Há guerra nas ruas de Dublin

Os dois maiores e mais violentos gangues da capital irlandesa estão em guerra aberta. Ambas as organizações querem mais poder e controlo sobre as drogas que entram no país,mas o conflito deve-se sobretudo a amarguras e retaliações violentas. Dificilmente se evitará a morte de dezenas.

ão é invulgar as grandes organizações criminosas na Irlanda acionarem uma via de escape nos momentos em que se encontram em pé de guerra. Trata-se simultaneamente de uma espécie de código de conduta e proteção mútua. Os líderes ou os seus homens de confiança sentam-se à mesa e tentam negociar o fim da violência. Afinal de contas, o crime em excesso, principalmente quando acaba nas televisões, causa alarme. E o alarme costuma excitar Governo, polícia e detetives abelhudos. Ninguém o deseja e John Gilligan é um exemplo do que pode acontecer a mafiosos que cruzam a linha do aceitável. Gilligan ordenou a morte da jornalista Veronica Guerin em 1996, provocou o pânico nas ruas e em retaliação o Governo criou o Criminal Assets Bureau, o órgão especial que hoje investiga o crime organizado na Irlanda. Gilligan não passa agora de uma figura irrelevante no cenário do crime irlandês. Foi banido porque foi longe de mais. 

As autoridades já não esperam por este mecanismo de moderação na guerra que hoje corre nas ruas de Dublin. A violência chegou a um ponto de não retorno. Há já demasiados mortos nas fileiras dos dois maiores gangues e insultos tão terríveis que o conflito pode terminar apenas com o fim de uma das organizações. Em dois anos de disputa violenta em Dublin morreram 15 pessoas, contam-se muitos mais tiroteios, dezenas de pessoas fugiram do país e as autoridades afirmam que há uma lista de 29 alvos a abater em ambos os lados. São homens à espera de morrer, como escrevia há uma semana o Guardian. «Em determinados pubs e discotecas, aqui ou nos bairros dos subúrbios, ou na zona norte de Dublin, há pessoas que se levantam e saem assim que vêm certos indivíduos que podem estar sob ameaça ou fazer parte da guerra dos tiroteios», conta ao jornal Mannix Flynn, o presidente de uma das freguesias de Dublin. «Esta rivalidade, entristece-me dizer, veio para ficar. Não há qualquer processo de mediação e nenhum dos lados está disposto a ouvir. Isto está bem para lá de quaisquer negociações e é uma luta até á morte.»

Flynn fala da guerra aberta entre os «soldados» de Christy Kinahan e Gerry Hutch, mais conhecido como «o monge». Estes são os principais gangues da capital irlandesa e encontram-se entre os mais perigosos na Europa. O primeiro tem mais homens, armas e dinheiro, mas o segundo controla os portos e as drogas que chegam de África e da Europa e eventualmente alcançam as ruas britânicas. Ambos os grupos querem mais poder. Kinahan, que circula entre Espanha, o norte de África e o Dubai, cobiça há muito o controlo costeiro de Hutch e este, por sua vez, aliou-se a um gangue espanhol que procura acabar com as operações de Kinahan no sul de Espanha. A guerra, contudo, tem um caráter pessoal e é largamente responsabilidade de uma onda de homicídios, negociatas e retaliações que pouco têm que ver com o tráfico de droga no norte ou sul da Europa. O seu eclodir, aliás, traça-se até setembro de 2015, o mês em que o sobrinho de Gerry Hutch foi assassinado na Costa del Sol, na Andaluzia, baleado perto da piscina do seu condomínio de luxo. 

O homicídio irou Hutch e os seus homens que, de acordo com as autoridades irlandesas, pensavam ter-se assegurado da amnistia do jovem Gary ao pagarem 300 mil euros para que lhe fossem perdoados os tiros que disparou contra um veterano do cartel de Kinahan, com o qual chegou a colaborar. A retaliação de Hutch cativou a atenção do mundo. Seis homens, três disfarçados de polícias e um outro de mulher, e dois armados com espingardas automáticas AK-47, entraram de rompante numa das salas do hotel Regency, em Dublin, e abriram fogo sobre homens do gangue rival que assistiam à preparação dos pugilistas para o título de pesos leves europeu. Estávamos em fevereiro de 2016, a dias do duelo entre entre o irlandês Jamie Kavanagh e o português João Bento. Um «soldado» do gangue de Kinahan morreu e outro ficou gravemente ferido. A retaliação de Kiniahan à retaliação de Hutch, contudo, foi mais eficaz. Treze dos 15 homens assassinados nos últimos dois anos pertenciam ao gangue de Hutch. O último a morrer, aliás, foi um outro sobrinho seu, há apenas um mês, quando se preparava para atirar uma encomenda com drogas sobre o muro da prisão Wheatfield, em Dublin.

As autoridades em Dublin reagem reforçando a segurança nos pontos críticos da capital e destacando homens para acompanharem familiares e amigos dos gangues. Por ironia, sublinha Jimmy Guerin, voz crucial no combate ao crime organizado na Irlanda e irmão de Veronica Guerin, a jornalista assassinada na década de 90, os reforços policiais em Dublin resultaram numa queda generalizada no crime. «Esta guerra supera as drogas», explica ao Guardian. «É também sobre um embate de personalidades e amarguras pessoais muito profundas», diz, aconselhando a polícia a «fazer regressar detetives com experiência já reformados» e a «adotar uma postura mais pensada para combater a cultura de gangues em Dublin». Mesmo com estas reformas, as mortes, segundo alerta, continuarão. «Só se conseguirão impedir alguns ataques. Alguns vão passar, especialmente porque o gangue do Kinahan tem dinheiro para pagar a jovens criminosos. Está a gastar dezenas de milhares de euros e a perdoar dívidas de droga a viciados e pequenos criminosos para que ataquem alguém ligado ao gangue de Hutch.»