Polémica. Um pouco de contexto para as palavras de D. Manuel Clemente

Proposta de continência aos divorciados recasados, feita pelo cardeal-patriarca de Lisboa, vai buscar referências a carta de bispos argentinos que Francisco elogiou. Mas o Papa também tem insistido na reconciliação 

A polémica surgiu na semana passada. O cardeal-patriarca de Lisboa publicou uma nota pastoral com orientações para os padres lisboetas sobre as situações “irregulares” em que ao matrimónio sucedeu a rutura e um casamento civil. No fim dessa nota, nas “alíneas operativas”, D. Manuel Clemente sugere vários caminhos que os padres devem apresentar aos divorciados recasados que queiram retomar a vida na fé. É aí que surgem as palavras que suscitaram a controvérsia: “Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação”, lê-se na alínea d). Refere-se o patriarca à validade do matrimónio celebrado pela Igreja, cuja nulidade depende de apreciação do tribunal diocesano.

As declarações não são novas no seio da Igreja Católica. A nota de D. Manuel Clemente, aliás, foi redigida em resposta a uma exortação apostólica do Papa Francisco, publicada em abril de 2016 e intitulada “Amoris laetitia”, sobre o amor na família, e resultante dos dois sínodos sobre a família ocorridos em outubro de 2014 e 2015. 

As palavras controversas de Francisco É preciso, neste contexto, recuar no tempo. No capítulo viii de “Amoris laetitia” – dedicado a “situações irregulares” como, por exemplo, os católicos casados pela Igreja e que, não tendo o matrimónio sido considerado nulo, voltam a casar pelo civil –, o Papa Francisco escreve que “embora a Igreja reconheça que toda a rutura do vínculo matrimonial é contra a vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos’”. Até porque, continua, “não esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha”.

Note-se que nessas situações consideradas irregulares, como as dos divorciados recasados, os católicos perdem o acesso aos sacramentos, como a comunhão ou a confissão. E, neste capítulo, Francisco coloca em causa esse pressuposto, ao escrever: “Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver na graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.”

No fim da frase, um número remete para uma nota de rodapé. Aí lê-se que “em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, ‘aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor’ […]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia ‘não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos’”. De resto, estas palavras, em que o Papa admite o acesso de pessoas em “situação irregular” aos sacramentos, valeram–lhe duras críticas por parte das fações mais tradicionais da Igreja.

A carta dos bispos argentinos A exortação não dá orientações específicas sobre a forma de atuação dos bispos e padres das várias paróquias espalhadas pelo mundo em relação aos divorciados recasados. Por isso, em 5 de setembro de 2016, os bispos da região pastoral de Buenos Aires escreveram uma carta aos padres da região em que estabelecem dez critérios “mínimos” relativos “ao possível acesso aos sacramentos de alguns ‘divorciados em nova união’”.

No documento, os bispos escrevem que o acesso aos sacramentos passa por “um processo de discernimento acompanhado por um pastor”. Ora, no ponto cinco, os bispos dizem, ao falarem do processo: “[…] pode-se propor o compromisso de viver em continência. A ‘Amoris laetitia’ não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo ii ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)”.

E continuam, no ponto seis: “Noutras circunstâncias mais complexas, e quando não se pôde obter uma declaração de nulidade, a opção mencionada pode não ser de facto factível. Não obstante, é igualmente possível um caminho de discernimento. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, prejudicando os filhos da nova união, a ‘Amoris laetitia’ abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351). Estes sacramentos, por sua vez, dispõem a pessoa a prosseguir amadurecendo e crescendo com a força da graça.”

Onde é que já lemos estas palavras? Na nota de D. Manuel Clemente. É nelas que o cardeal-patriarca de Lisboa se baseia para propor as “alíneas operativas” aos padres lisboetas.

Diga-se, para concluir, que a carta dos bispos argentinos foi enviada ao Papa pelos seus autores. “El escrito es muy bueno y explicita cabalmente el sentido del capitulo viii de Amoris laetitia. No hay otras interpretaciones. Y estoy seguro de que hará mucho bien”, respondeu-lhes. E a carta acabaria por integrar a documentação oficial da Igreja Católica. Ainda assim, nem todas as dioceses seguiram, para já, a visão de Lisboa. A arquidiocese de Braga pôs a tónica no acompanhamento personalizado e lançou um serviço de apoio aos divorciados recasados, admitindo o acesso aos sacramentos. A carta pastoral “Construir a Casa sobre a Rocha” admite a proposta de continência conjugal “quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho sólido de fé”, lê-se no documento, que estabelece um mínimo de cinco anos de duração da nova união para se iniciar o caminho de acesso aos sacramentos.