João Fernandes: ‘Não esperava tanto entusiasmo por estas pinturas’

Fernando Pessoa dá o mote para uma exposição sobre as vanguardas portuguesas do início do século XX para ver até 7 de maio no Museu Reina Sofia, em Madrid. João Fernandes, subdiretor do museu e co-comissário da mostra, fala sobre ‘a atenção e o entusiasmo’ com que estas obras de artistas nacionais foram acolhidas.

O Reina Sofia, o grande museu de arte moderna de Madrid, acaba de abrir as portas a um cortejo de artistas portugueses, como Amadeo, Almada, Eduardo Viana, Júlio dos Reis Pereira ou Mário Eloy.

Inaugurada na terça-feira por António Costa, a exposição Fernando Pessoa – Toda a arte é uma forma de literatura parte de conceitos literários do poeta para ilustrar a forma como em Portugal os artistas assimilaram e adaptaram as propostas das vanguardas europeias no início do século passado.

A ideia partiu de João Fernandes, subdiretor do museu espanhol, que falou ao SOL sobre o conceito da exposição, sobre a sua relação com a obra do poeta e sobre a sua vida em Madrid, para onde se mudou há cinco anos, depois de mais de dez anos na direção do Museu de Serralves.

Esteve na exposição que a Gulbenkian dedicou a Fernando Pessoa em 2012?

Estive. Mas esta é muito diferente. Não é uma exposição propriamente sobre o Fernando Pessoa, é uma exposição sobre a ligação do Pessoa com os conceitos de vanguarda do seu tempo.

Como se faz essa articulação entre a arte e a literatura?

De certo modo esta exposição apresenta as vanguardas de artistas portugueses a partir dos conceitos do Pessoa. Não podemos dizer que são consequentes deles, mas são contemporâneos. O Pessoa centrou-se muito na literatura, daí o título da exposição, mas a verdade é que ele se relacionou com uma ideia que era dominante nos novos conceitos artísticos desse tempo: a ideia de vanguarda. O Pessoa percebe que há um ar de vanguarda no tempo, através da inclusão de uma série de linguagens artísticas novas, que assentavam muito no que acontecia em Paris. Acontece que o Pessoa vai contrapor-lhes os seus próprios conceitos.

Pessoa estava a par do que se passava em Paris?

Suponho que recebia essa informação do Mário de Sá-Carneiro, ou através de alguns dos seus amigos artistas, principalmente o Almada Negreiros ou o Amadeo de Souza-Cardoso. O que é curioso é que o Pessoa não vai importar nem seguir a linguagem das vanguardas – vai criar as suas próprias vanguardas. E constrói uma série de conceitos, a começar pelo Paulismo. Hoje temos a perceção de como muitas das vanguardas começam na linguagem que o simbolismo representa, e o Paulismo é quase uma forma requintada de simbolismo na obra do Pessoa. A exposição apresenta as vanguardas dentro das suas raízes simbolistas, por isso há obras como o grande tríptico do António Carneiro que pertence à Fundação Cupertino de Miranda, ou alguns textos de Teixeira de Pascoaes que representam essa declinação muito curiosa do simbolismo que é o saudosismo português. Juntamente com o Paulismo, ele propõe o Intersecionismo, uma espécie de interseção de planos que é extremamente aberta. E vai gerar ainda outra vanguarda, o Sensacionismo: sentir tudo de todas as maneiras, o que é transversal à sua obra literária e aos heteronimos.

Qual a relação de Pessoa com as artes visuais? Temos ideia do tipo de arte de que ele gostava?

Pessoa escreveu sobre o Almada e sabemos que esteve em contacto com o Amadeo, mas as artes visuais não são um tema na obra dele. Não temos, por exemplo, nenhuma indicação de colecionismo. A relação dele com as vanguardas é uma relação literária, poética. Quando ele fala de cubismo, não fala de Picasso nem de Braque, fala de figuras como o Blaise Cendrars. Suponho que ele achava que a literatura era a arte suprema.

Que especificidades assume a vanguarda portuguesa nas artes visuais?

A vanguarda portuguesa é uma vanguarda periférica, ainda que com algumas ligações internacionais. No Amadeo, no Almada e no Eduardo Viana há aspetos curiosos. No Amadeo e no Almada há um certo diálogo com um classicismo do desenho que faz lembrar algumas coisas da Art Déco da época, e que de certo modo remete para a visão simbolista. E há outra coisa curiosa, que é uma procura do popular. O Amadeo usa motivos da cultura popular do seu tempo, como brinquedos ou artesanato, e essas manifestações populares vão também seduzir os Delaunay, que vêm viver para Portugal e aqui começam a matizar a sua pintura com temas populares portugueses. Esse é um aspeto que também encontramos no Pessoa, que escreveu poemas que se aproximam de formas populares. É encantador para mim encontrar esses paralelismos. Mas quer no Pessoa quer nas artes visuais há uma espécie de alternativa às linguagens dominantes [na Europa] que é muito interessante. Para mim representa uma primeira atitude, até com certo orgulho e autonomia, de uma periferia em relação aos centros artísticos.

Além dos nomes que referiu, que outros estão representados na exposição?

A exposição termina com uma segunda modernidade, que é a geração da Presença, onde encontramos o Júlio, o irmão de José Régio, o Mário Eloy ou o Manoel de Oliveira. Fernando Pessoa também se interessou por cinema e entre os seus papéis há um recorte de jornal sobre a estreia de Douro, Faina Fluvial. É assim que termina a exposição.

Esta exposição partiu de uma sugestão sua?

Sim, foi sugerida por mim. Discutindo com o Manuel Borja-Villel [o diretor] e com a Teresa Velázquez, a chefe de exposições, foi uma ideia bem acolhida porque faz sentido na estratégia do Reina Sofia.

Em que sentido se enquadra nessa estratégia?

O Reina Sofia é um museu que procura adicionar outras formas de olhar para a história. A história da arte foi contada muitas vezes a partir de lugares dominantes, por razões geográficas, sociais, de poder económico, etc. E, no século XX, o mundo da arte está muito para além desses centros. O Reina Sofia procura ‘descolonizar’ a história da arte do século XX e por isso há uma atenção muito particular ao que acontece na América do Sul. A apresentação de uma vanguarda portuguesa, periférica em relação às vanguardas mais conhecidas e dominantes, filia-se bem nessa investigação.

Não há o risco de os espanhóis considerarem irrelevante o que se passava numa região periférica como Portugal?

Não me parece, porque há aqui uma singularidade. E há obras extremamente interessantes. Não tivemos muitos artistas de vanguarda, mas aqueles que tivemos fizeram obras magníficas: o Amadeo, o Almada, o Eduardo Viana, o Santa-Rita configuraram casos interessantes de conhecer. E fiquei admiradíssimo com a receção entusiástica dos meus colegas do museu à obras das segundas vanguardas portuguesas. Não esperava tanta atenção e entusiasmo por estas pinturas.

O nome de Pessoa é muito conhecido em Espanha?

Pessoa é hoje um dos nomes consagrados da história da literatura. É muito lido, está muito traduzido, há uma grande atenção que atravessa vários contextos sócio-culturais e até chega aos países da América Latina. Posso chegar a Buenos Aires ou a Bogotá e encontro muitos leitores do Pessoa.

O seu interesse pela figura e a obra de Pessoa já vem de trás?

Eu estudei Língua e Literaturas Modernas, portanto o Pessoa passou muito pela minha educação. Agora, era um Pessoa muito distinto do Pessoa que se conhece hoje. Eu faço parte da geração, era ainda adolescente, que viu o Livro do Desassossego ser publicado pela primeira vez.

Foi descobrindo a atualizando a sua ideia de Pessoa ao longo da vida?

Posso dizer que sim. Recentemente li os contos, que antes nem sabia que existiam. Muitas vezes na minha formação tive a sensação de que o Pessoa estava algo comprometido com um certo nacionalismo que veio a desencadear o Estado Novo. E é interessantíssimo constatar que ele morre como um anti-salazarista convicto. Se não tivesse morrido em 1935, mais tarde ou mais cedo poderia vir a ter problemas com aquilo que estava a escrever nesta altura.

O funcionamento do Reina Sofia é parecido com aquilo a que estava habituado no Museu de Serralves?

É muito diferente. São equipas maiores, é um museu que tem uma coleção muito vasta. Há coisas positivas e coisas menos positivas. É um museu do Estado, com menor flexibilidade, porque temos de seguir normas da Função Pública, ao contrário de Serralves, que tinha uma gestão privada. Aqui as coisas são mais administrativas, têm de ser preparadas com mais antecedência. Às vezes tenho uma certa pena de não conseguir mudar as exposições até ao último dia. [risos]

Fazia isso em Serralves?

Em Serralves chegava a mudar exposições depois da inauguração. [risos] O Vicente Todolí fazia isso e eu também o fiz. Isso é mais difícil numa instituição como o Reina Sofia.

Que é uma máquina maior e mais difícil de pôr em movimento?

Exatamente. Temos de fazer concursos públicos para o transporte e a montagem de uma exposição com muitos meses de antecedência, de acordo com os calendários e a disponibilidade de outras instituições.

Já conhecia bem o atual diretor, Manuel Borja-Villel, quando ele o convidou para o Reina Sofia?

Já o conhecia há muitos, muito anos. Acho que a primeira exposição que fizemos em conjunto foi a da Lygia Clark [em 1998], quando ele era diretor da Fundação Tapiès. Depois colaborámos em muitas outras exposições. Em Serralves tentei aproveitar um circuito, com alguns curadores e instituições, que tornasse possíveis certas exposições na Península Ibérica. Colaborei várias vezes com o MACBA, em Barcelona, quando era presidido pelo Manolo, assim como com o Reina Sofia. Eram instituições com as quais fui construindo também uma certa cumplicidade e solidariedade, até porque a Península Ibérica está muito isolada da itinerância de grandes exposições.

Vem muito a Portugal?

Procuro ir com frequência. Tenho família em Portugal, e ao mesmo tempo procuro estar atento ao que acontece aí. Acho que o contexto artístico português oferece uma riqueza e uma diversidade ao nível de várias gerações que merecem atenção. Não sou o embaixador desse contexto, não é esse o meu papel no Museu Reina Sofia, mas há artistas que gosto muito de partilhar com as pessoas com quem trabalho. Só tenho pena que haja tão poucas instituições e coleções que ofereçam condições aos artistas que vivem e trabalham em Portugal.

Agora que vive em Madrid ficou com uma ideia diferente da cidade?

Fiquei com uma ideia muito mais profunda. Madrid é uma cidade que tem os seus segredos, que tem várias vidas. É uma cidade onde o espaço público é um espaço de encontro, as pessoas encontram-se na rua, nos bares, nos cafés, há crianças a brincar nas praças e nas ruas ao final da tarde. Vejo em Madrid uma vida popular que me fascina, que abre a várias culturas, porque é uma cidade ibero-americana também. O bairro onde eu vivo, o bairro Lavapiés, é um bairro de muita imigração, onde latino-americanos, africanos, ciganos, espanhóis – e alguns portugueses – vivem. É um bairro popular, mas que tem livrarias, quase uma dezena de teatros, etc., o que lhe dá uma particular vida.

Isso facilitou a sua integração?

Sim, sim. Fico fascinado com as coisas que estão a acontecer na cultura popular espanhola, com a permanente discussão de linguagens que acontece no flamenco, por exemplo. Desde que cá estou tem-me sido possível um conhecimento muito mais fino da cultura espanhola.