O Estado da união num documento secreto

A postura diplomática que Donald Trump demonstrou no seu discurso à nação não durou muito. Os republicanos publicaram um documento para descarrilar a investigação russa. 

O Estado da união num documento secreto

Donald Trump levou o seu melhor Doutor Jekyll ao_Congresso norte-americano, onde na terça-feira fez o seu primeiro discurso do Estado da União. O_Presidente falou de unidade nacional – pediu-a, recomendou-a e negociou-a em troca do seu muro no sul da fronteira –, falou de “um novo momento americano” – um termo curiosamente estreado por Hillary Clinto nos seus dias de secretária de Estado –, falou fastidiosamente do estado da economia e do desemprego em mínimos históricos – uma tendência iniciada e amadurecida por Barack Obama –, prometeu modernizar o arsenal nuclear norte-americano, anular o acordo iraniano e, acima de tudo, fez por distinguir com nitidez os que à vista do seu Governo são cidadãos que merecem proteção e os que não. “Os americanos também são sonhadores”, afirmou, referindo-se pouco disfarçadamente às centenas de milhares de imigrantes chegados em criança aos Estados Unidos que ele expôs à deportação e que agora usa como moeda de troca para o muro.

O Presidente norte-americano discursou como raramente faz – seguindo criteriosamente no teleponto o discurso escrito por algumas das mais importantes figuras da sua Administração._Um ano de Governo Trump, todavia, ensina a tomar com precaução os sinais de contenção, as demonstrações de unidade e bipartidarismo e, sobretudo, a pôr em causa a “mão aberta” que o Presidente prometeu estender aos democratas que o ouviam. Os discursos inclusivos e bem-intencionados do novo Governo americano parecem ser apenas divergências de estilo reservadas a cerimónias oficiais. O de terça-feira, além disso, escondeu uma mensagem profundamente nacionalista de revisão das políticas de imigração aplaudido nas redes sociais, por exemplo, pelo antigo líder do Ku Klux Klan, David Duke. “Só este Presidente consegue transformar um apelo à unidade em algo tão fraturante” reagiu o senador democrata Michael Bennet, respondendo ao discurso de Trump. “Ao que parece, Igreja, Família, Polícia, Exército e o Hino Nacional são coisas que a esquerda odeia”, respondeu no_Twitter o filho mais velho do Presidente, Donald Trump Jr.

O verniz do doutor Jekyll não demorou a estalar. O mesmo Presidente que terça defendia os militares e forças de autoridade americanas como exemplos do que melhor há no país, autorizava na quinta a publicação de um documento secreto, redigido por um aliado seu no Congresso e no qual se defende que as pistas que fizeram nascer a investigação às ligações russas na sua campanha foram influenciadas e produzidas por democratas. Fê-lo contrariando os avisos incomuns do FBI, cuja direção atual foi apontada pelo próprio Trump, que defende, como o Partido Democrata, que o documento contém “omissões de material que prejudicam fundamentalmente a correção”. A oposição no Congresso tentou travar o documento redigido pela equipa do republicano Devin Nunes, mas não conseguiu. Os congressistas liberais no comité de serviços de informação, que autorizou a publicação, tentaram publicar um memorando seu, oferecendo contexto às alegações conservadoras, mas, sem maioria, viram-se proibidos de publicar a informação confidencial. O atual diretor do FBI e a mais destacada figura do Departamento de Justiça na investigação russa tentaram também dissuadir o Presidente numa visita pouco habitual à Casa Branca. Não conseguiram.

O documento foi revelado ontem à tarde. As alegações mais duras dizem respeito a uma autorização de escuta telefónica a um antigo responsável de campanha de Trump, alegadamente justificada com o dossier de influências russas sobre o Presidente que foi compilado pelo ex-espião britânico Christopher Steele e em parte financiado por um grupo ligado a Hillary Clinton. Democratas e uma boa parte da imprensa americana, no entanto, argumentam que o documento é uma tentativa grosseira de criar suspeitas em torno da investigação especial de Robert Mueller, que por estas semanas se prepara para interrogar o próprio Presidente dos Estados Unidos, depois de já ter entrevistado durante horas alguns dos seus aliados mais próximos.