André Domingues. Um mundo à escala de um corpo que ama

O primeiro livro de poemas de André Domingues marca um um corte definitivo e inegociável com o real, o de uma poesia que reivindica a sua diferença, os poderes de estranhamento e fuga à norma num mundo submetido às linguagens monolíticas e embrutecedoras da economia, da política e do futebol

André Domingues tinha já publicado em 2016 “Dramas de Companhia”, um livro de ficções e prosa poética, mas, não sendo um autor estreante, o seu livro mais recente, “Tempestade das mãos”, é o primeiro de poemas. E, ao arrepio da recomendação que Rilke fez em tempos ao jovem poeta com quem trocou as famosas cartas, André estreia-se na poesia com um livro em que a temática geral é o amor – mas, como perceberá quem ler este livro, ele não é um jovem poeta, se por jovem significarmos inexperiente ou imaturo. O autor é um jovem poeta, sim, mas num outro sentido, que mais adiante se desvendará.

Este é um livro de poemas de amor, o amor com o seu arco vital de deslumbramento, êxtase, plenitude, a que se seguem a dúvida, a amargura, a melancolia e a perda. Não se trata aqui de uma rememoração, de um olhar retrospetivo e distanciado sobre um amor vivido, com a sua história, as suas marcas, casos, incidentes, mas de uma exploração das possibilidades que o amor abre ao sujeito amante e ao poeta, que aqui vêm a ser a mesma entidade.

A “ferida de amor” de que fala Barthes nos seus “Fragmentos de um discurso amoroso”, essa ferida de amor, sendo uma fenda radical, ou seja, um golpe que opera até às raízes do sujeito, constituindo-se o sujeito nesse mesmo sofrer e brotar de uma ferida que não mais se fecha, gera o excesso, a desordem, a loucura. É o motor de uma linguagem nova, demiúrgica, capaz de ver e nomear todas as coisas como se pela primeira vez.

Dir-se-ia que os efeitos ou benefícios do amor só podem ser verdadeiramente obtidos através da linguagem, no momento em que se esfrega no outro/leitor essa pele que é a linguagem, no prazer que a linguagem sente ao tocar-se a si própria, na formulação de Barthes.

“Tu também dizias que o amor morreu / de beleza indevida”, lemos no poema “O que tu dizes”. É o mesmo que dizer o amor morreu por um perverso dom profético da poesia, porque era preciso que o amor, que nos deixa afásicos enquanto vive, morresse para dar lugar à linguagem que lhe garante posteridade. Assim, “o poeta mora […] no momento em que a memória se torna / tecnicamente prodigiosa […] / que se abre, sem demora, no tempo calado dos nomes, dos desastres, das constelações”. O amor morreu e o poeta deve enfim falar. Uma linguagem densa, luxuriante, abundante de sentidos e imagens, emerge desta nova voz – e a voz, o erguer da voz, a invocação, o canto, o resgatar da voz a essa “prematura avareza” que o mundo exterior quer impor aos amantes e ao poeta, é uma das linhas de força desta poesia.

Ainda na formulação de Barthes, “A palavra é uma ténue substância química que produz as mais violentas alterações”. É esse o trabalho deste livro. É isso que ele nos propõe: a obtenção de violentas alterações, do maior deleite, do maior prazer através da palavra. Os que leem poesia precisam dela como viciados em drogas, disse certa vez o poeta Francisco Brines. É esse vício, e o prazer que ele alimenta, que esta poesia procura para si e para o leitor. Propõe-nos um “extremo lirismo”, uma “tristeza” que não espera ser “corrigida”. Propõe-nos a desmesura e o suplício através da beleza.

Sem abandonar Barthes, diria que este livro está repleto de “zonas erógenas”, essas breves “cintilações”, “intermitências”, essa “encenação de um aparecimento-desaparecimento”. Atente-se a um poema como “Cidade devoluta”: “O teu corpo fazia justiça ao centro da cama./ Eu podia contar-te uma história. Sussurrar-te/ um futuro. Dar uma certa profundidade/ à tua separação. Ser aroma, fera e crepúsculo./ Um peso sobre a tua idade imaginária.// Mas preferi esperar.// Quis que fosse a manhã a violar a tua súplica.”

Neste “itinerário vivo” que vai sendo construído poema após poema, e no interior de cada poema, deparamo-nos com estes pespontos que ora revelam agulha e linha – “Eu podia… ser aroma, fera e crepúsculo” – ora as ocultam: “Mas preferi esperar”.

Esta complexa bordadura é também um intenso lavor de diálogo com outros poetas e outras tradições. É impossível seguir o trabalho de André Domingues sem nos apercebermos de que ele se inscreve num pensar e num sentir essencialmente castelhanos, nessa língua em que escrevem Brines, Caballero Bonald, Gamoneda. Mas também no francês de Char e de Éluard, do próprio Roland Barthes, e mesmo no português de Eugénio de Andrade. Diria que o André escreve como um exilado, como se não houvesse língua mãe que lhe bastasse, como se vivesse em permanente nostalgia de uma língua que ainda não há e em cuja invenção se empenha.

Um dos sintomas deste exílio é o facto de não encontrarmos marcas contextuais, referências imediatas a uma realidade e a um tempo que reconheçamos como nosso, ou seja, não existem referências a um ser-se cidadão de um dado país, submetido a dadas forças e poderes, aqui e agora. Nesta poesia, o tempo e o espaço são elementos abstratos, moldáveis, criados e manuseados por aquele que fala. Os poemas forjam o próprio espaço e tempo a partir do qual se afirmam, a partir do qual se dirigem a nós. Transfiguram, impõem um novo olhar, criam mundo, ao invés de se vergarem às leis do mundo que já existe.

Este mundo é construído à escala do corpo daquele que ama e diz o seu amor: nele encontramos “a flor da voz”, “os grandes declives da língua”, o “fulgor amargo da carne”, a mão como “uma escrava memorável”, essa mão que agita e sofre as tempestades, assim como a garganta se deixa “atravessar por uma rosa”. O próprio título propõe as mãos como instrumentos de uma dupla incursão, como espaço de um duplo contacto – contacto com o corpo amado e com o texto. Escrita, criação e erotismo equivalem-se e confundem-se, são intermutáveis, são, no fundo, um só e o mesmo padecimento. Ambos são lugares onde buscar a redenção, ambos anunciam o desaire constitutivo de todas as paixões.

Retomando a ideia de que André Domingues é também um jovem poeta, esta retira-se do modo como a sua poesia é marcadamente audaz, límpida, caminha num gume perigoso e difícil de domar entre o lirismo total, sem reservas, um lirismo compulsivo – uma ideia que nos é logo apresentada no título “Tempestade das mãos”, que remete para a turbulência, para a compulsão da escrita, para a procura de auges, cumes, perigos, como os há em todas as tempestades – e a sobriedade necessária à exatidão, ao essencial, à palavra justa que estabelece a diferença entre meia dúzia de versos bem alinhados e um verdadeiro poema.

Esta poesia mantém uma alegria incansável, mesmo se mesclada com a “tristeza incorrigível”, com uma melancolia amadurecida, serena, aceite, um estado a que se chega “com a calma delirante de um fracasso”. O André atormenta as palavras, torce a linguagem com “o extremo lirismo das mãos”, deslumbra-se com ela, com essa “linguagem insólita, brilhante e desfigurada”, como um jovem poeta, um poeta que começa, um poeta adolescente. E, como um poeta adolescente, escreve sem distanciamento irónico, sem cinismo, ainda sem desesperança. Escreve com as mãos e a boca ávidas e sujas daquilo que diz, “com a mão […] presa ao esplendor”.

Se já em “Dramas de Companhia” existia uma forte componente lúdica, teatral, performativa, com o propósito de “baralhar linguagens”, “gerar surpresa” e “resistir ao senso comum e à vida real”, como assinalou a propósito José Manuel Teixeira da Silva, essa dimensão lúdica, esse gosto pelo jogo, pela encenação, até pela sedução do outro/leitor, não são menos evidentes em “Tempestade das mãos”. Esta poesia não é chã. Para dizê-la e para lê-la é preciso subir a palco ou sentar-se diante dele, aceitar o contrato habitual de “suspensão voluntária da descrença” entre atores e espetadores. Há um forte sentido de pose, de estratégia, de timing, de colocação da voz, a busca do melhor ângulo para aparecer, o recurso aos artifícios e adornos mais capazes de atiçar a beleza, de mover e contagiar, e esse intento, mesmo se veiculado com grande subtileza, nunca está oculto.

Poder-se-ia pensar que esta encenação anularia o que acima foi dito sobre a radical sinceridade do poeta-amante. Poder-se-ia dizer que o teatro não corresponde exatamente à vida, e que o fingimento nem sempre iguala o que o poeta deveras sente. Pode ser. Mas a verdade é que, como diz Gil de Biedma, no castelhano que André tanto conhece e ama, também “as rosas de papel são, na verdade / demasiado acesas para o peito”.