Linda Martini. “O maior ato de resistência é fazermos aquilo de que gostamos”

Ao quinto disco, veio “Linda Martini”. Álbum homónimo, composto a dois tempos, entre Amares e a Arrábida, sobre o qual conversaram com o i em Santa Apolónia

Dos Prazeres, “Semi Tédio”. Mas de tédio, nada. Dele fogem apenas os Linda Martini. Sempre, e neste novo disco homónimo, lançado no fim da semana passada. Depois de “Sirumba”, eis o seu quinto disco. O primeiro que gravaram foram de Portugal, em Barcelona, com o produtor Santi Garcia, também o primeiro que compuseram fora de Lisboa. Mas que nem assim deixa de ser sobre ela. Sobre isso, sobre o disco e sobre o rock conversámos com eles junto ao HAUS, o seu estúdio em Santa Apolónia.

Compuseram-no entre Amares e a Arrábica, mas continua a ser muito sobre Lisboa este “Linda Martini”.

Hélio Morais — A “Se Me Agiganto” até era inicialmente um fado que o André fez para um outro artista. 

Cláudia Guerreiro — [A questão das residências] foi apenas encontrarmos um espaço para trabalhar o que somos cá. O que levamos de nós é o que somos aqui.

André Henriques — É uma inevitabilidade. A partir do momento em que começas a fazer música estás a tomar decisões, estás a ter um ponto de vista que é o teu. E obviamente que se és produto da cidade, se moras aqui, claro que isso vai tudo refletir-se no produto final — a menos que queiras fazer uma coisa conceptual, muitos artistas que fazem isso. Agora, a nossa forma de fazer música é muito mais urgente, muito mais imediata. Tem muito mais a ver com o que nós vivemos, é normal que reflita o que nós somos.

De onde vem o tom depressivo em que acaba o disco, com justamente com a “Se Me Agiganto”?

AH — Faltava uma cantiga de amor — ou desamor.

HM — Temos de ter sempre, não é? Não é propositado, mas aqui por acaso estávamos a sentir falta, porque o disco está muito lá em cima e falámos disso. Se calhar até foi por isso que acabámos por pegar nesta música e trabalhá-la.

CG — Quando falaste no lado depressivo se calhar estavas a referir-te mais à letra.
Às duas coisas. Mas vem já depois da “Quase Se Fez Uma Casa”, que também já começa a empurrar-nos um bocadinho para aí.

Pedro Geraldes — A “Quase Se Fez Uma Casa” acho até mais depressiva.

AH — Sim. Mas é o que o Hélio diz, é uma coisa que não procuramos. As letras vêm sempre no final. Obviamente que o ambiente da música já te puxa para um lugar que às vezes a letra até contraria, ou o inverso. Mas é uma coisa natural. Não queremos ser aquela banda de cortar os pulsos, a banda depressiva, do tenho muitos problemas com a vida.

Não disse que eram [risos], só este final.

AH — Costumamos pensar o alinhamento dos discos quase no mesmo exercício que pensamos a setlist de um concerto. Tem que haver momentos em que vais acima e momentos em que vais mais abaixo, uma mancha que nos conduz de alguma forma a algum lado. Por acaso o “Sirumba” também acabava com uma música com um ambiente semelhante. Se calhar há uma tendência nossa para cairmos nesse caldeirão. Mas aqui achámos que o único lugar que essa música em específico podia ocupar era no final. Que depois daquilo já era difícil dizer mais qualquer coisa. Foi isso.

Mas tinha sido inicialmente escrita para um fado?

AH — Para uma fadista, sim. Posso dizer: era para a Ana Moura. Não ma encomendou, eu disse “está aqui uma música, podes aproveitar se quiseres”. Depois ela ou por questões editoriais ou o que seja acabou por não usar e nós achámos que podia ser giro mostrar esse lado que também temos um bocadinho mais downtempo e experimentámos fazer aquilo à nossa maneira. Há uma coisa que já nos acompanha há uns tempos que é alguma crítica dizer que existe uma ideia de fado no que fazemos.

Mas isso parte de um processo consciente?

AH — Não é procurado. Não queremos fazer o andamento do fado; aliás, nunca usámos uma guitarra portuguesa ou outros elementos do fado sequer. Se calhar temos alguma coisa disso, está-nos um bocado no sangue porque são as referências que tivemos. Se ouvires o Variações, ele era fã da Amália. Desde o nosso primeiro ou segundo disco que temos coisas que remetem um bocado para aí sem sabermos muito bem como ou conseguirmos explicar. Acho que vem de termos ouvido muita coisa e da forma como musicamos a língua portuguesa, que tem essas referências.

PG — Todos esses estímulos muitas vezes podem estar lá sem serem uma coisa que se possa dizer “isto veio daqui”. É uma expressão e ao ser uma expressão é uma forma de fazer. Obviamente tudo o que vais tendo à tua volta acaba por influenciar. Se formos fazer um rock mais próximo da sua génese se calhar não será tão próximo da nossa cultura. Mas se juntares algo que não é tão próximo da nossa cultura com aquilo que é, conseguimos ter uma identidade um bocadinho mais nossa. Não pensamos nisso quando estamos a fazer mas as coisas vão tomando esse lugar.

A propósito dessa questão de uma identidade portuguesa, o Zé Pedro, dos Xutos, disse uma vez há uns três ou quatro anos, em entrevista ao “Expresso”, que os Linda Martini eram a banda mais bem posicionada para elevar o nível do rock português.

HM — Houve esse e outros momentos que foram especiais para nós. Quase toda a gente da nossa geração ouviu Xutos quando era mais novo. Nós não fugimos à regra e por mais que possas desligar-te com o passar dos anos, ou não te identificar tanto, aquilo marcou-te, e de uma forma forte, a dada altura. Aconteceu cruzarmo-nos em palco com eles e ele disse-nos até uma coisa semelhante uma vez em Coimbra, num concerto em que tocámos juntos. Isso toca-te. São os Xutos, não é? Tínhamos 8 ou 9 anos e cantávamos a “Casinha” e de repente estares com eles e eles terem essa simpatia contigo… Agora, se isso é verdade ou não, só os anos o dirão.

Sobre a urgência de que falavam há pouco, é isso o rock, fazer rock, hoje? A música e a música que fazem é para vocês uma forma de resistência?

CG — Depende de quem faz a música. Toda a música é uma forma de resistência se quiseres que seja. Para nós é uma forma de estares bem na vida. Nem toda a gente consegue, nem nós conseguíamos todos há um tempo fazer só aquilo de que gostávamos. As pessoas infelizmente vivem com muitas limitações, e nós temos as nossas, mas temos a sorte de poder fazer uma coisa de que gostamos que é a música. E fazê-lo juntos. Seja rock [cita Sam The Kid], seja hip-hop, sejam poetas de karaoke [risos], não interessa muito. 

AH — O maior ato de resistência é continuarmos a fazer aquilo de que gostamos, independentemente do que seja. O rock é circunstancial.

PG — A cena é essa. Estás a falar com uma banda que sempre tocou rock, nas suas diferentes vertentes. Seja punk ou hardcore, agora uma coisa um bocadinho mais convencional, vá. E a resistência não é tocarmos rock, é tocarmos. E é o que a Cláudia diz: houve tempos em que fazíamos isto só porque gostávamos, agora temos a sorte de fazê-lo e de poder dar entrevistas e ir tocar a festivais e ter público para nos ver.

E de ir gravar discos a Barcelona.

HM — [Risos] Foi a primeira vez que fomos gravar um disco fora de Portugal. E nem foi por ser uma coisa que ambicionássemos, gravar um disco lá fora. É um fascínio que nunca tivemos.

CG — Veio no processo que iniciámos neste disco, de irmos para fora para nos afastarmos das coisas que nos limitavam o tempo e a cabeça. Foi uma lógica de processo, não foi numa lógica de investimento, de “vamos para fora, vamos gastar milhões e agora é que vai ser”. Gastámos mais ou menos o que gastaríamos cá. Provavelmente um bocadinho mais com viagens e estadias.

Que importância teve o Santi Garcia [produtor] neste disco?

HM — As músicas já estavam praticamente fechadas, as letras também, já lhe tínhamos enviado algumas coisas, depois ele veio ver um ensaio aqui à nossa sala e tirou logo notas, ficou logo com uma ideia de como queria gravar as coisas. Nas músicas não interferiu muito, exceto numa que depois acabou por nem entrar no disco. Onde ele teve uma influência grande foi na afinação dos sons. No caso da bateria, por exemplo, levou logo daqui uma ideia da sala em que queria gravar determinada bateria. Há uma música, “É Só Uma Canção”, em que ele queria que a bateria soasse pequenina e seca, então fomos gravar para uma sala muito fechada e muito abafada. Depois, das outras músicas, a maior parte nem sequer foi gravada em estúdio. Tínhamos o estúdio ao lado mas ele preferiu gravar numas escadas da casa onde tomávamos o pequeno almoço porque tinha um reverb natural muito fixe que servia muito bem as músicas…

Com os pedais de efeitos deles, a mesma coisa.

CG — Há uma coisa muito importante, deixa-me acrescentar, que é: nós já sabíamos o que queríamos do disco, mas isso é uma coisa que nem sempre conseguimos. Não é das músicas, é do disco. Sabíamos que queríamos uma coisa mais crua, que refletisse um bocadinho mais aquilo que somos ao vivo, e a escolha do produtor é muito importante para conseguires isso. Sabes que se escolheres certo produtor aquilo vai sair muito polido e nunca vais conseguir chegar àquela intenção. Por isso, a escolha do produtor para nós tem mais a ver com a intenção com que as músicas acabam por ficar. É quase a expressão das coisas.