Síria. Em Ghuta não há vida nem tempo

O regime sírio abriu uma campanha sanguinária em Ghuta oriental. Em horas morreram à volta de cem pessoas nas bombas de Assad. E o pior ainda está por vir. 

Terminou o período de apaziguamento na guerra síria. O conflito está hoje tão ou mais violento que nos piores momentos dos seus quase sete anos. O início desta semana demonstra-o com nitidez. As primeiras milícias alinhadas com o regime chegaram esta terça-feira ao norte do país para combaterem a invasão turca dos últimos dois meses. Já se trocaram tiros, sobretudo de aviso, mas em breve pode abrir-se um capítulo mortífero de embate frontal entre Ancara e Damasco. A Rússia tenta evitá-lo, mas o regime, mesmo devendo-lhe muito, tem vida própria.

No sul do país, a aviação de Bashar al-Assad parece querer transformar os bairros rebeldes de Ghuta oriental em ruínas fáceis de conquistar. Em menos de dois dias, sobretudo entre segunda e esta terça, bombas em parte calculadas e em parte indiscriminadas mataram à volta de cem pessoas nos edifícios que há muito já são mais rochedos indistintos que casas. Cinco hospitais foram atacados e dois ficaram inutilizados.

É um golpe profundo numa zona cercada há anos, em aguda escassez de medicamentos, comida e água potável. Um médico anestesista morreu. Grande parte das vítimas, asseguram várias organizações humanitárias no terreno e fora dele, são civis. Muitas são crianças. Não é surpresa. À volta de metade da população de 400 mil pessoas indecifravelmente embrenhadas com as milícias rebeldes de Ghuta são menores. A mortandade atingiu limites tão extremos que a UNICEF publicou um comunicado em branco. Transcrevemo-lo na íntegra:

“Não há palavras que façam justiça às crianças mortas, às suas mães, aos seus pais e entes queridos.

FIM”

 

Capítulo mortífero

As estimativas dos mortos dos últimos dois dias em Ghuta oriental oscilam. Essa é a regra no conflito sírio. As organizações internacionais não as fazem há muito e o registo dos cadáveres acaba por ser feito por grupos de assistência médica rebelde.

A estimativa mais conservadora pertence aos Capacetes Brancos, os serviços de emergência sírios que estiveram no ano passado à beira de ganhar o Nobel da Paz. Entre segunda e o meio da tarde desta terça-feira, estas equipas de salvamento registaram 89 mortos. A União de Cuidados Médicos e de Salvamento, que gere outros grupos de resgate nos bastiões rebeldes, falava em 89 mortos até ao meio-dia de terça. Contava também 400 feridos, 66 bombardeamentos e 466 ataques de rockets, lançados a partir dos bairros da capital, a apenas algumas centenas de metros.

O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, que opera à distância e através de uma grande rede de ativistas no terreno, defendia ontem à noite um número maior e mais atualizado: 194 mortos em 48 horas, vítimas de disparos de artilharia, rockets, bombas convencionais e os barris cheios de explosivos e objetos metálicos que o regime popularizou na guerra.

“Estamos perante o massacre do séc. XXI”, afirmava esta terça-feira um médico de Ghuta oriental ao “Guardian”. “Se o massacre dos anos 1990 foi Srebrenica, e os massacres dos anos 1980 foram Halabja e Sabra e Chatila, então o massacre de Ghuta oriental é o deste século e está a acontecer agora.”

O pior ainda por vir

A ONU, vários países e dezenas de organizações humanitárias exigiam esta terça o fim dos bombardeamentos do regime contra Ghuta oriental, o mesmo bairro que Assad gaseou com sarin em agosto de 2013, matando centenas de pessoas e quase provocando a entrada dos Estados Unidos na guerra. Assad, no entanto, parece preparar-se para fazer o contrário e aprofundar a violência.

Os últimos dias são apenas uma exceção especialmente violenta de uma campanha de bombardeamentos que começou há semanas contra o bastião rebelde mais populoso e próximo do centro do poder sírio. No passado, campanhas desta natureza antecederam invasões terrestres violentas, como as que aconteceram em Alepo no final de 2015. O exército sírio diz que a conquista final de Ghuta oriental acontecerá em breve.

As ameaças não são novas, mas por estes dias amontoam-se tanques e outros veículos pesados nos acessos aos bairros, sugerindo que, desta vez, Damasco não vai apenas simular uma entrada em força nas antigas zonas residenciais da classe operária. “Prometo que lhes darei uma lição em combate e fogo”, ameaçava esta terça num vídeo o general Suheil al-Hassan. “Não encontrarão salvador. E se o encontrarem, ele ajudar–vos-á com água em forma de azeite a ferver. Serão resgatados com sangue.”