É nessa altura que saltas da mota para a prancha?

Sim. Apesar de ser surfista, passei muitas horas a ajudá-los a concretizar os seus objectivos [ao Garrett e ao Andrew Cotton], mas depois acabámos sempre por rodar as posições. 

 

Em conversa com o Garrett, depois de apanhar a ‘Big Mama’, ele disse-me que é aquela onda que tem no seu imaginário”

 

Na tua perspetiva, qual é a função mais difícil, estar na mota como segurança ou na prancha?

A nível de pressão, onde não quero mesmo falhar é no resgate. Porque se eu cometer um erro enquanto estou a surfar, sou eu que vou pagar, com o corpo ou com a vida. Se eu falhar um resgate vou deixar um amigo meu numa situação complicada ou em perigo de vida, e carregar esse peso é algo que não quero mesmo.

 

Que tipo de formação é necessária para se estar numa mota de água a fazer segurança?

Olha… fui aprendendo. Também tive a sorte de me dar com pessoas com muita experiência. Acima de tudo é preciso tirar a carta de marinheiro [risos] e depois ir passo a passo. Claro que há técnicas de resgate que têm de ser aprendidas e que têm normas, mas também tem muito a ver com o improviso, cada caso é um caso. A pessoa que faz a segurança tem de ter calma e discernimento para tomar as decisões certas e não deixar que o medo invada a cabeça nas alturas críticas, isso é o principal.

 

O Alex Botelho, surfista que te fez segurança nesta última onda, tinha alguma formação?

O trabalho com o Alex foi diferente. Ele não tinha muita experiência a conduzir motas, o foco do Alex foi desde sempre o surf de remada. Quando formámos equipa tentei passar tudo aquilo que tenho aprendido nos últimos dez anos. No mundo empresarial, nas equipas e em meios muitos competitivos nunca ensinam tudo o que sabem com medo que os outros os ultrapassem, e eu não. Num mês e meio ensinei ao Alex tudo o que sei e quero muito que ele fique bem melhor do que eu a conduzir a mota, porque isso só faz com que eu tenha muito mais segurança. É uma questão de crescermos juntos, de sermos inteligentes e de nos ajudarmos um ao outro, que é o que tem acontecido.

 

Pode dizer-se que há uma amizade antes e depois de se surfar uma onda daquela dimensão?

Eu e o Alex já nos conhecemos há dez anos, mas claro que o sentimento que tivemos depois de surfar aquela onda, a união e a magia que isso veio dar à nossa amizade, ninguém nos pode tirar. É único. 

 

E quando as coisas não correm tão bem? O que se deve fazer quando se é enrolado numa onda de 20 metros?

Não tens hipótese de fazer nada nem de ir para lado nenhum porque a força da natureza é tão grande que faz de ti o que quer. A nível físico, não tens capacidade para controlar nada, mas a nível psicológico, sim. A perspetiva com que se encara uma queda numa onda grande é o que diferencia tudo. Ou é o teu pior pesadelo ou uma coisa superagradável. No fundo, tudo isso faz parte do surf e esses momentos também têm de ser desfrutados como se fossem únicos. Quando se leva com uma onda de 20 ou 30 metros  é como que uma viagem para o desconhecido, não sei se irei sobreviver ou não, se venho para cima ou se não venho. É preciso estar o mais calmo possível e pensar que me preparei uma vida toda para aquele momento.

 

Até o videógrafo que filmou o recorde do Garrett, em 2011, disse que nunca viu nada assim”

 

Tens algum acompanhamento nesse sentido ou a tua relação com o mar é que ajuda a preparares-te para este tipo de situações?

Sim, penso que o à-vontade que tenho com o mar ajuda muito. Sinto-me mesmo bem e em harmonia no meio onde estou. Mas também faço treinos de apneia e de meditação, que às vezes são muito puxados. Tenho um amigo, o David, que tem um método chamado “life forces” onde treinamos várias bases, desde alimentação, respiração, descanso… Convidei-o para nos preparar não só física como psicologicamente.

 

Como é um treino de apneia?

Há várias maneiras mas, por exemplo, fazemos 25 metros a nadar muito depressa e depois outros tantos metros debaixo de água. Quando chegas ao fim respiras só uma vez, e o colega de equipa começa a dar-te voltas durante 15 segundos, voltas a respirar mais uma vez e depois vais novamente para debaixo de água e ficas mais 15 segundos. Este é um dos exercícios.

Quanto tempo aguentas debaixo de água?

Aguentei 4 minutos e 46 segundos da última vez que fiz o teste de apneia estática.

 

Esse tempo já dá uma grande ajuda para aquelas situações em que se leva com ondas grandes…

Nessas situações não ficamos mais do que 14 ou 15 segundos debaixo de água e, se ficar duas ondas seguidas, o que já é grave e mais puxado, fica-se talvez de 20 a 30 segundos. Claro que quando não se tem calma, esses 15 segundos rapidamente parecem cinco minutos. Uma coisa é quando se está num ambiente controlado e percebes que vais ficar sem respirar durante um tempo. Outra coisa é quando cais, bates na água e sai-te o ar todo dos pulmões. É como se fosse um gigante que está a agarrar-te e a torcer–te todo, e sentes a pressão desse gigante em cada centímetro do corpo. São ambientes diferentes.

 

Tentei sempre afastar-me da sociedade massiva, das multidões. Nos Açores há outra qualidade de vida”

 

Para além do surf também fizeste outras atividades, sempre ligadas à água, como natação, caça submarina e até foste pescador…

Nos Açores, ainda pesco, já não tanto de uma forma profissional porque já não estou lá tantas vezes, mas sem dúvida que os Açores são o meu ginásio natural. Passo meio ano nos Açores e tenho ali tudo à minha frente, o mar, a natureza. É um sonho. 

 

O que te trouxe a vida de pescador?

Trouxe-me humildade, trabalho de equipa e persistência. Na pesca é muito giro quando se apanham peixes, mas quando isso não acontece é uma grande chatice. Mas não se pode deixar de ir, mesmo que não se apanhe um peixe durante cinco ou dez dias. Tens sempre de voltar ao mar e tentar até que chega um dia que te compensa.

 

Num bom dia de pesca, como é que depois decorre o processo?

Eu sempre andei atrás de peixe de qualidade e não era preciso muito para ter um bom rendimento. Mas depois há a questão da lei da oferta e da procura. Por exemplo, fazes uma alta pescaria, mas depois tens o azar de quando estás a chegar ao porto de pesca e à lota, outros dez barcos fizeram uma alta pescaria. Quando pensas que vais ganhar 10 mil euros, afinal ganhas mil. Ser pescador é muito difícil, tens de ter a sorte de encontrar o peixe, de o apanhar e ainda de o vender bem…

 

Nasces em Lisboa. A partir de que momento é que decides mudar-te para os Açores?

Tentei sempre afastar-me da sociedade massiva, das multidões. Eu vivi em Lisboa, na Costa, e dava para ir à praia e à universidade, onde estava a tirar o curso de Psicologia. Só que depois comecei a ir cada vez menos à universidade e cada vez mais à praia. [risos]

 

Faltavas muito às aulas?

[risos] Se houvesse um dia de ondas mesmo muito bom… Era aquele dia, não há outro igual a seguir…

Conseguiste terminar o curso?

Não, não, faltam-me quatro cadeiras para acabar. Quando me reformar do surf tenho tempo para estar sentado e acabar isso. [risos]

 

Mas estavas a explicar a tua mudança para os Açores…

Ah, na primeira vez que fui aos Açores tinha 18 anos. Comecei a ir a um sítio na ilha de São Jorge que se chama fajã de Santo Cristo, muito bonito e especial. Na altura, não havia electricidade porque aquilo tinha sido abandonado por causa do terramoto de 1981, as pessoas foram todas embora. Para chegares lá ou vais de moto-quatro ou a pé, e ainda bem, vamos lá ver por quanto tempo. [risos] Mas era um sítio onde tinhas de andar durante cinco quilómetros com tudo às costas e onde se ficava completamente isolado. Sem telemóvel ou electricidade. A própria água que bebes ou com que tomas banho é só a das cascatas. Esse sítio marcou-me. A partir dessa primeira viagem, todos os meses de julho e agosto, quando aqui [Lisboa] estava uma confusão, eu desaparecia e ia para esse local. Fui fazendo isso até que, num dos regressos, passei na ilha Terceira, para visitar uns amigos, e acabei por ficar um pouco mais. Foi sempre tudo sem ser planeado. Entretanto, já lá estava há um mês e meio e pensei que tinha de fazer alguma coisa… Vi um anúncio no jornal que dizia que precisavam de um homem para andar no mar e lá fui eu. Foi nesse momento que iniciei a pesca profissional de que estava a falar, no porto de pescas de S. Mateus. Agora olho para trás e penso que isso, sim, era mesmo arriscar a vida…

 

Mais arriscado do que atirares-te às ondas gigantes da Nazaré?

O primeiro barco onde andei, nem por isso, que esse tinha rádio e as comunicações todas. O segundo era um barquinho com quatro ou cinco metros que só tinha um GPS, para indicar onde estávamos, e uma sonda, para medir a profundidade. Esse segundo barco nem rádio tinha. Para se ter uma ideia, quando iam três pessoas para o mesmo lado, entrava água. Era uma estupidez fazer aquilo que nós fazíamos. Eu ganhei muita maturidade na pesca, é mesmo uma profissão muito arriscada. As pessoas não têm noção, mas se cais é quase morte certa. Aconteceu cair uma pessoa do barco e eu consegui encontrá-la. Esse foi o maior susto que eu apanhei no mar, mas tive sangue-frio e consegui resgatá-la.

 

Infelizmente foram precisos sete anos para que um português fosse associado à Nazaré” [risos]

 

No surf nunca tiveste nenhum susto parecido?

Não, não, não. Nem nada que se comparasse. Cair uma pessoa do barco, no meio do oceano, num sítio com para aí dois mil metros de profundidade, à noite, em que não vês sequer dez metros à tua volta, foi uma situação em que me senti mesmo pequenininho. No inverno seguinte a esse episódio cheguei à Nazaré e foi mesmo aquela cena, “fogo, se encontro um gajo à noite no meio do oceano, então aqui, durante o dia e de manhã, numa praia…”. [risos] Tudo se conjuga e a vida do mar e de pescador ensinou-me muitas coisas boas para a vida do surf de ondas grandes. Acima de tudo, humildade, trabalho de equipa e sangue-frio, muito sangue-frio.

 

Ainda nos Açores, restauraste um barco com o nome de Gigante e criaste uma empresa que fazia tours marítimas e por terra. É um projeto ao qual ainda te dedicas?

Vou continuar agora. Fiz um ano de pausa porque a vida, entretanto, mudou. Mas a história do Gigante começa quando eu andava no mar e quando estava no porto de pesca e vi o barco. Achei-o mesmo bonito e tem realmente umas linhas diferentes do normal. O barco chamava-se Gigante porque tem 75 anos e esteve 45 anos na pesca. Quando o barco foi para a pesca profissional, no Porto de São Mateus, era o Gigante porque era o maior; hoje em dia, é o anão. [risos] Mas gigante continua a ser de alma, porque tem realmente muito carisma. Quando vi o barco gostei muito, comprei-o e resolvi recuperá-lo. Tive quase de desmontar o barco todo e refazê-lo, porque estava pior do que eu pensava e eu tinha de ter confiança naquilo que tinha por debaixo dos meus pés. Estive um ano e três meses para reparar o barco; se não o tivesse feito. todas as memórias, e são quase todas as do porto de pesca, teríam ido para o lixo. Passado um ano ou dois de ter o barco, o Governo Regional dos Açores abriu uma portaria em que nós podíamos começar a levar pessoas para fazer uma atividade chamada pesca de turismo. Tive de adaptar aquilo de uma forma mais comercial, portanto, as viagens eram feitas de dia e o tipo de pesca era o tradicional. Fazíamos um bocadinho de tudo, no fundo era desfrutar.

 

Mas pensas voltar a essa atividade já este verão?

Sim, vai estar disponível um conjunto de atividades. Hoje em dia, já tenho stand up paddle, passeios de jipe, trilhos pedestres, observação de aves e tudo aquilo que tem cada vez mais a ver com a natureza e menos com motores. Este ano também estou a pensar iniciar algo com a mesma empresa na Nazaré, mas isso ainda é segredo. [risos]

 

Posso pôr isso?

Podes, podes, [risos] eu é que ainda não posso dizer o que é.

 

Num dos vídeos que vi dizes que ir para os Açores é “um afastar dos males da sociedade”. O que queres dizer com isto?

Nos Açores há tanta coisa que ainda continua a ser como deveria ser em todo o lado. Poderes andar na rua sem teres o medo de ser assaltado ou deixares o carro aberto e ninguém mexer, por exemplo. Nos Açores posso ir para uma floresta às duas ou três da manhã sem achar que estou a ir para um programa perigoso. A qualidade de vida que se tem lá… Parece que as pessoas deixam os seus medos no Continente. Os medos não atravessam o Atlântico, podes fazer aquilo que quiseres sem prejudicar ninguém e também ninguém te vai fazer mal seja a que horas e onde for. Os Açores deveriam ser um exemplo para aquilo que se perdeu cá hoje em dia.

 

Até quando pensas que estás apto para continuar nestas “loucuras” das ondas?

O Garrett bateu o recorde do mundo com 45 anos. Eu tenho 40 agora e, por isso… pelo menos até aos 50.

 

O facto de não teres filhos deixa-te mais tranquilo para te meteres nestas aventuras?

Naturalmente que talvez fosse uma razão para pensar duas vezes. Mas podes pensar de duas formas: não vou porque deixo cá os meus filhos ou, por outro lado, posso ir porque já deixo cá filhos. [risos] Claro que queres viver, e todos nós que vamos queremos voltar. O objetivo disto é ires para a água, passares um dia agradável, apanhares as ondas da tua vida e voltares para casa, para perto da família, são e salvo. Esse é o objetivo e por isso é que nos preparamos tão bem.

 

Alguns futebolistas dizem, quando abandonam as carreiras, que não conseguem encontrar uma sensação igual à que tinham quando estavam em campo. Achas que no dia em que deixares a prancha tens soluções para encontrar essa adrenalina?

Sim. Quando não conseguir fazer surf, acho que consigo ir numa mota, mas em último caso fico cá fora a chamá-los para as ondas. [risos]

 

És aquele tipo de pessoa que era capaz de se lançar ao mar num barco à vela durante meses? 

Isso é tudo relativo. Eu tenho um amigo que está a dar a volta ao mundo sozinho há dois anos, agora está na Indonésia. Já teve duas ou três situações em que ia naufragando e estava sozinho, teve mesmo sorte. Ele é assim meio maluco, gosta muito de tempestades. Foi com ele, o Joãozinho da Consolação, que comecei a surfar ondas maiores. Mas para fazer o que ele faz… não sei. Quando estive nos barcos de pesca já me sentia fechado, o que até é estranho. Fechado numa imensidão daquilo que é a liberdade, mas num espaço fechado, numa coisinha pequenina onde tens imensa coisa à tua volta mas não consegues sair dali, e eu não aprecio muito essa sensação. É uma coisa que até posso vir a querer fazer, mas preciso de ter predisposição mental e de vida para isso. É uma realidade partir e não voltar, ou porque o barco vai ao fundo ou até porque conheces sítios novos e não queres mesmo voltar. Seria um desafio.

 

Voltando à tua praia, ou seja, à do Norte, na Nazaré: teres surfado a “Big Mama” pode dar-te entrada no Guinness. Isso é algo que invade constantemente o pensamento?

Não. Eventualmente, a nível de patrocínios poderá ser interessante porque hoje em dia, como se sabe, o mundo é regido por números e títulos, mas eu penso que o mais importante, e isso já está feito, foi ter surfado aquela onda e o passo que foi dado para outra dimensão nas ondas da Nazaré. 

 

Já estiveste por duas ocasiões (2015 e 2017) entre os finalistas dos WSL Big Wave Awards. Nessa altura, qual foi o tamanho das ondas? 

Nunca cheguei a saber porque, geralmente, só se fica a conhecer a altura da onda vencedora. 

 


Vau revelou que o maior susto que já apanhou nada teve que ver com o surf, mas sim com a pesca. Numa profissão que considera “muito arriscada”, o português lembra a noite em que um dos homens que seguia no barco caiu no oceano. Na hora do resgate, valeu a frieza do lisboeta para evitar males maiores

 

Como funciona o processo de medição da onda?

Tem de haver uma fotografia nítida onde se veja o surfista e depois multiplicam o tamanho do surfista pela onda. Têm de encontrar uma zona que seja a base da onda, e isso é discutível e relativo, e, na linha onde está o surfista, traçar uma linha recta da base até ao topo da onda, e multiplicam o tamanho do surfista, que geralmente põem com um metro e meio. 

 

Ok, mas sejamos sinceros, é muito difícil não bateres a marca do McNamara, certo?

Sim, se medirem não têm hipóteses, [risos] a onda é realmente maior do que todas as outras. Todos os que estavam na água ficaram completamente loucos e diziam que nunca tinham visto nada assim. As pessoas que estavam fora da água e que têm anos de Praia do Norte também dizem que nunca tinham visto nada assim, e até o Jorge Leal, o videógrafo que filmou o recorde do mundo do McNamara em 2011, diz que nunca viu nada assim.

 

Achas que quando se confirmar, em abril, que o recorde foi batido, o McNamara volta à Nazaré para tentar recuperá-lo? [risos]

Talvez sim. Nós já andávamos a falar desta onda há muito tempo. Em conversa com o Garrett depois de apanhar a “Big Mama”, ele disse-me que é aquela onda que tem no seu imaginário e que é essa onda que o faz sempre voltar à Nazaré. Uma semana antes, eu mandei-lhe um email a dizer que a “Big Mama” ia rebentar, ele não me respondeu porque estava lá focado na missão que nós tínhamos em Mavericks. Eu tinha as despesas todas pagas, mas pedi-lhes que me dessem dez horas para decidir e no dia seguinte, quando vi que a previsão se mantinha, disse-lhes que não ia. Eles disseram-me:  “O quê? Tens uma viagem de sonho que qualquer surfista gostaria de fazer e não vais?” E eu respondi: “Estou há sete anos à espera disto. Não vou virar as costas à Nazaré com uma ondulação destas a caminho.” Acho que estas ondulações ou até maiores farão com que o Garrett volte sempre. Não digo para bater recordes, porque nenhum de nós vai para a água com esse objetivo. Vamos surfar, vamo divertir-nos e vamos tentar superar os nossos limites.

 

Vais estar na Nazaré até quando?

Até meio de março, que é quando há hipóteses de entrar assim uma ondulação maior e também o Big Wave World Tour, cuja etapa estará em período de espera até finais de fevereiro. Eu nunca fui assim muito competidor, o primeiro campeonato de surf em que entrei na minha vida foi no ano passado. Fui convidado por toda a história que temos na Nazaré. É uma competição muito saudável e também uma forma de estarmos com outras pessoas do outro lado do mundo a partilhar ideias.

 

Agora serás sempre associado à Nazaré. O que achas disso?

Infelizmente, foram precisos sete anos para que um português fosse associado à Nazaré. [risos] É um orgulho para mim, que sempre fui muito bem recebido na Nazaré, é como se fosse a minha segunda casa. A Nazaré era um deserto, mesmo, até que em finais de 2013 houve como que uma reviravolta e até mesmo nos restaurantes. Há sítios onde vou em que tenho de dizer, “se não me deixa pagar, eu não volto aqui”, porque as pessoas fazem questão de não nos deixar pagar. Houve um senhor, e nunca mais me esqueço, que me disse: “Hugo, nós não vendíamos cinco refeições num fim de semana e neste que passou vendi 180!” Tudo porque havia ondas. No fundo, tudo isto foi bom não só para nós, surfistas, mas para toda a gente na Nazaré, desde restaurantes que estão cheios a pessoas que alugam as suas casas, aos hotéis. E mesmo os pescadores: como há mais procura dos restaurantes, já vão poder aumentar o preço de venda do peixe. Tudo isto melhorou a vida de toda a gente e de uma forma muito positiva.

 

E sentes que as pessoas reconhecem isso?

Sim, sim! Ainda agora, depois desta onda, mas mesmo antes disso. As pessoas já sabiam quem era a malta que andava ali todos os invernos, os “maluquinhos das ondas”. Há quem faça questão de sair das lojas e dos restaurantes para vir dar–me um beijinho e agradecer. 

 

Têm alguma alcunha para ti?

Não, sou o Hugo. [risos]