Jarett Kobek: ‘A internet pode ser fantástica mas elegeu um fascista para presidente dos EUA’

Publicado por uma pequena editora fundada pelo autor, Odeio a Internet  tornou-se rapidamente uma das revelações literárias de 2016. Trata-se de uma sátira implacável do mundo digital, do capitalismo e de como as redes sociais se tornaram vazadouros de insultos, palavrões e ataques rasteiros.

Já foi descrito como um livro «muito divertido» e que «é impossível parar de ler». Mas cuidado: usa uma linguagem crua, agressiva, por vezes chocante, em grande parte inspirada nas tiradas ‘curtas e grossas’ do Twitter. Odeio a Internet (ed. Quetzal), o segundo romance de Jarett Kobek (n. 1978), foi uma das revelações literárias de 2016. Publicado por uma pequena editora independente fundada pelo próprio Kobek, a desconhecida We Heard You Like Books, mereceu uma crítica no New York Times e rapidamente passou para as luzes da ribalta, causando sensação na feira do livro de Frankfurt. Quando a revista francesa Les Inrockuptibles publicou uma imagem do escritor norte-americano Brett Easton Ellis a ler Odeio a Internet na cama o sucesso estava consumado.

Sátira implacável do mundo digital, denuncia como as grandes empresas de tecnologia da Califórnia lucram à custa daqueles que se digladiam e se insultam nas redes sociais. Kobek, aliás, define o Instagram como «o maior ataque terrorista, à escala global, à autoestima das mulheres». Mas ele próprio não se recusa a usar a internet, e até já teve vários trabalhos nessa área, desde web designer a administrador de sistemas.

Odeio a Internet, que o próprio define como «um mau romance», conta a história de Adeline, uma mulher que comete o erro de dar uma opinião que cai mal entre os internautas e a partir daí se torna vítima dos mais soezes ataques e ameaças. Kobek inspirou-se – explica por email ao SOL – no caso de J. T. Leroy, pseudónimo de Laura Albert, que passou por algo muito semelhante. Por outro lado, o livro exprime a sua revolta pelo que aconteceu em São Francisco, cidade onde viveu quatro anos e acerca da qual disse numa entrevista ao Guardian: «São Francisco tinha duas qualidades distintivas. Primeira, era a cidade mais bonita da América. Segunda, estava cheia da gente mais irritante da América». A culpa, na sua opinião, é da internet, pois claro. E das grandes empresas que a dominam.

Odeio a internet foi-me apresentado como «um romance cruel, mau, desconexo, estapafúrdio, pérfido e obsceno». Concorda com esta caracterização?

Não concordo com a parte de ser pérfido, uma vez que não induz o leitor em erro. Quanto ao resto, claro. Por que não?

A história de Adeline – a forma como se torna perseguida, odiada e insultada por causa da sua opinião – inspirou-se em alguma coisa que ouviu ou que leu, ou saiu completamente da sua cabeça?

A história de Adeline é uma versão generalizada do que estava a acontecer a toda a hora antes da eleição de Donald Trump: mulheres que eram escolhidas como alvo e abusadas. Ainda acontece, mas desde então o foco mudou.

A fonte de inspiração concreta para a personagem e o resto foi Laura Albert, a mulher que fingiu ser J. T. Leroy [nome com que assinou vários livros supostamente autobiográficos, que falavam de um passado de pobreza, consumo de drogas e abuso sexual] e foi sujeita a uma quantidade inacreditável de merda por ter escrito romances sob pseudónimo. Há coisas muito complicadas nessa história, mas eu costumava ver Albert por São Francisco e ela sempre me fascinou.

Para escrever o seu livro teve de pesquisar muito sobre o mundo da internet – e como funciona?

Fiz pesquisa, evidentemente, mas não se trata de material propriamente difícil de encontrar. A experiência mais enriquecedora foi viver em São Francisco, onde se podia ver a hipocrisia das Quatro Grandes Empresas [Google, Amazon, Facebook e Apple] a funcionar a um micro-nível, e ver o seu impacto palpável nas vidas de pessoas que nada têm que ver com tecnologia. Era um sítio brutal para se viver e essa brutalidade fazia-se sentir nas vidas dos mais pobres.

O Jarett parece muito pessimista em relação ao nosso tempo. Acha mesmo que somos todos manipulados pelo capitalismo e que não podemos escapar a isso?

Sim, sem dúvida. Na América, estamos a passar por esta coisa chamada movimento #MeToo, que tem objetivos políticos admiráveis, e que foi abraçada por um enorme espetro de pessoas, na esperança de um reordenamento social. Nos primeiros tempos, desencadeou uma catadupa de histórias individuais sobre a forma como os homens controlavam e determinavam a sociedade. O único problema? Essa catadupa aconteceu, primordialmente, no Twitter e no Facebook, que são empresas que fazem dinheiro para essas mesmas pessoas que controlam e determinam a sociedade. Por isso esta manifestação muito genuína tornou-se o mesmo que tudo o resto: dinheiro para as pessoas que mandam em tudo.

Todo o nosso comportamento é construído de uma forma que não era realidade nem sequer há 40 anos.

Bem-vindo ao futuro.

Ao mesmo tempo, neste romance faz um comentário impiedoso da sociedade americana, da sua superficialidade e mentalidade de rebanho. Acha mesmo que a vida do cidadão médio nos Estados Unidos é assim tão desinteressante?

Não creio que seja muito útil generalizar sobre o ‘cidadão médio’ norte-americano, uma vez que o país é tão diversificado cultural e geograficamente. Quem é o cidadão médio? O suburbano? O que reside na cidade? Branco? Latino? Negro?

Por isso não posso responder a essa questão. Mas posso dizer-lhe, sem sombra de dúvida, que a vida na América, sob um ponto de vista económico, tornou-se muito pior para a maioria das pessoas. E o dinheiro é a história do mundo.

Qual é a sua relação com a internet? Tem contas do Facebook, do Twitter e do Instagram?

Tenho uma conta do Twitter que abri em 2009, usei umas quatro vezes e à qual nunca mais acedi. Tenho uma conta no Facebook que uso para mandar mensagens a escritores europeus. Não tenho conta de Instagram, sobretudo porque não tenho qualquer interesse em participar no maior ataque terrorista, à escala global, à autoestima das mulheres.

Basicamente, mando muitos emails.

O escritor italiano Umberto Eco achava que graças ao computador regressámos a uma era do alfabeto e da escrita. E houve um escritor português que disse numa entrevista que a Wikipedia devia ganhar todos os prémios Nobel de uma assentada. Não acha que a internet tem uma série de coisas excelentes – e que, felizmente, nós podemos escolher?

É verdade que a internet pode ser uma ferramenta fantástica, mas não acho que a descoberta de um romance porreiro, por exemplo, compense a eleição de um fascista para a Presidência dos Estados Unidos.

Mas por que escolheu retratar o lado negro, sujo e feio da internet?

Há outro? O que seria esse lado? O eBay em 1999?

Usa muita linguagem forte, obscena, as suas personagens dizem muitos palavrões. Isso deve-se ao facto de querer que o seu livro fosse realista (e as pessoas falam assim) ou porque queria chocar os leitores – ou, pelo menos, abaná-los um bocadinho?

Não sei se há alguma razão particular. Sou apenas uma pessoa muito rasca.

Sei que vem de uma família de ascendência turca, e o racismo é um dos temas centrais deste livro. Já foi vítima de racismo? Testemunhou situações de racismo na sociedade americana?

A minha relação com o meu legado turco-americano é bizarra. Cresci numa zona do país onde toda a gente era imigrante ou descendente de imigrantes, por isso ter um pai de nacionalidade turca não constituía grande problema. Mas depois aconteceu o 11 de Setembro e de repente tornou-se um grande problema. A coisa menos interessante em mim tornou-se a mais importante. O meu pai passou por incidentes muito infelizes nos meses seguintes.

Quanto a testemunhar situações de racismo: claro. Toda a hierarquia do poder nos Estados Unidos se baseia em mascarar questões de dinheiro e de classe como questões de raça.

O seu livro está cheio de provocações e, como eu disse antes, de linguagem forte. Li algumas críticas positivas, mas imagino que também as tenha havido negativas. Também foi alvo de ataques, à semelhança da sua personagem, que é constantemente insultada e bombardeada com hate mail?

Não leio as críticas que saem na imprensa, por isso não tenho a certeza de ter havido algumas negativas. Durante algum tempo andei a ver comentários de utilizadores do Goodreads e da Amazon, e alguns eram hilariantes de tão negativos. Ao ponto de, quando saiu na América a terceira edição de Odeio a Internet, termos incluído um ou outro desses comentários no próprio livro.