Crime sem castigo em Guimarães

Uma magistrada de Guimarães terá passado indevidamente informação judicial ao presidente de uma instituição da cidade. O caso terminou arquivado e ambos acabaram por casar.

Uma magistrada do Ministério Público de Guimarães foi suspeita de ter passado informações sobre um processo judicial em curso na sua comarca ao próprio visado pelos autos – que acabaria depois por se tornar seu marido. O caso, ocorrido em 2014, foi denunciado à hierarquia do MP, que realizou um inquérito disciplinar. E foi também alvo de um inquérito criminal no Tribunal da Relação de Guimarães. Ambos tiveram o mesmo desfecho: o arquivamento.
O problema é que a denúncia apresentou como prova mensagens particulares trocadas pela magistrada com uma amiga, no Facebook, a que alguém teve acesso e que compilou. Ora, segundo a lei, provas assim obtidas não podem ser usadas. O inspetor nomeado pelo Conselho Superior do MP para analisar o assunto no plano disciplinar invocou isso mesmo para explicar por que ficou amarrado de pés e mãos e teve de arquivar o caso. Deixou, porém, um sermão: «A confirmaram-se os factos imputados à magistrada visada, estes seriam muito graves, pois redundariam na violação dos mais elementares princípios que devem nortear a atuação do magistrado do MP». 

Denúncia anónima Tudo começou com uma denúncia anónima que apontava para tráfico de influências entre a procuradora da República adjunta Susana Ferreira, do MP de Guimarães, a sua amiga advogada Luísa Lemos, da mesma cidade, e Rui Leite, funcionário da Cercigui (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados do Concelho de Guimarães), uma IPSS que apoia a população do concelho com deficiência mental e respetivas famílias. 

Em janeiro de 2014, Rui Leite ganhara as eleições para a presidência da cooperativa, mas logo a seguir foi colocada uma providência cautelar impugnando o escrutínio, que deu entrada no Tribunal de Guimarães a 28 desse mês.
Na denúncia anónima que chegou ao Conselho Superior do MP pouco tempo depois, demonstrava-se que, por intermédio da amiga advogada, primeiro, e depois por contacto direto, a procuradora Susana Ferreira passara a Rui Leite informação sobre o processo, e a própria providência cautelar. Embora a procuradora não fosse a titular do processo, estava em causa a violação do dever de reserva a que os magistrados estão sujeitos no que respeita aos processos em curso na Justiça.

Magistrada oferece favores A novela começara dois anos antes, ainda Rui Leite não passava de um mero professor da Cercigui. 

Segundo o SOL apurou, a magistrada Susana, interessada em conhecê-lo, terá arquitetado um plano de aproximação. Graças à relação de amizade com a advogada Luísa, que conhecia Rui, delineou uma abordagem: estava disposta a direcionar para a Cercigui as verbas resultantes dos processos de injunções que tivesse a seu cargo. Neste tipo de processo, de infrações leves, o MP propõe aos arguidos que, em vez de irem para julgamento, assumam o delito e paguem uma contribuição a uma IPSS, sendo o caso arquivado.

Para esse efeito, a amiga advogada terá estabelecido o contacto entre Susana e Rui em 2012. Mas à época o homem estava noutra relação amorosa – e a verdade é que nenhuma injunção teve o destino planeado, conforme relata o inspetor no arquivamento do inquérito disciplinar: «Consultados os processos de inquérito nos quais havia sido ordenada a suspensão provisória por parte da magistrada visada (89), foi possível constatar que, no que respeita ao destino das injunções determinadas, nenhuma quantia resultante de qualquer injunção foi destinada à Cercigui».
Em 2014, Rui Lemos chega à presidência da Cercigui, mas, quase de imediato, dá então entrada no Tribunal de Guimarães uma impugnação do ato eleitoral. E três dias depois Rui Lemos tenta chegar à fala com a magistrada Susana, através da advogada amiga de ambos. Quer ver se será possível inteirar-se do processo.

O que se seguiu está resumido no despacho do MP no Tribunal da Relação de Guimarães (por lei, um magistrado tem de ser investigado pela instância superior àquela em que desempenha funções), após uma investigação que pouco durou e que acabou igualmente em arquivamento, mas por outras razões.

ilícito penal O procurador coordenador Vinício Ribeiro explica o que encontrara à partida na denúncia: «Um repositório de conversas, com início em outubro de 2012, entre aquelas duas protagonistas, que versam sobre diversos aspetos das suas vidas privadas (falam das suas profissões, das suas dificuldades, da família, da vizinhança, dos seus relacionamentos, do aparente interesse de/em vários homens, etc.), que poderiam satisfazer alguma curiosidade alheia interessada em mexericos, mas, genericamente, sem outro relevo, nomeadamente para o aspeto (eventual matéria criminal) que interessa aos presentes autos».

Prosseguindo, o magistrado afirma, porém, que «um aspeto ressalta» e que «poderia, eventualmente, integrar algum ilícito penal», nomeadamente um eventual «tráfico de influência»: «Trata-se da matéria fáctica que relata o episódio em que um tal Rui Leite pergunta à Luísa Lemos se a Susana Ferreira era juíza, pois queria saber se um processo (providência cautelar contra as eleições da Cercigui, eleições que tinham sido ganhas pelo mencionado Rui) lhe teria calhado».

Sempre baseado nas conversas trocadas no Facebook que constam da denúncia, o magistrado relata: «Susana Ferreira mostrou-se temerosa por o processo, estar, na sua opinião, em segredo de justiça e pediu cuidado por entender que a sua conduta colocava em causa as suas funções. Não obstante, consultou o processo, através do seu computador, e deu informações à Luísa Lemos». No final, porém, conclui: «Não resulta do expediente que a Susana Ferreira tenha, efetivamente fornecido, de modo direto, elementos ou informações sobre o processo ao tal Rui».

Nulidade das provas Já para o inspetor do MP que analisou o caso, o problema foi outro: o facto de a matéria probatória incluída na queixa anónima consistir em cópias de comunicações privadas trocadas entre Susana Ferreira e a sua amiga advogada através do Facebook, onde ambas tinham a sua página de perfil. Durante o inquérito, tanto a procuradora como a amiga invocaram a nulidade desses elementos de prova, por se tratar de violação de comunicações privadas, impedida constitucionalmente a não ser com mandado judicial prévio. Ambas adotaram um comportamento defensivo, recusando ainda proferir quaisquer declarações que confirmassem ou negassem o conteúdo das mensagens.

O inspetor acatou a validade da argumentação e viu-se compelido a proceder ao arquivamento do inquérito, embora reconhecendo que, a confirmarem-se as alegações iniciais, o comportamento de Susana Ferreira (que viria mais tarde a contrair matrimónio com Rui Leite) configuraria uma grave violação dos seus deveres de magistrada do MP: «Assim é que, pese embora a gravidade dos factos noticiados, os quais, se tivessem sido provados, seriam altamente censuráveis, mais não nos resta do que arquivar o processo». 

Os condenados foram outros Ao telefone ou nas redes sociais – um dos palcos da vida social moderna – pode-se assim confessar, sem ser punido, todo o tipo de crimes mais ou menos graves, incluindo homicídios, atentados terroristas e outros de menor calibre, mas que podem arruinar a carreira e a vida de alguém. Isto porque a lei sobrepõe o direito à reserva da intimidade da vida privada ao interesse público no seu conhecimento.

 Em Guimarães o caso provocou alarido. Magistrados e advogados receberam por correio as mais de cem páginas da correspondência trocada entre as duas amigas – e daí a começarem a circular nas redes sociais foi um pulo. E aí o feitiço virou-se contra o feiticeiro: a magistrada, desta feita em obediência ao espírito da lei, apresentou queixa contra um elemento da antiga direção da Cercigui que, entre as dezenas de prevaricadores, partilhara as conversas entre ela e a advogada. E essa pessoa acabou condenada pelo crime de devassa por meio informático.

Entretanto, a combinação entre Susana e Rui para manterem o seu romance em segredo findou com a saída da sentença – e o casal assumiu a relação. Um final feliz para uma história que nasceu e morreu torta.

Contatada pelo Sol, a magistrada defende-se: «Relativamente aos factos, a única coisa que tenho a dizer é que eles pura e simplesmente não existiram. Trata-se de correspondência privada e ninguém tinha nada a ver com isso. Estou de consciência tranquila». Sobre o conteúdo explícito das conversas, Susana Lemos contrapõe: «São explícitas mas do foro privado».