A vítima tem sempre razão?

Ensaio sério, de Francisco Bosco, com um título provocador, que embora parta da análise das lutas identitárias e do novo espaço público brasileiro, discute questões globais

Lembro-me que a primeira vez que se falou do abuso sexual das crianças da Casa Pia, foi numa reportagem no semanário Tal & Qual. A peça era assinada pelo jornalista Luís Marques, e a questão abordada era a da «prostituição infantil». Anos mais tarde, a designação daquilo que aconteceu mudou substancialmente, e passou a falar-se de «pedofilia». 

A mudança das palavras não mudou a brutalidade do abuso, mas revelou a tomada de consciência de uma sociedade em relação ao que de mais importante se passava na questão: não era o sexo ser pago, mas haver crianças que, antes da idade do consentimento, eram compelidas, por adultos, a determinados atos.

O livro de Francisco Bosco aparece numa época em que há uma onda de denúncia sobre o abuso sexual e coloca-se numa posição no fio da navalha: por um lado, nunca desculpa o abuso; mas por outro, não desiste de problematizar aquilo que o pode constituir, discutindo o que é matéria do livre arbítrio humano e o que é matéria das condições estruturais de poder.

Bosco coloca-se ao lado das lutas identitárias (antirracistas, feministas, LGBT), mas reivindica para si, que é um homem branco, hetero, cis (não mudou de sexo biológico) e de classe média alta, o direito de estar ao lado dessas lutas, e de poder discutir também as suas estratégias. Contesta o conceito do «lugar da enunciação» como único critério. 

Sobre a lutas de classes e a constituição dos sujeitos da luta, Marx dizia que a emancipação dos operários seria obra dos próprios, ou não seria. Lenine sublinhava parte do que Engels e Marx já diziam, que é preciso ter consciência que se pertence a uma classe para se agir como tal, e que a expressão dessa consciência tem de ser trabalhada: para deixar de ser meramente economicista, para passar ambicionar tomar o poder e para mudar a sociedade.

Nenhum deles colocava em causa o lugar em que se faz o discurso: os operários têm a consciência de que são operários, primeiramente, porque vivem em determinadas relações de produção; mas os teóricos que pronunciaram essas teorias, a maior parte deles, não viviam nessas condições.

Aquilo que reivindica Bosco é essa possibilidade de participar numa luta sem ser explorado e de poder dizer que nem tudo o que dizem os explorados e discriminados – sejam negros, operários, mulheres ou gays – tem de ser imediatamente verdade, especialmente quando estamos a discutir acontecimentos individuais.

Nomeadamente em termos da questão do sexo, ele dá primazia à questão do consentimento e do livre arbítrio. O autor não nega a existência de um desequilíbrio de poder nas nossas sociedades entre homens e mulheres, mas põe-se ao lado da leva das feministas dos anos 60, que reivindicavam o direito e o poder de fazer sexo com quem quisessem; e discute e opõem-se às novas correntes feministas, que defendem que na nossa «sociedade patriarcal» qualquer forma de sexo heterossexual está à partida colocada numa relação de poder, o que faz de qualquer ato sexual, entre mulher e homem, uma espécie de violação. Como defende a antropóloga Gayle Rubin, citada pelo autor, este tipo de posições transforma qualquer sexologia numa «demonologia sexual».

Mas as preocupações de Bosco vão mais além, ele discute as estratégias dos movimentos identitários nas suas facetas bridging ou bonding: aqueles que pretendem conquistar a hegemonia fazendo pontes com outros grupos sociais, e aqueles que seguem uma estratégia de afirmação pura e dura da sua «identidade». O autor defende que as duas abordagens não são necessariamente contraditórias, mas que para ganhar é preciso chegar a uma altura de ter a maioria a nosso favor.

É engraçado como um livro que parte do Brasil e as formas como se expressam, num novo espaço público, as lutas identitárias brasileiras – a erupção das massivas manifestações de junho de 2013; o colapso do projeto lulista, de não enfrentamento direto das tensões sociais; e o aparecimento das redes sociais – seja tão universal nas suas consequências. 

Como lembra Bosco, em dezembro de 2013, antes de entrar para o avião, Justine Sacco fez uma piada, com pouca graça, para os seus 170 seguidores no Twitter, sobre Sida e negros. Quando desembarcou estava despedida e tinha milhões de pessoas a insultá-la. Um livro para pensar e discutir muito.