Edmundo Pedro. O último sobrevivente do Tarrafal

Edmundo Pedro nasceu no Samouco (concelho de Alcochete) a 8 de novembro de 1918, três dias antes de as armas se calarem na Europa

“Quando olho para trás, julgo que fiz um percurso que valeu a pena viver (…). Olho para a minha vida e tive uma vida fantástica”. Foi assim que Edmundo Pedro, faz este mês um ano, resumia numa entrevista ao i quase um século de vida. Um olhar sereno, de missão cumprida, vindo do histórico do PS que confessava, no entanto, que gostaria de negar mais tempo à morte: “Gostava de viver até aos 150 anos. Se é uma questão de gostar, temos de ser exigentes”, brincou na mesma ocasião. Morreu há precisamente uma semana, no hospital da Cruz Vermelha, com uma pneumonia. Tinha 99 anos – completaria 100 para o final do ano – e, dessa vida que descreveu como fantástica, deixou muito para contar.

Edmundo Pedro nasceu no Samouco (concelho de Alcochete) a 8 de novembro de 1918, três dias antes de as armas se calarem na Europa. E, como quase todos dos meninos dali, começou a trabalhar ainda em criança, primeiro como aprendiz de serralheiro, depois no Arsenal do Alfeite. Tinha 13 anos quando entrou para Juventude Comunista.

Com 15 foi preso pela primeira vez, condenado no Tribunal Especial Militar. Ainda adolescente, viu o irmão João cair, morto à pancada depois de uma manifestação, recordou nas suas memórias publicadas em três volumes prefaciados por Mário Soares (Memórias: Um Combate pela Liberdade, Âncora Editora).

Nessa época, conheceu Álvaro Cunhal – foram eleitos no mesmo dia para a direção da Federação das Juventudes Comunistas. “Tinha uma grande admiração por ele, porque ele era um intelectual que tinha feito uma opção de classe – era assim que nós classificávamos – a favor dos trabalhadores”, contou na mesma entrevista.

Apesar da tenra idade, continuou a pelejar pelo ideal comunista e pelo fim da ditadura, lutas que logo lhe trouxeram pena mais pesada. Aos 17 foi o preso mais jovem de sempre a ser enviado para o Tarrafal, onde esteve dez anos dolorosos anos que o marcaram profundamente. “Vi morrer 33 pessoas, amigos, muitos deles jovens, quase da minha idade”. Esteve preso com o pai, Gabriel Pedro, militante comunista. “Ele preocupava-se muito com o meu moral. Estava sempre preocupado se eu me me ia abaixo. Tive momentos de grande amargura”. Pai e filho foram dos presos políticos que mais tempo aguentaram a ‘frigideira’, onde chegaram a estar 70 dias.

Ainda antes de sair do Tarrafal, Edmundo Pedro deixou o Partido Comunista. “A União Soviética, naquela altura, era o paraíso dos trabalhadores. Afinal, era uma ditadura terrível. Naquela altura estava completamente iludido”, reconheceu.

De volta a Portugal, não se afastou, no entanto, da luta para derrubar o regime. “Mais tarde participei no assalto ao quartel de Beja”.

Juntou-se ao PS em 1973, a convite de Mário Soares, e tornou-se no homem da mobilização do partido. Tinha a mágoa de não ter participado diretamente no 25 de Abril. “Lutei a vida inteira, desde os 13 anos, e participei em várias tentativas (para derrubar a ditadura) e, afinal, não participei naquela que teve sucesso”.

 Mas inscreveu o nome nas ondas que sucederam à queda do regime durante o período do PREC. Foi Edmundo Pedro quem organizou as grandes manifestações, como a da Fonte Luminosa em julho de 1975. E, na noite de 25 de Novembro, foi o operacional que recebeu as armas, depois de Ramalho Eanes ter pedido “o apoio do PS para a resistência”. Um caso que daria pano para mangas: foi acusado de contrabando e, mais tarde, o episódio foi descrito por Mário Soares como “uma armadilha”. Sobre ele, e sobre esse tempo, Manuel Alegre disse: “Sem o esforço que o Edmundo fez no PREC, provavelmente não teria havido consolidação da democracia”.

Não aceitou ser deputado na Assembleia Constituinte – arrependeu-se – mas viria a ser deputado por três vezes. E presidente da RTP entre 1977 e 78. Foi ainda dirigente do PS e continuou, pelas décadas seguintes, a participar nas iniciativas e a opinar publicamente sobre o partido – durante a liderança de José Sócrates, que esteve presente na sessão de homenagem, chegou a alertar para o silêncio de alguns militantes que temiam represálias.

“Viveu para a liberdade e morreu a sonhar com ela”, disse Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas durante a homenagem que antecedeu, na segunda-feira, as cerimónias fúnebres, no cemitério do Alto de São João.

Já António Costa destacou, na hora da despedida, o ativismo político do histórico: “Não sei mesmo se houve alguma tentativa de derrube do anterior regime em que ele não estivesse envolvido”. E Vasco Lourenço, o primeiro a discursar, salientou que a morte de Edmundo Pedro era uma perda tanto para a Associação 25 de Abril como para o Grande Oriente Lusitano (GOL). “Foi um símbolo da luta contra o fascismo. No sábado, desapareceu o último sobrevivente do Campo de Concentração do Tarrafal”.

Edmundo Pedro interessou-se pelo estado do país até ao fim da vida. E continuou sempre a ler, muito. Há um ano, na entrevista amplamente citada, orgulhava-se de ainda conseguir ler em cinco línguas. E contou o que andava a ler: Guerra e Paz, de Tolstoi.