Russa. Do Aleixo, contra tudo

O novo filme de João Salaviza e Ricardo Alves Jr. chega ao Festival de Cinema de Berlim a provar que o cinema pode ser arma, sempre. E que, como Russa, como todos os moradores do Bairro do Aleixo, no Porto, cada um deve ter o direito a contar a sua própria história

Vista daqui, a demolição daquelas duas torres do Bairro do Aleixo em 2011 é um 11 de Setembro. Aqui é o telemóvel de Helena, que conheceremos por Russa neste filme que marca a primeira colaboração entre João Salaviza e o brasileiro Ricardo Alves Jr. na realização, a estrear-se segunda-feira na competição das curtas do Festival de Cinema de Berlim, que começou ontem. Aqui é o Aleixo, no Porto, que “Russa” nos põe a ver de dentro, nunca de fora. Destes elevadores que sobem e descem continuamente, de cá de baixo até àquele 11.o ou 12.o andar, destas escadas feitas lugar de estar. Aqui é agora, 2018, o cinema a fazer-se mais do que urgente: presente.

Porque se em “Altas Cidades de Ossadas”, o último filme de Salaviza, estreado na mesma secção da Berlinale no ano passado, víamos um rapper, Karlon, a lidar com as memórias de um espaço que já não existe, aqui é a guerra. Durante. “Quase que sentimos que estávamos numa mini-Faixa de Gaza, porque aqui há mesmo um processo em curso de empurrar para longe pessoas que sentem direito àquele espaço, àquela casa e àquela comunidade”, diz-nos Salaviza numa conversa por telefone, de São Paulo. “Nesse sentido, há aqui uma urgência que o ‘Altas Cidades de Ossadas’ não tinha por isso mesmo.” Diremos mais. Diremos que “Russa” é Salaviza a lembrar-nos de como o seu cinema é urgente, e neste filme mais do que em qualquer um dos que fez para trás.

“Ninguém sabe muito bem o que vai acontecer ali, é uma espécie de guerra em curso. Duas das cinco torres já foram demolidas. Nas três torres que estão de pé, parte das casas já foram desocupadas e também tentamos filmar isto. O direito à habitação também é o direito à comunidade”, diz o realizador, que acrescenta: “Quando o Estado fragmenta 300 famílias e as espalha por outros bairros da cidade, no fundo, o que está a fazer é a destruir uma comunidade que há várias décadas vivia junta. São famílias que estão a ser separadas.”

Na terra de ninguém A viver há três anos no Brasil, onde terminou já a rodagem da sua próxima longa-metragem, numa comunidade indígena, de São Paulo fez, com Ricardo Alves Jr., as malas rumo ao Porto, para este que seria o primeiro filme de dois amigos de longa data em conjunto, a convite do programa Cultura em Expansão da Câmara do Porto. E para dois realizadores cujo cinema se constrói a partir das margens, nas periferias das suas cidades, a dúvida à chegada era o objeto, nunca o caminho.

“Na fase inicial fizemos uma espécie de cartografia, um percurso geográfico por zonas do Porto que tradicionalmente estão invisibilizadas, que não aparecem nos postais turísticos. Foi andando pelo Porto que começámos a perceber que havia uma narrativa construída pelo poder político e difundida pela imprensa que fazia do Bairro do Aleixo uma espécie de no man’s land [terra de ninguém] onde a maioria das pessoas da cidade têm medo de entrar. Fala-se do Aleixo como se fosse um lugar proibido.” Exatamente o lugar onde o cinema começa para João Salaviza que, com Ricardo Alves Jr., chegou ao Aleixo para descobrir que a história contada pelos que o fazem é outra.

A de “um bairro com uma comunidade fortíssima, com laços que vêm de há décadas e décadas”. De quando nem o Aleixo existia, de quando o Aleixo era no centro, junto ao rio. Construído em 1974, o bairro da zona oriental do Porto abrigou centenas de famílias, muitas delas retiradas da zona da Ribeira, no Porto. Assim chegaram a estas torres Russa (Helena), aos 12 anos, para ali casar e criar os filhos e depois os netos, e Maria Antonieta, as duas protagonistas desta história que se equilibra entre o documentário e a ficção.

O que fica de que lado, nunca saberemos. Faz parte desse exercício em que a ficção vem como rede para a generosidade dos que aqui aceitaram expor-se. Helena e Maria Antonieta, que não são irmãs como no filme mas podiam, e ainda Alberto, que ao cinema, a este filme, entregaram as suas caras, os seus nomes e parte das suas vidas. “Antonieta não é exatamente irmã de sangue da Helena, mas conhecem-se desde crianças, da Ribeira. Vieram juntas com as primeiras famílias que se mudaram da Ribeira para o Aleixo.” O resto preferem os realizadores que fique como “uma série de factos biográficos que se cruzam com outros” de outros moradores. “Há aqui um cuidado nosso para que a ficção dê alguma proteção a quem se expôs, porque neste momento vive-se no Aleixo uma espécie de terror em que qualquer indício de irregularidades numa casa pode ser motivo para se expulsar uma família inteira – no tempo de Rui Rio, isso foi feito com uma violência tremenda.”

No Aleixo, o trabalho dos realizadores, que por lá passaram o último verão completo, começou por uma série de entrevistas em que se foi revelando aquilo de que, como sempre, já suspeitavam antes de terem chegado. Que as narrativas dominantes não correspondem necessariamente às que os lugares contam de dentro. “O que encontrámos foi uma revolta muito grande por o bairro ter sido aniquilado sem que as pessoas fossem ouvidas. Foi o que descobrimos. Percebemos que a situação é, de facto, muito mais complexa.”

Uma contranarrativa Aí tiveram mais do que um ponto de partida. Tiveram o fim para um filme que se fez político, presente, urgente. “O cinema também pode servir para isto, para construir contranarrativas que, na verdade, são as narrativas dos lugares.” Daí que, para Salaviza, este filme seja “basicamente uma organização das vozes, das imagens e das memórias” dos que vivem no Bairro do Aleixo. “Para que elas surjam com uma força que consiga pelo menos lutar contra as narrativas hegemónicas que são difundidas de fora.”

Não vem então do acaso esta insistência de “Russa” em deixar-nos a olhar estas escadas de uma das três torres que sobram depois das primeiras demolições. Ou sobre a roupa que fica a secar nos espaços comuns de um prédio em que se vive de portas abertas. “Mesmo em relação à questão da gentrificação, de que tanto se fala hoje, é preciso construir uma história sobre um bairro para que ele seja destruído e para que as pessoas sejam empurradas dali para fora. Também para a especulação imobiliária é bastante conveniente que se construa a história de que o bairro é disfuncional e que toda a gente trafica droga e por aí adiante. O que este filme também lembra é que as pessoas têm de ter o direito a contar a sua própria história.”