‘Monserrate foi decorada como se fosse um museu’

A caminho de Itália para fazer o Grand Tour, Francis Cook conheceu em Lisboa a sua futura mulher. Regressaria a Portugal muitas vezes e apaixonou-se por uma propriedade em Sintra que viria a transformar num verdadeiro museu. Maria João Neto, curadora da exposição Monserrate Revisitado, explica como nasceu o palácio e fala das festas que…

Em 1856, Francis Cook, um dos homens mais ricos de Inglaterra, adquiria a Quinta de Monserrate, em Sintra, outrora propriedade de uma família de vice-reis da Índia. Em colaboração com James Thomas Knowles, um arquiteto muito requisitado entre a alta sociedade inglesa, pegou no edifício em ruínas que ali existia e fez nascer um palácio tão sumptuoso e exótico quanto a vegetação circundante. A obra consumiu a soma astronómica de 600 contos de réis e nela participaram dois mil trabalhadores. Ao fim de dois anos, em 1865, o edifício de inspiração neoárabe que hoje conhecemos ficou pronto.

O proprietário tornou-se, desde então, um ávido colecionador e rapidamente o palácio se tornou o seu museu privativo. Paralelamente, dotou a casa de todas as comodidades proporcionadas pela tecnologia de então: água corrente, aquecimento, eletricidade e até campainhas para chamar os criados – no apogeu, trabalhavam na quinta de Monserrate centenas de pessoas.

Para celebrar o segundo centenário do nascimento de Cook (1817-1901), o Palácio de Monserrate acolhe até maio uma exposição que reúne alguns dos objetos e obras de arte da coleção do industrial britânico que outrora o decoravam. Conversámos com a curadora Maria João Neto sobre a génese do palácio, a personalidade do seu proprietário e o dia-a-dia requintado dentro daquelas paredes.

Em que circunstâncias é que Francis Cook adquiriu a Quinta de Monserrate?

A propriedade pertencia a uma família portuguesa de vice-reis da Índia, que a arrendou a um rico comerciante inglês do tempo do Marquês de Pombal, chamado De Visme, o qual havia recuperado uma primitiva construção fazendo um edifício ao gosto neogótico que então despontava em Inglaterra. Quando acaba as suas atividades comerciais em Portugal e se retira novamente para Inglaterra, De Visme vai subalugar a propriedade ao William Beckford, que era um escritor, um esteta, um diletante inglês bastante célebre na altura, quer pela sua excentricidade, quer pela sua grande fortuna feita nas plantações de açúcar que a família tinha na Jamaica. O Wiliiam Beckford tinha escrito um romance intitulado Vathek, sobre um califa, e tudo isso criava uma aura particular nesta época do romantismo, um ambiente bastante pitoresco.

Exótico?

Também. E que agradava muito aos ingleses. Este aspeto sai reforçado pela obra poética do Lorde Byron, que chama a Sintra ‘Éden Glorioso’, e até tem uma estrofe dedicada a Monserrate. Esta obra do Lorde Byron teve uma repercussão muito significativa no ambiente romântico internacional e o próprio Rei D. Fernando II certamente que o conheceria bem quando chegou a Portugal para passar a sua lua-de-mel em Sintra com a Rainha D. Maria II. Propriedades como Monserrate e o antigo convento de Nossa Senhora da Pena, que D. Fernando II compra e transforma no Palácio da Pena, eram cobiçadas pelo facto de serem citadas nestas obras de referência da literatura romântica daquele tempo. 

Nessa altura o Palácio de Monserrate já existia?

No momento em que ele compra a propriedade de Monserrate, no lugar onde está o atual palácio já existia um palacete que estava em ruínas. E Francis Cook teve a ideia de reconverter aquela propriedade, mas respeitando plenamente o que lá estava. Há sempre a preocupação de homenagear o espírito de Beckford e preservar a casa que ele tinha habitado. E, no fundo, ao encomendar ao arquiteto James Thomas Knowles para reformular a ruína, é isso que ele pede que seja feito: uma nova decoração, como que uma capa que é colocada por dentro e por fora, mas respeitando muito a pré-existência – os espaços ficaram praticamente na versão em que estavam originalmente.

O proprietário acompanhou de perto a elaboração do projeto?

Estou convencida de que sim, de que terá acompanhado a obra de perto. Francis Cook não era um encomendante qualquer, tinha uma grande sensibilidade para as questões de arte e terá certamente opinado, mediante as propostas do arquiteto. Como disse, ele desejava manter a estruturas praticamente intacta e criar estas ‘membranas’ decorativas, indo buscar elementos decorativos neoárabes – por exemplo, o padrão daquele corredor que une os dois torreões é retirado do Alhambra de Granada. Eu diria que se compreende isso tendo em conta a relação com o William Beckford e a personagem do tal califa do livro e os seus palácios.

Isso teria que ver com o imaginário do Beckford mas também com a própria história de Sintra…

É verdade. O próprio espírito da presença árabe estava muito vivo no Palácio da Vila, por exemplo, nos azulejos, bem como no Castelo dos Mouros. Aliás já o Beckford tinha valorizado essa presença em várias cartas que escreveu de Lisboa para os seus amigos.

De onde vinha a riqueza de Francis Cook?

A fortuna dele vinha do negócio de família. O seu pai tinha desenvolvido um negócio em torno da indústria têxtil. O Francis Cook não era o filho mais velho, era o segundo, e só depois da morte do pai e do irmão mais velho veio a assumir a chefia dos negócios, mostrando particular talento. Se a empresa já era próspera, ele tornou-a muito mais rica ainda.

Ele tinha negócios em Portugal ou vinha apenas de férias?

Ele veio a Portugal pela primeira vez em 1839, era ainda muito jovem. Estava a fazer aquele percurso do chamado Grand Tour, que os ricos ingleses faziam, e passou por Portugal a caminho de Itália. Aqui em Lisboa conheceu uma rapariga que era filha de um comerciante inglês que estava radicado na praça de Lisboa e veio a casar com ela. Já casado, vinha frequentemente a Portugal, talvez mesmo anualmente. Viria com certeza para Sintra e terá cobiçado a propriedade de Monserrate numa dessas suas estadas.

Numa altura em que não havia aviões como é que alguém podia viver em Inglaterra e ter casa de férias em Portugal?

[risos] Seria uma viagem demorada, feita preferencialmente de barco, embora eu possa aceitar que ele tenha feito algumas viagens de comboio.

Temos registo de festas, banquetes, bailes que houvesse em Monserrate durante este período?

Temos até fotografias curiosas do nosso fotógrafo Carlos Relvas, que devem datar de 1869-1870, em que se vê o Francis Cook e os seus convidados num baile de máscaras. Mais tarde, já depois da morte da primeira mulher, ele casa-se com uma americana, sufragista, muito mais nova do que ele, e uma figura muito mediática, mas também preocupada com os direitos das mulheres. Essa senhora vai promover grandes festas, não são só exclusivas à alta sociedade, mas também para as gentes locais, sobretudo para as famílias dos muitos funcionários da propriedade – havia muitos jardineiros, cozinheiras, criadas… E por vezes fazia-se distribuição de prendas às crianças e aos seus familiares.

O exotismo e luxo do palacete também se refletia no quotidiano da vida em casa?

Estou convencida de que foi a aquisição da propriedade de Monserrate que terá despertado em Francis Cook o gosto pelo colecionismo artístico. Bem aconselhado, ele vai começar a comprar e a constituir uma grande coleção de obras de arte. Estabelece a sua grande coleção de pintura na casa de Londres, mas a casa de Monserrate também vai refletir esse gosto. Sente-se que Monserrate foi decorada como se fosse um museu, e portanto todos aqueles espaços tinham um requinte na vivência quotidiana ao mais alto nível. Há todo um cuidado na disposição das obras de arte – sejam elas de escultura clássica, mobiliário ou porcelana oriental – e paralelamente a estas obras de arte Francis Cook não descurava um certo conforto e uma certa modernidade. Daí ter encomendado mobiliário também moderno -do seu tempo – aos fornecedores da Casa Real inglesa, a famosa Casa Crace. Ao mesmo tempo que recheia a casa com obras de arte e mobiliário antigo – e algum de origem oriental -, também encomenda peças do seu tempo, dando essa relação muito interessante entre uma perspetiva de conforto com obras modernas que convivem com as suas antiguidades.

Dentro do seu gosto, houve áreas em que ele se especializasse?

Ele tinha uma predileção, isso é notório, pela pintura dos chamados Velhos Mestres, que vão do século XV ao século XVIII. E tinha do melhor. Basta dizer que a obra de arte que até hoje atingiu um valor mais alto em leilão, o famoso Da Vinci que foi vendido por 450 milhões de euros, era da coleção dele. Ele tinha de facto uma coleção extraordinária. A pintura era uma grande referência, mas colecionava de tudo, um pouco como o Beckford. O Beckford tinha sido um dos primeiros a introduzir, paralelamente às obras de arte europeia, as obras de arte do extremo Oriente, sobretudo a porcelana chinesa. E Francis Cook vai muito nessa linha de misturar arte ocidental com arte oriental.

O que aconteceu a essa coleção, dissipou-se?

Foi tudo rapidamente vendido pelo seu bisneto, no pós II Guerra Mundial, o que é pena, porque se perdeu um pouco a memória deste grande colecionador, um dos maiores da história do colecionismo, não só inglês mas internacional.

Das peças hoje expostas no palácio, qual seria a joia da coroa?

Diria que temos uma peça que seria particularmente apreciada pelo visconde de Monserrate, Francis Cook, não tanto pelo seu valor comercial ou artístico, mas sobretudo pelo significado. Francis Cook gostava muito de salientar que tinha conseguido comprar um Santo António que havia sido encomendado por William Beckford para aquela sua grande casa chamada Fonthill Abbey. Apesar de não ser católico, Beckford tinha um gosto particular por Santo António e concebeu um santuário em Fonthill Abbey, onde tinha essa estátua que encomendou a um escultor inglês. Francis Cook fica muito satisfeito quando a consegue comprar e vai transformar um dos quartos de Monserrate na chamada Sala de Santo António onde procura não só ter a peça, mas recriar todo aquele cenário. Não era a peça mais rica do ponto de vista artístico ou material, mas do ponto de vista simbólico era uma peça muito significativa.

Esta exposição é uma primeira tentativa de recriar o ambiente da vivência de Monserrate. Serão dados mais passos nesse sentido?

É sempre muito frio e desagradável visitarmos um palácio vazio. E o palácio de Monserrate infelizmente está vazio por circunstâncias várias. Antes de o palácio ser vendido todo o seu recheio foi leiloado, em 1946. Não há catálogo do leilão e transpirou pouco para a imprensa. Conseguimos até hoje identificar algumas peças em coleções públicas e privadas: olhando a quem eram os grandes colecionadores da época em Portugal – Espírito Santo Silva, Medeiros e Almeida -, fomos às suas coleções e de facto conseguimos identificar peças que pertenceram a Monserrate. Espero que esta exposição também venha a constituir uma chamada de atenção para colecionadores privados que tenham peças que porventura vieram de Monserrate. Tentámos identificar essas peças através das fotografias ou dos inventários e a Parques de Sintra está aberta a possíveis compras a proprietários que queiram vender as peças. O objetivo será procurar fazer aquisições de peças que comprovadamente pertenceram a esta coleção de Monserrate e depois procurar recriar estes espaços. É muito mais fácil explicar através das peças como cada uma daquelas salas se encontrava decorada, qual era a sua função e como era vivida do que se tivermos lá umas fotografias ou uns textos.  J

A exposição Monserrate Revisitado – A Coleção Cook em Portugal está patente até 31 de maio