Coreias. Dois funâmbulos sob a espada de Dâmocles

Kim Jong-un convidou o presidente sul-coreano a visitá-lo. É um convite simultaneamente difícil de aceitar e rejeitar que divide Washington e Seul

Bertrand Russell sugeria que pensássemos sobre as possibilidades da aniquilação do mundo pelas armas nucleares nos termos mais simples. “É razoável esperarmos que um funâmbulo caminhe sobre a corda por dez minutos, mas não seria razoável esperarmos que o faça sem acidentes por 200 anos.” O filósofo britânico escreveu-o em 1955, num período em que o cataclismo nuclear, mais que uma abstração, era uma verdadeira espada de Dâmocles pairando sobre milhões e atada a um fio que dependia, naquela altura, dos dois poderes armados com a bomba: os Estados Unidos e a União Soviética. O funâmbulo de Russell já caminhava sobre a corda havia dez anos. Percorre-a ainda, muito embora o mundo adormeça entre os atos.

Raras vezes o equilibrismo é tão nítido como neste fim de semana. PyeongChang está a menos de cem quilómetros da fronteira norte-coreana e, portanto, bastante na linha de pulverização às mãos das rudimentares, mas letais, bombas nucleares norte-coreanas. Seul, a pouco mais de cem quilómetros a oeste, também. E no entanto, um pouco como a um equilibrista não convém olhar para o chão quando está lá em cima, na tribuna de honra da cerimónia de inauguração dos Olímpicos de Inverno encontravam-se os agentes da destruição pendente e tantas vezes ameaçada. O vice-presidente americano, sob ordens de não sorrir, não sorriu. Atrás dele sorria, de forma surpreendente, a irmã de Kim Jong–un e grande enviada diplomática da Coreia do Norte. E o presidente sul-coreano, defensor de mais proximidade entre a ameaça e os ameaçados, era quem sorria mais.

Entre sexta e sábado deu-se a mais alta diplomacia coreana em mais de uma década. Não é possível discernir o seu efeito final na rota de conflito, mas em dois dias de encontros de bastidores caminhou-se uma distância improvável. No sábado, durante um almoço entre a irmã do ditador norte-coreano, Kim Yo–jong, a primeira da dinastia Kim a atravessar o paralelo 38, o presidente sul-coreano recebeu um convite de Kim Jong-un para ir a Pyongyang no verão e realizar uma cimeira intercoreana. Moon Jae-in reagiu com agrado, como, aliás, vem recebendo a suposta abertura norte-coreana dos Olímpicos. Mas também com prudência. Seul sabe que está a sós na tentativa de apaziguamento do vizinho do Norte e que os Estados Unidos e a História não estão do seu lado. Em 2000 e 2007, Kim Jong-il acolheu dois presidentes sul-coreanos na capital, ofereceu promessas sobre os programas militares e recebeu ajudas urgentes. Nada mudou no Norte e no Sul e os dois presidentes sofreram na volta. Pyongyang conseguiu as suas bombas, ganhou tempo e passou menos fome.

Washington afirma que a ofensiva de charme de Kim Jong-il se repete hoje com Kim Jong-un, que parece assistir aos primeiros efeitos brutais das sanções. O atual ditador, para além disso, tem muitas mais razões para acalmar as águas com o Sul num momento em que o presidente norte-americano é, por vezes, ainda mais beligerante que o reino eremita. O fim de semana, aliás, já lhe dá uma vitória. Enquanto a conselheira e irmã almoçava e assistia ao jogo da equipa unificada coreana de hóquei no gelo com o presidente sul-coreano, Mike Pence fazia uma visita de estudo pelos museus dedicados aos ataques terroristas norte-coreanos no Sul, levando pelo braço o pai do estudante americano que adoeceu mortalmente num gulag dos Kim.

Nestes Olímpicos, como explicava ontem o ex-ministro sul- -coreano dos Negócios Estrangeiros, Kim Sung-han, “a Coreia do Norte parece no caminho do ouro”. De uma assentada, diz em declarações à Reuters, dá aos Estados Unidos e ao Japão o papel de quem não deseja o apaziguamento, coloca um convite simultaneamente difícil de rejeitar e de aceitar ao governo sul–coreano, causa uma fratura de estratégia entre Seul e Washington e ainda recebe os aplausos mediáticos pela figura inesperadamente moderna e afável de Kim Yo-jong. “A sua delegação e atletas estão a receber todas as atenções e a irmã de Kim Jong–un dá-se a ver com sorrisos elegantes ao público sul-coreano e ao mundo”, prossegue o ex-ministro. “Por um momento, parecem ser um Estado normal.”