O fim do trilho branco. Em 12 horas apenas o mundo mudou no Irão

A capital parou. Escolas, escritórios, madraças, lojas: tudo fechado. O presidente Ali Khamenei mandou as pessoas para casa. Milhares de condutores atiraram os carros para a beira das estradas e enfileiraram-se, arrostando a tempestade com neve até aos joelhos

TEERÃO – Nunca um nome terá vindo tão a propósito nestes dias que fervem em Teerão: O Fim do Trilho. Deixem ficar assim mesmo, em maiúsculas, porque é essa a tradução literal do nome desta cidade indispensável. O lugar da última esperança para quem vinha no caminho de Rey, a velha capital hoje engolida por uma massa escura entornada no sopé das montanhas de Alborz, e destruída no séc. xii pelas hordas dos mongóis.

Feia, escura e, ao mesmo tempo brilhante nas fímbrias de neve que conseguem ainda brilhar ao sol que procura atravessar o bloco poluído contínuo e espesso que paira sobre os que aqui vivem como uma maldição.

Hoje em dia, Rey não passa de uma estação de metropolitano, Linha 1, assinalada como Sharhr-e Rey.

Pelo meio do caos do trânsito opressivo ouve-se algures o muezim à força de alto-falantes, no topo de um minarete, chamando para a última oração da tarde.

Gente, muita, muita gente, corações que batem ao ritmo do tráfego, a omnipresente imagem da torre de telecomunicações da avenida Imã Khomeni, uma espécie de obscuridade que magoa os olhos e nos impede de ver, com clareza, toda a autenticidade de uma cidade gigante mas, ao mesmo tempo, vibrante e com vontade de não se deixar aprisionar por um tempo que, por vezes, parece ter parado para sempre.

Teerão: O Fim do Trilho… Que fim? Que trilho?

Para lá da antiga Estrada do Xá há lugares de charme como The Roof, restaurante elegante, redondo, no alto de um edifício moderno, as mulheres limitadas aos nicabes, lenços de seda que lhes cobrem apenas os cabelos ou parte deles, faces coloridas de maquilhagens exageradas como que em desafio, luzes que se acendem a pouco e pouco.

Como se conhece um país? Uma região? Uma cidade? Como fazemos para nos sentirmos em casa?

Trazemos sempre dentro de nós essas perguntas a cada viagem.

Para mim há um fascínio difícil de descrever no Irão, país que atravessei em tempos de norte a sul e, depois, para norte outra vez, da beira do Cáspio a Xiraz e a Pasárgada, onde Manuel Bandeira era libertino amigo do rei: “Vou-me embora para Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei…”

Mas agora, quase 12 anos mais tarde, já não é Ormuz nem Isfahan, já não vou na busca ansiosa da cordilheira do Paropamisus e do Hindu Kuch ou de cidades como Xiraz, Tabriz e Kermanxá, Barfruch e Icbatana. Nem das montanhas do Fars e do Macrão, dos montes Jalavão e Solimão, das regiões do Corassão, do Mazanderão e do Farsisião, da embocadura do Chat-el-Arab e das ruínas milenares de Nínive e da Babilónia dos impérios de Dario, o emulador de Assurbanipal e Nabucodonosor, e de Ciro, o vencedor dos medos e dos lídios…

Trata-se de Teerão.

É apenas Teerão e só Teerão, o fim da estrada da viagem de uma tentativa de reconhecimento dos lugares e das esquinas, dos cruzamentos infinitos nos quais se entrechocam mais de três milhões de viaturas, agora muito mais de marcas japonesas ou coreanas, já sem um ou outro dos antigos Oldsmobile ou Studebaker, gargantas arranhadas por aquele fumo teimoso dos escapes, 15 milhões de almas que vivem dias de descontentamento, de desilusão, muitos outros de descrédito.

Grupos de homens atiram pazadas de alcatrão para a berma da Avenida Niyavaran, sujos, escuros, saídos da correnteza dos automóveis, emigrantes afegãos, muitos deles, mas também cada vez mais chineses, agora que a China e a Índia ganharam pontos nesta tentativa de domínio do jogo económico universal, o monopólio que tirou da pilha das cartas das consequências as sanções bancárias ocidentais e que faz com que o governo iraniano se vire cada vez mais para leste, tendo a Rússia já aqui ao lado.

O inimigo externo. Esse monstro volúvel sempre tão ao dispor de qualquer discurso barato de feira de quinquilharia política. Ainda há bem poucos dias, Holssein Zolfaqari, ministro do Interior, colocava as “provocações feitas pelos inimigos externos” no topo das preocupações do seu governo, apontando-as como uma das razões inequívocas que fazem o povo iraniano desconfiar dos seus governantes e sair para a rua em protesto, como tem acontecido recentemente em diversas cidades do país.

Alguém um dia escreveu que o bom jornalismo assenta bases nas perguntas mais certas. E as respostas? Que nos dizem as respostas?

O Irão é um país gigantesco de gente de todas as raças: persas, árabes, curdos, turcos, baluchis, lors, tribos nómadas dispersas por um milhão seiscentos e quarenta e oito mil quilómetros quadrados, por extenso.

E onde encontrar as respostas certas na extensão deste país que fez, como muito poucos outros, parte da história da cultura universal?

E o medo? Sabemos, a cada quarteirão, em que cama dorme o medo?

Não basta seguir pelas ruas, sentarmo–nos nas esplanadas comendo kebabs e bebendo chá de menta adocicado e ouvir as queixas de como o dinheiro desaparece por completo, sem explicação vinda daqueles que muitos odeiam, contrariados por novos reformistas também já odiados como sendo iguais que vêm apenas substituir os que lá estão.

Teerão vive intensamente e sofre a febre do dólar que vai subindo e baixando sem que a doença se cure.

Mas a vida muda. Como a vida muda depressa.

Bastou uma noite. Branca e leve, branca e fria, como na balada de Augusto Gil. De repente, durante a noite, o mercúrio baixou dos zero graus, a chuva transformou-se em neve e Teerão ganhou aquela aura feminina e branca que desperta a ternura nos homens. “Rouhani não poderia querer melhor do que isto durasse assim até dia 22 de fevereiro”, esfregam uns as mãos de contentamento e frio.

Dia 22 de fevereiro: dia da Revolução de 1979, comemorações do final da dinastia Pahlavi, reconhecimento oficial da República Islâmica.

Fugiu para o Egito, do Palácio de Nivaran e Saheb Qaraneieh, a cerca de 20 quilómetros do velho centro de Teerão.

Palácio de Nivaran e Saheb Qaraneieh: era aí que vivia Mohammad Reza Shah Pahlavi, Arya Mehr Shahansha (Imperador dos Arianos e Rei dos Reis), filho mais velho de Reza Shah, nascido em Teerão em 1919, xá da Pérsia entre 1941 e 1979, quando foi expulso pela revolução islâmica dos aiatolas. Depois de se ter divorciado da irmã mais velha do rei Faruk, do Egito, casou com Soraya Esfandiari, de quem se divorciaria também para casar com Farah Diba, a única que pareceu capaz de lhe fornecer herdeiros.

Tempos tão distantes no momento em que percorro a antiga Sha’s Road, pejada de árvores cobertas de branco.

Trilho branco.

Nos subterrâneos cada vez mais expostos das interações computorizadas convida-se o povo a sair à rua. Não para comemorar, mas para participar no movimento reivindicativo de uma Constituição que termine de uma vez por todas com essa tal República Islâmica que dizem minar os cofres do Estado e os bolsos do povo, que já vai passando fome, destinando verbas absurdas à constituição massiva de madraças nas quais os velhos imãs produzem novos imãs que produzirão, por sua vez, novos imãs. “Neste tempo que corre é mesmo a única coisa que se produz no Irão”, dizem–me com amarga ironia. Tudo o resto se importa. E o que se exporta faz falta, como é o caso da fruta ou da água, sobretudo a água, que escasseia cada vez mais a sul, lá para os confins de Khun-e Kajen, junto à fronteira com o Afeganistão.

Outros garantem que nada impedirá a manifestação em massa das pessoas descontentes, abandonadas, órfãs de líderes nos quais não creem e já não suportam, estejam eles no governo ou na oposição, de tal forma que parecem andar de mãos dadas numa frente comum de manutenção dos privilégios adquiridos há anos a fio. Em 2009 calculou-se que seriam mais de três milhões os que se espalharam pelas praças e avenidas de Teerão. Nem o frio nem a neve os deteve. As autoridades iranianas preveem que algo de parecido possa vir a acontecer, talvez ainda com mais fúria. Malhas que os impérios tecem. Foi na rua que cresceram, aos milhares, os detratores do xá, os que lançaram mão das greves, das rebeliões, das sabotagens, das barricadas às quais nem os facínoras da Savak, a sua guarda pretoriana, conseguiram opor-se.

A internet é uma aliada fundamental dos manifestantes, embora, de quando em vez, quase cirurgicamente, enfraqueça ao ponto de ser impossível simplesmente googlar qualquer banalidade de lana-caprina, animal que, aliás, se encontra por aí com ligeireza.

“Um manto de neve cobriu o Irão”, titula o “Tehran Times” na primeira página.

Acreditem! O mundo pode mudar em apenas 12 horas! Talvez resida aí a esperança.

Os carros não andam. Derrapam. Param. Os condutores encolhem os ombros e deixam-nos nas bermas das estradas e das ruas e seguem a pé o seu percurso, enterrando-se na neve até aos joelhos, lentamente, estranhamente, um pântano branco que entope a capital.

Fecham-se as escolas, fecham-se os escritórios, o presidente Ali Khamenei mandou todos para casa. Mas como regressar a casa?

Alborz, Zanjan, Qom, os subúrbios sobrecarregados de Teerão.

Acidentes multiplicados a cada quilómetro das vias de acesso.

As rodas deslizam ao mais leve toque do travão. A autoestrada entre Teerão e Keraj torna-se uma pista de carrinhos de choque das velhas feiras populares.

Filas de gente a pé. Mas gente! Milhares de pessoas vão enfrentando a tempestade, de cabeça descaída, ombros curvados, arrostando um vento gélido e flocos grossos que se pegam às gabardinas e aos casacos. A mistura entre o branco e o negro nas valetas: neve e poluição.

Volta e meia, miúdos gritando no meio de um jardim pintado de cal: não descalcinhos nem doridos, não em sulcos compridos de quem já não podia erguê–los. Brincadeiras simples de garotos encantados.

Teerão congelou.

O fim do trilho é agora alvo. Não o alvo. Já não oposição em capitais europeias preparando revoluções como no tempo do xá. As movimentações fazem-se dentro de portas.

Mas, para já, Teerão mudou.

Caiu-lhe em cima o linho do céu. Ninguém vai a lado algum. Esperam apenas. Que o céu volte a azular-se daquele azul sujo de fumos misturados e que os limpa-neves ainda vindos de outras eras abram os caminhos de regresso ao trabalho, às escolas, à vida formal e quotidiana de uma grande capital do mundo, com tanto de belo e tanto de feio e tão absolutamente fascinante que me faz querer regressar aos amigos que aqui criei, há 12 anos, quando aqui cheguei pela primeira vez, atraído pela sonoridade dos lugares.

Não. Não vou embora para Pasárgada, como da última vez.

Devolvo-me de novo a Lisboa. Cidade branca onde não cai neve como aqui.