Day-Lewis. No fim da linha, a salvação

Chegou às salas o último filme de Paul Thomas Anderson, Linha Fantasma. Um costureiro na Londres do pós-guerra interpretado por Daniel Day-Lewis, que diz ser este o seu último papel.

O anúncio não terá surpreendido de todo – Daniel Day-Lewis é conhecido pelas longas pausas a que se obriga entre filmes, e foram já várias as vezes em que ameaçou deixar a representação. Ainda em 1989, deixou o teatro com uma peça ainda em cena. Hamlet, no Royal National Theatre de Londres. À Time explicaria muito mais tarde:_”De certa forma estava a ver o fantasma do meu pai todas as noites, porque claro que quando se está a fazer uma peça como o Hamlet tudo é explorado a partir das nossas próprias experiências”, disse nessa entrevista de 2012. “Portanto, sim, claro, era uma [forma de] comunicação com o meu próprio pai, que estava morto”.

Já na década de 1990, depois de The Boxer, do irlandês Jim Sheridan, em que contracenava com Emily Watson, desapareceu durante cinco anos ao longo dos quais se dedicou à aprendizagem dos os ofícios de sapateiro e de carpinteiro. O mesmo voltaria a fazer após o filme seguinte – Gangues de Nova Iorque (2002), de Martin Scorsese, explicando o afastamento com o desgaste provocado pelo papel. “Como ator, aprendes, aprendes; filmas e filmas durante muito tempo; e depois és carne para canhão […] e então percebes que não aprendeste nada. E é difícil viver com isso”, dizia nesse ano ao Irish Times, que publicava um artigo intitulado “Daniel Day-Lewis deixa a indústria do cinema”. Depois de Lincoln, o anúncio de que tiraria cinco anos para estar mais próximo dos amigos e da família na sua quinta na Irlanda. E citava-o o London Sunday Times: “Quando termino um trabalho, é para este lugar [a quinta] que regresso como um refugiado […]. Um lugar onde sinto a liberdade para me deixar repousar se precisar por um período de tempo”.

Desta vez, foi um comunicado enviado à norte-americana Variety, no início do verão, ainda a meses da estreia de Linha Fantasma, o mais recente filme de Paul Thomas Anderson, que teve esta semana a sua estreia nas salas portuguesas, para uma decisão interpretada como mais irremediável do que das outras vezes: “Daniel Day-Lewis não trabalhará mais como ator”, avançava a representante do ator britânico, Leslee Dart. “Está imensamente agradecido a todos os que colaboraram com ele e ao público ao longo de todos estes anos. Esta é uma decisão privada e nem ele nem os seus representantes farão quaisquer outros comentários sobre este assunto”.

Meses depois, em vésperas da estreia de Linha Fantasma, viria o próprio, numa entrevista à W Magazine, falar sobre o que o tinha levado a tomar a decisão, discutida apenas com a sua mulher, Rebecca, filha de Arthur Miller. “Antes de ter feito o filme, não sabia que iria deixar de ser ator. Eu e o Paul [Thomas Anderson, o realizador] rimo-nos muito antes do filme, mas depois deixámos de nos rir, ambos esmagados por uma sensação de tristeza, que nos tomou de surpresa. Não tínhamos percebido aquilo que tínhamos feito nascer. Foi difícil viver com isso. Ainda é”, explicou naquela que continua a ser a única entrevista concedida depois do anúncio de que deixaria a representação depois deste filme, que aceitou invadido por uma vontade “súbita” de ajudar a contar uma história inglesa.

Uma questão de salvação

À data em que deu essa entrevista, não tinha visto ainda este que foi o seu segundo filme ao lado de Paul Thomas Anderson – nem tencionava vê-lo algum dia. E, como a decisão de emitir um comunicado em que anunciava o fim da sua carreira, isto é novo. “Se já me sinto melhor? Ainda não. Tenho uma grande tristeza. E é o sentimento certo. Estranho seria se este fosse um mero passo alegre em direção a uma vida completamente nova. Interessei-me por ser ator desde que tinha 12 anos e, nesse tempo, tudo o que não fosse teatro – essa caixa de luz – era sombra. Quando comecei, era uma questão de salvação. Agora, quero explorar o mundo de outra forma”.

Nascido a 29 de abril de 1957 em Londres, Day-Lewis teve como primeiro sonho ser artesão. Ofício que foi aprendendo até se ter estreado na representação no National Youth Theatre de Londres. Entrou depois para a escola de teatro do Old Vic de Bristol. Formação tradicional para um percurso que o levaria a Hollywood, que o consagrou como um dos mais aclamados atores do Método e dono de uma das mais consistentes carreiras do nosso tempo. De novo nomeado pela interpretação de Raynolds Woodcock neste Linha Fantasma, Daniel Day-Lewis é, ainda antes disso, o único ator da história distinguido com três Óscares de Melhor Ator (O Meu Pé Esquerdo, em 1989, Haverá Sangue, em 2008, e Lincoln, em 2013).

Conhecido (e reconhecido) pela forma criteriosa como escolhe os seus papéis, numa carreira que, desde a década de 1980, conta com pouco mais de duas dezenas de filmes, mais um punhado de séries, Day-Lewis recusou entrar em mais projetos do que aqueles com que se fez. Pulp Fiction, O Senhor dos Anéis, Batman Para Sempre, Sid & Nancy, Filadélfia, Entrevista com Um Vampiro (como Lestat, que recusou enquanto rodava Em Nome do Pai, mesmo sem antes ler o argumento e que acabaria entregue a Tom Cruise), O Exterminador Implacável: A Salvação. Mas há mais. A Steven Spielberg, por exemplo, disse várias vezes não até finalmente ter aceitado fazer Lincoln no filme que em 2012 lhe daria o seu terceiro Óscar de Melhor Ator.

A derradeira história inglesa

Foi daí que, cinco anos depois, conforme o prometido, partiu para a segunda colaboração com Paul Thomas Anderson no primeiro filme do realizador de Haverá Sangue (2007) fora dos Estados Unidos. Como protagonista para a história de Reynolds Woodcock, costureiro cuja história se crê inspirada na do basco Cristóbal Balenciaga. “A Inglaterra está profundamente enraizada em mim. Sou feito disso”, disse na entrevista concedida à W Magazine há dois meses. “Durante muito tempo, um filme feito em Inglaterra parecia-me demasiado próximo do mundo do qual tinha fugido – as salas de estar, os clássicos de Shakespeare, Downtown Abbey não me interessavam. Mas fascinava-me a Londres do pós-Guerra. Os meus pais contavam-me histórias de como era a vida durante o Blitz, sentia que tinha absorvido isso. Sou sentimental em relação a esse mundo. E o meu pai [Cecil Day-Lewis, que assumiu o prestigiado cargo de poeta laureado do Reino Unido de 1968 a 1972] era muito uma espécie de Reynolds Woodcok. Se um poeta não for voltado para si próprio, será o quê?”.

Linha Fantasma é então uma viagem à Londres de 1955, ainda a sarar as feridas da II Guerra apoiada na coroação de Isabel II. Tempo para famílias reais, para condessas, para herdeiras de fortunas, estrelas de cinema, enfim, todas as grandes senhoras da sociedade britânica a irem dar a uma casa. Desfile de mulheres que haveria de vestir o costureiro Reynolds Woodcock – e não havia outra como a Casa de Woodcock. Casa que geria a sua irmã, Cyril (Lesley Manville) e em que, palavras do realizador-argumentista, “até as regras têm regras”, numa ordem que um dia Alma (Vicky Krieps), uma jovem descendente de imigrantes de Leste, aparece para romper com a rigorosa ordem estabelecida.

Fim da rotina do obcecado Woodcock, da sua casa, como ele a conhecia – talvez mesmo a ameaça do seu próprio fim. Para um homem assim, para este retrato de um artista no seu processo criativo, mas também do processo de transformação contra o qual é empurrado pela chegada de Vicky, só um ator: Daniel Day-Lewis.

Diz Paul Thomas Anderson que o escreveu como uma “variação do romance gótico”, a explorar a luta de Woodcock e de Alma para “agarrarem e protegerem o seu amor”. Raramente juntos, quase sempre um contra o outro – e Woodcock sempre contra si próprio. Porque, no final, se o amor não tiver sido desgraça, terá sido a guerra. No mínimo. Tanto que, para Day-Lewis, travá-la neste papel para o qual foi aprender o ofício de costureiro foi tão avassalador que não voltará a haver outro. E nada disto passará despercebido neste Linha Fantasma, que é afinal, como o Hamlet que na década de 1980 o fez deixar o teatro com a peça ainda em cena, sobre fantasmas. E nem Paul Thomas Anderson nem ele vieram para os exorcizar. Pelo contrário.