Doenças Raras. Uma casa para meninos “raros” aberta a todos

Passada a polémica, a Raríssimas quer continuar a ajudar quem dela precisa com o máximo de transparência. É essa a mensagem da nova presidente, Margarida Laygue, que recebeu o i na Casa dos Marcos, a faceta mais visível da associação

Na Casa dos Marcos, todos se conhecem e utentes e funcionários vivem uma relação quase umbilical. É por isso que as caras estranhas suscitam alguma curiosidade entre os utentes, que depressa se aproximam de quem está só de visita. “Estou a gostar muito da Casa dos Marcos. Estou aqui desde novembro”, conta ao i Carlos Faria, de 41 anos. Está ali porque sofre de uma doença rara.

Carlos também abordou Marcelo Rebelo de Sousa quando o Presidente da República foi visitar a Casa dos Marcos, em dezembro. Costumava vê-lo na televisão, quando fazia comentário político. “Sempre disse que ele ia ser Presidente da República”, diz. Apressa-se a ir buscar um autorretrato que fez, para estabelecer uma comparação. “Estão a ver este autorretrato? Quando o Presidente veio cá ofereci-lhe um retrato dele que eu fiz também. Gostou muito.”

Ainda pela mão de Carlos, é tempo de conhecer a cadela da casa. Está presa num espaço amplo com uma rede. Uma placa colorida presa na rede dá-lhe um nome: Tonicha. “Já viram esta placa? Fui eu que fiz. Ela merece”, continua o anfitrião. Carlos, o “artista” da Casa dos Marcos, é só um entre os cerca de 800 mil portugueses que sofrem de uma doença rara – um número que é apenas uma estimativa, uma vez que não existe um registo oficial e certo. E a maioria não tem o apoio de que Carlos usufrui.

A Raríssimas depois da polémica À entrada da Casa dos Marcos, a parede à esquerda atrai imediatamente o olhar. Três fotografias, grandes, a preto-e-branco, decoram a parede e mostram a antiga presidente, Paula Brito e Costa, em três momentos diferentes: numa está com a rainha Letícia de Espanha aquando da sua visita à Casa dos Marcos, em 2014, noutra está com a rainha e Maria Cavaco Silva, na mesma ocasião, e na última com o Papa Francisco.

“Pensam manter as fotografias?”, perguntamos à atual presidente da Raríssimas. “Não pensámos nisso ainda, há coisas mais importantes”, responde Margarida Laygue, eleita em janeiro, depois da renúncia de Paula Brito e Costa ao cargo. “Faz parte da história da Raríssimas e da obra que foi criada. Por isso, a mim não me chocam [as fotografias]. Foi a pessoa que impulsionou e que conseguiu construir esta obra notável, portanto tem todo o valor por isso”, defende a socióloga do trabalho que, como já tinha explicado ao “SOL” em dezembro, é mãe de uma menina “rara” que todos os dias faz tratamentos na Casa dos Marcos.

Nos primeiros dias em funções, “o clima era de incerteza e de insegurança” mas, apesar disso, Margarida reconhece grandes qualidades às pessoas que ali trabalham. “Fomos surpreendidos por muitos profissionais que, apesar de tudo, nunca deixaram cair um serviço, e hoje continuamos a dar resposta a todos os nossos utentes e a todas as famílias que a nós recorrem”, assinala. Agora, explica, o importante é trabalhar para garantir o apoio de mecenas – a quem garantem total acesso ao destino dos donativos –, essenciais à sobrevivência da instituição que, recorde-se, é também financiada pelo Estado através da Segurança Social.

Parte desse trabalho passa pela transparência e pelo rigor nas contas. “Estamos a iniciar um processo de auditoria financeira certificada e vamos começar a rever todo o orçamento para perceber que adequações precisamos de fazer e que atividades vai ser possível executar ou não”, explica a presidente.

Numa altura em que as doenças raras continuam a ser um território apenas parcialmente descoberto, Margarida Laygue nota que a Raríssimas desenvolve um trabalho muito importante para quem se vê, de repente, apanhado na teia dessas doenças. “A Raríssimas acompanha 247 utentes, distribuídos pelas várias delegações. Na Casa dos Marcos são mais de 150. E chega-nos uma grande variedade de doenças, com apenas um ou dois utentes com o mesmo diagnóstico. Outros – muitos – nem sequer estão diagnosticados”, diz a responsável.

Ainda assim, o conhecimento sobre as doenças raras tem avançado de forma significativa nos últimos 20 anos. Quem o diz é Maria João Freitas, que integra a comissão coordenadora da Raríssimas. “Temos assistido, sobretudo nas últimas duas décadas, a um de-senvolvimento muito significativo na área do diagnóstico e da terapêutica das doenças raras.”

Há, hoje, mais de sete mil doenças diagnosticadas e “cerca de 85% dos diagnósticos têm uma etiologia genética. Estamos a falar sobretudo de condições crónicas, em que a abordagem terapêutica é relevante para mitigar os efeitos da doença ou travar o ritmo do seu avanço, ou então manter também os doentes equilibrados e garantir uma melhoria na sua qualidade de vida”, acrescenta Maria João.

A Raríssimas tem sede em Lisboa, mas tem também delegações em Viseu, na Maia e no Pico. Aí, explica Margarida, presta-se aconselhamento e serviços de reabilitação. Mas a estrela da instituição é a Casa dos Marcos, que tem vários pilares de resposta: um centro de desenvolvimento e reabilitação, um centro de atividades ocupacionais, um lar residencial, uma residência autónoma e uma unidade de cuidados continuados.

Para Maria João Freitas, perante a alternativa que existe para as famílias – fazer as terapias em qualquer serviço comum do Estado ou privado –, “a Casa dos Marcos apresenta-se como uma mais-valia, uma vez que disponibiliza serviços de natureza diversa e que possibilitam uma visão global e integrada do utente”.

Visita guiada Inaugurada em 2013, a Casa dos Marcos é um edifício moderno que salta à vista pelas linhas retas e onde o vidro assume um papel de destaque. “Ao longo do edifício há várias áreas envidraçadas para que se possa ver do lado de fora o que se passa lá dentro”, explica o psicólogo António Veiga, que integra a direção da Raríssimas e faz a visita guiada pelas instalações. “Queríamos uma casa aberta. Durante o dia não temos segurança e os portões estão abertos.”

Entre os serviços da associação, um dos mais inovadores e estimados é a Linha Rara, nascida em 2009. É mantida na Casa dos Marcos por uma equipa de três pessoas: duas psicólogas e uma técnica de serviço social. “Somos uma linha de informação e apoio cujo custo equivale a uma chamada normal. Temos também um email e ajudamos quem nos visita aqui na Casa dos Marcos”, explica ao i a coordenadora da Linha Rara, Joana Neves.

Receberam até hoje mais de 13 mil pedidos de informação e apoio. “Os pedidos são muito diversos”, diz a responsável. Há pouco tempo, conta, uma mãe contactou a linha porque descobriu que o filho bebé tinha uma doença rara e não encontrava muita informação. O pediatra também pouco sabia sobre a doença e a Linha Rara conseguiu informá-la.

Quando as doenças raras são, por definição, condições que afetam apenas cinco em cada dez mil pessoas, a Linha Rara é muitas vezes uma espécie de boia de salvação para as famílias.

A visita continua e chegamos ao Centro de Desenvolvimento e Reabilitação, um ginásio multidisciplinar onde se faz o acompanhamento dos utentes para que possam desenvolver competências motoras, cognitivas e sensoriais. Existe desde 2010 e disponibiliza fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, musicoterapia, hipoterapia e terapia assistida por cão. A ajudar os técnicos está por vezes um cão, Jimmy. “É uma terapia que tem resultados muito interessantes”, reconhece Andreia Bernardo, a coordenadora. “Temos o caso agora de um menino que não fala e tem tido muitos benefícios. Veio cá outro dia e foi à procura do Jimmy, e encontrou-o ao pé da mesa. Depois, noutro dia, voltou cá e foi logo procurá-lo no mesmo sítio, mas ele não estava cá.”

Acompanham em média 80 utentes por mês, entre utentes das respostas sociais – residência autónoma, lar residencial e centro de atividades ocupacionais – e utentes externos.

António Veiga continua a guiar-nos pelos corredores da instituição e apresenta a residência autónoma. “Há sempre um assistente na residência autónoma. Temos sempre turnos de oito horas, 24 horas por dia”, explica. A ideia deste espaço, que se assemelha a um apartamento comum, “é dotar os jovens de competências de autonomia para que, dentro de algum tempo, adquiram competências para o exterior”.

Um dos moradores da residência aparece e interrompe a conversa. “Olá, sou o João Ribeiro!”, diz. Tem 28 anos. António Veiga explica que ali, na sala de estar, os jovens reúnem-se depois do jantar para verem televisão. A cozinha está completamente equipada, mas os moradores, devido às suas limitações, não conseguem preparar as refeições na totalidade. A residência tem máquina de lavar, para que os jovens lavem a sua roupa.

Na residência, com capacidade para cinco pessoas, há quatro quartos, um deles duplo. Todos têm casa de banho, à exceção do quarto duplo, cujos ocupantes usam a casa de banho que serve toda a residência. João apressa-se a mostrar o seu quarto. “Está muito arrumado”, garante. “E limpo”, acrescenta o psicólogo, que explica que são os jovens que limpam a casa, um dia por semana. “Aspiramos o quarto, limpamos a casa de banho, lavamos o chão e limpamos os móveis da sala”, descreve João.

Passamos depois ao lar residencial, com capacidade para 24 utentes. “Quem mora aqui passa 24 horas connosco. Alguns ocupam o tempo no centro de atividades ocupacionais. Outros fazem atividades externas, noutros centros”, diz o psicólogo. Os quartos do lar, com duas camas cada um, têm todos casa de banho privativa. Quanto aos jovens que ali residem, têm todos um plano de intervenção específico e uma ficha de acompanhamento detalhada com toda a situação clínica. Alguns dos residentes regressam a casa ao fim de semana. “É sempre bom incentivar a ida dos jovens a casa, eles gostam”, continua António Veiga.

Ocupar o tempo com uma visão de negócio Passamos ao centro de atividades ocupacionais, que se divide em três salas: azul, amarela e verde. Na primeira sala apresenta-se um outro João. “O que costumas fazer aqui?”, perguntamos. “Oiço música e agora vou pintar uma caixa.” Não sabe ao certo a idade. Diz que tem 18, mas as assistentes corrigem para 20 e tal.

Uma assistente explica que nesta sala se desenvolvem principalmente atividades de formação sensorial. O objetivo é proporcionar aos utentes o contacto com vários tipos de texturas. Além de João, aqui está também Maria Esteves, que quer cantar para as visitas. “Costuma ser o ‘Malhão’”, diz António. João vem ter connosco e pergunta se já conhecemos a Tonicha. “É muito querida, ela, anda sempre atrás de nós para nos cheirar”, conta.

Noutra das salas do centro de atividades ocupacionais, um projeto com vários objetos feitos de rolhas chama a atenção. “Se quiserem comprar uma base para tachos podem comprar, que eu ofereço”, intervém João, provocando o riso geral na sala. Para além de bases para tachos há copos de canetas, porta-velas ou molduras, todos com o logótipo da Raríssimas gravado. E o que faz o João? “Colo as rolhas com ajuda e pinto”, responde.

Por detrás dos objetos, uma tela colorida dá vida à parede. “Foi um projeto que eles fizeram. Eram umas telas banalíssimas, iguais a milhares de outras, e eles reciclaram-nas”, explica António Veiga.

Gostavam de, no futuro, fazer uma empresa social “em que fosse possível dar trabalho a estes jovens, que têm capacidade para isso”, continua o psicólogo. Além dos trabalhos manuais e da pintura, hortofloricultura, culinária e lavagem automóvel são outras das atividades desenvolvidas no centro de atividades ocupacionais.

Lá fora reencontramos Carlos, que está a lavar um carro com os irmãos Milton e Élio Rodrigues, na casa dos 40 anos. “Comecei a fazer esta atividade em janeiro”, diz Carlos. “Estou a gostar muito.” O preço é cinco euros e inclui lavagem e aspiração. Os carros que ali se lavam pertencem aos colaboradores da casa, que não têm hipótese de fugir ao pagamento, assegura António Veiga. “Eles são muito assertivos. Mal termina o serviço vão recolher o pagamento e não vão embora sem o receber.”

Da Casa dos Marcos faz ainda parte, no andar inferior, um auditório usado para encontros clínicos e reuniões científicas de debate, com médicos e outros profissionais. Há ainda uma unidade de cuidados continuados, de portas abertas para pessoas com doenças raras e não só.

No regresso ao andar superior surpreende-nos uma colaboradora com um prato de bolachas acabadas de sair do forno. “Foram os utentes da sala amarela que fizeram”, explica. Oferecem- -nos e levamos uma para a viagem.