Continência. Uma premissa da Igreja que nada tem de novo

O mundo não ficou indiferente às palavras de D. Manuel Clemente, mas serão as reações justificadas? Na Igreja aponta-se o dedo à descontextualização e à desinformação; afinal, a posição de D. Manuel Clemente reflete a tradição da Igreja. E com a polémica instalada, o i quis perceber: na doutrina católica, o sexo serve só para procriar? 

No mundo de hoje – no mundo ocidental, pelo menos –, a sexualidade já não é tabu. Muitos defendem até que há uma banalização do sexo. Comentários sobre o título que originou a polémica à parte, o mais certo é que as palavras de D. Manuel Clemente não teriam dado azo a tantas reações se vivêssemos numa sociedade menos aberta quanto ao sexo.
Entre as instituições católicas impera a opinião de que a febre gerada pela alínea com a proposta de continência aos casais irregulares é exagerada, descontextualizada – porque não leva em conta a nota no seu todo – e até desinformada – porque, de facto, D. Manuel Clemente está longe de ter sido o primeiro no seio da Igreja a referir as tão controversas palavras.

“A igreja deseja acompanhar a todos” Para o Opus Dei, “a nota do Patriarca não faz mais do que espelhar a orientação perfilhada pelo Papa”. Como lembra Pedro Gil, diretor do gabinete de imprensa da instituição, “o Papa Francisco considerou como ‘muy bueno’ e como explicitação cabal da exortação apostólica ‘Amoris laetitia’ o texto dos bispos da região pastoral de Buenos Aires – ao ponto de garantir de que ‘no hay otras interpretaciones’”. O conteúdo da referida carta está explanado no artigo anterior.

Para quem não leu, Pedro Gil resume o conteúdo da nota de D. Manuel Clemente. “A nota recorda o valor do matrimónio cristão tal como Jesus Cristo o propôs […]. Ao mesmo tempo, o Patriarca – que, dessa maneira e de acordo com a vontade expressa do Papa, não renuncia a propor o matrimónio mesmo com o risco de contradizer a sensibilidade atual –, com a sua nota passa uma ideia muito importante: a Igreja deseja dizer a todos que a todos deseja acompanhar, de forma pessoal, cordial e respeitosa, em especial aqueles cuja vida não corresponde à proposta de Jesus Cristo. Esse acompanhamento é para ser duradouro e tem por finalidade conhecer cada vez melhor a Deus e, assim, conhecer melhor o plano de Deus tanto sobre o matrimónio em geral como sobre a vida de cada um.”
Por sua vez, o padre José Manuel Pereira de Almeida, pároco de Santa Isabel (Lisboa), tem a mesma visão da polémica. “As palavras não são novas, não. São até muito antigas e correspondem a uma visão da ‘tradição’ da Igreja”, diz. 

Tal como o Opus Dei, o pároco acredita que o importante a dizer sobre a relação dos divorciados recasados com a Igreja é que “não estão excluídos, não estão fora da comunidade eclesial; para utilizar uma expressão forte, não estão excomungados”. A proposta de continência corresponde, continua, “a uma possibilidade que só numa relação interpessoal é possível chegar a fazer. O discernimento que o casal faria, neste caso, determinaria o seu agir concreto em consciência”, explica.

A perspetiva de Maria José Vilaça, do CERTA – Centro de Estudos e Recursos Teologia do Amor, vai ao encontro das anteriores. “A nota de D. Manuel Clemente vai no sentido de acolher na Igreja todos os recasados e acompanhá-los no caminho que queiram fazer com Deus. Para esse objetivo geral, este [a continência] é apenas um dos pontos”, defende. Além disso, são essas as palavras da Igreja “desde sempre”.

Aos divorciados recasados pelo civil, Maria José Vilaça deixa palavras de encorajamento. “Pessoalmente, tenho conhecimento de casos concretos em que esta proposta é acolhida e vivida com grandes frutos para os casais envolvidos”, afirma. “Ainda que o caminho seja difícil, nunca deve deixar de ser proposto”, até porque “viver esta proposta tem logo à partida a grande ajuda de permitir ao casal continuar a receber Jesus nos sacramentos e isso é a sua principal fonte de ajuda para lidar com as dificuldades da vida”, defende. “Dito de outra forma, viver a continência é dizer ‘eu não estou devidamente capacitado/a por Deus para te amar como esposo/a, mas posso e quero ser para ti e para os filhos (se os houver) amparo e companhia, enquanto Deus o quiser’.”

A Igreja e o sexo Entre as pessoas não crentes existe a ideia de que, no seio da Igreja, as relações sexuais têm como objetivo único a procriação. No contexto desta polémica, impõe-se a pergunta: é realmente assim? Maria José Vilaça responde.

“Se o homem é criado à semelhança de Deus, significa que é livre como Deus, inteligente como Deus e foi criado para viver como Deus, numa relação de amor e comunhão. O apelo a essa comunhão é visível na própria diferenciação sexual. Ao abençoar o casal com a fertilidade, Deus mostrou que a sexualidade aprofunda e confirma a comunhão de vida entre os esposos, ao mesmo tempo que capacita o casal para gerar filhos. Isto revela-nos que a sexualidade é uma coisa boa para Deus”, esclarece.

A doutrina da Igreja, continua a psicóloga, “confirma e valoriza a sexualidade como expressão da entrega da vida de um ao outro, que é feita no contexto do sacramento do matrimónio”. 

Segundo a responsável do CERTA, as relações sexuais têm dois significados – unitivo e procriativo. “São inseparáveis. Servem para o casal construir a comunhão – tornar-se uma só carne – e para colaborarem com Deus na criação, através da abertura à vida”, considera.

E se, por um lado, “a contraceção separa os dois significados do ato sexual”, o planeamento familiar não está esquecido pela Igreja. “Para o exercício da paternidade responsável, que inclui a possibilidade de espaçar o nascimento dos filhos, a Igreja propõe a utilização das formas de observação do corpo da mulher que permitem reconhecer os dias em que é fértil e os dias em que não é. A verdade é que se Deus tivesse na ideia que a relação sexual deveria ser apenas para procriar, não teria feito muito sentido que a mulher tivesse um ciclo de fertilidade/infertilidade tão rico e especial.”