Sismo de 1755. A catástrofe que teve mais impacto do que o naufrágio do Titanic

Eterno terreno fértil para discussão, há muito que nunca se saberá sobre o terramoto de 1755. E mesmo entre os historiadores não existe consenso sobre a sua real dimensão 

Os sismos que têm ocorrido no país nos últimos tempos fazem invariavelmente recordar o maior terramoto que atingiu o território português: o de 1755, que 263 anos volvidos continua a ser motivo de interesse, estudo e fascínio.

Naquela manhã de 1 de novembro tinha havido sinais, mas ninguém os sabia interpretar nem imaginava o que aconteceria nas horas seguintes. Sabe-se, por exemplo, que várias pessoas repararam que o nível da água dos poços mudara de forma estranha ou que o comportamento dos animais se alterara.

“A razão pela qual sabemos que houve esses sinais foi porque, no rescaldo do terramoto, uma das decisões do governo de D. José I, que contava já na altura com o apoio de Sebastião José de Carvalho e Mello – futuro Marquês de Pombal -, foi fazer um inquérito com uma dezena de perguntas, para enviar aos párocos em várias regiões à volta de Lisboa e no Sul”, conta ao i o historiador Rui Tavares, autor de O Pequeno Livro do Grande Terramoto, publicado em 2005.

A resposta a todas a perguntas sobre o evento, contudo, é algo a que nunca poderemos almejar. “Nunca viremos a saber, por exemplo, quantas pessoas morreram”, acredita Rui Tavares. 

A primeira catástrofe moderna O terramoto de 1755 deixou marcas a vários níveis. “Foi a primeira catástrofe moderna”, defende o historiador. Isto porque, no rescaldo da tragédia, a reação do poder político foi inovadora. “Foi a primeira tragédia em que o Estado considera que tem um papel preventivo e, depois desse papel preventivo, tem um papel de proteção civil. Prova disso é o inquérito que é feito”, explica Rui Tavares. 

Além de Portugal, o sismo afetou Marrocos e até a comunidade espanhola da Andaluzia. Por cá, o terramoto – cujo epicentro se acredita ter sido no Algarve – é conhecido pela violência e pelo rasto de destruição que deixou. Foi seguido de um tsunami, “que certamente não chegou até Campo de Ourique, como diz o mito”, mas cujas ondas “chegaram ao continentes americano, a cidades como Boston, e mesmo à América do sul”. 

Como resultado, muito se perdeu. “Desapareceu completamente, por exemplo, o teatro que existia na Baixa – a Casa da Comédia – e desapareceu o Hospital de Todos os Santos, no Rossio – “ficaram apenas algumas paredes e ainda por cima houve um incêndio e morreram bastantes pessoas que estavam internadas”, continua o autor, fundador do Livre. 

Os incêndios, por sua vez, tiveram peso especial na destruição. Sendo Dia de Todos os Santos, muita gente estava nas ruas da cidade em procissões, carregando velas acesas um pouco por todo o lado. “Duraram vários dias, até um máximo de cinco dias”, explica Rui Tavares.

Mas muito mais se perdeu em matéria de património. O Paço Real é um dos exemplos – situava-se na Praça do Comércio, conhecida na época por Terreiro do Paço, e o pouco que dele restou foi “destruído a balas de canhão porque se julgou irrecuperável”, conta o historiador.

Entre as perdas lamenta-se, também, a Ópera do Tejo, inaugurada em março desse ano. Era, segundo Tavares, uma das óperas mais ricas da Europa, “com tanto ouro do Brasil que os primeiros visitantes estrangeiros acharam que era até demais e que distraía os espetadores. O palco era enorme e na estreia havia 40 cavalos em cena”. Destruída foi  também a Basílica da Patriarcal – sede da Igreja em Portugal desde o reinado de D. João V (rei de 1706 a 1750). Além disso, desapareceram muitos arquivos, como o da Casa da Índia, e manuscritos.

A par de instituições e edifícios, desapareceram também ruas importantes, como a Rua Nova dos Ferros – morada da “Gazeta de Lisboa”, o primeiro jornal português – ou a Rua das Confeitarias, uma das mais famosas da Europa e “onde se vendia café, chá e cacau”.

A configuração da Baixa, essa, é hoje totalmente diferente do que era. “Era uma espécie de continuação da cidade medieval e era especialmente sinuosa, porque a sua disposição seguia os leitos antigos de rios que na época já eram subterrâneos”, diz Rui Tavares. Ainda assim, apesar de terem constituições totalmente diferentes, algumas ruas mantiveram os nomes, como a Rua do Ouro ou a Rua da Betesga.

Uma mudança “brutal” A crença cega no divino era, no século XVIII, generalizada. Por isso, quando a tragédia se abateu sobre Lisboa, não faltou quem defendesse que o que acontecera era castigo de Deus, tanto lá fora como por cá. A atitude pragmática bem ao estilo do Marquês de Pombal – de procurar causas palpáveis e não interpretando o problema pela via espiritual, usando para tal o dito inquérito – procurou exatamente contrariar essa tendência. O governo de D. José I foi, assim, protagonista de uma mudança “brutal”, nas palavras de Rui Tavares.

“Quis-se mostrar que a culpa não foi dos lisboetas, por serem maus católicos, mas sim, como se dizia na altura, que ‘o terramoto foi causado por causas naturais naturalmente causadas’”.

Para o historiador, o terramoto de 1755 teve mesmo maior impacto do que, por exemplo, o naufrágio do Titanic, em 1912. “O terramoto tem uma força filosófica maior. Mudou a maneira como se pensava no século XVIII, em parte, tendo sido aproveitado por filósofos de todos os sítios para defenderem as suas teses ideológicas”. 

Além disso, o facto de o terramoto ter sido sentido em vários pontos do globo, “provocou o sentimento de que as pessoas estavam a participar no mesmo evento ao mesmo tempo e de que faziam parte de uma comunidade humana geral, uma espécie de cosmopolitismo da experiência partilhada”, acredita Tavares.

Visões diferentes Se é indiscutível para vários estudiosos que o terramoto causou a destruição de inúmeros edifícios, vozes se levantam dizendo que não terá sido bem como se conta. Anísio Franco, conservador do Museu Nacional de Arte Antiga e autor de Lisboa Desconhecida & Insólita (2017), pelo menos, é uma delas.

“Essa ideia de que o terramoto destruiu tudo é uma ilusão, é mentira. Os projetos foram alterados, as pessoas vivem nas casas, precisam de mais espaço, de espaços distintos, de outro cerimonial, de outra vivência dos espaços e vão alterando ao longo dos séculos. É uma cidade que foi vivida. Nunca houve essa consciência popular de guardar, tirando a Casa dos Bicos, que até havia aquele adágio popular que dizia ‘Que não se perca a Casa dos Bicos’ […]”, dizia em entrevista ao SOL, em junho de 2016.

“Por exemplo o Paço, […] o interior ardeu todo. Mas porquê? Porque roubaram o palácio, atacaram, os ingleses, e depois resolveram deitar-lhe fogo para escamotear a desgraça que tinham provocado. Os terramotos em Lisboa são uma constante. Porque é que só o de 1755 é que…? Na verdade, o terramoto justificou a vontade do Pombal de fazer um novo plano para a cidade, o que é excelente”, defendia Franco. Uma outra versão da matéria, eterno terreno fértil para discussão…