Delfim Leão. “Os clássicos são portos seguros. Há milénios que resistem”

Foi há exatos dez anos que em Coimbra nasceu uma biblioteca digital que criou um amplo espaço de difusão para a área dos estudos clássicos. Os “Classica Digitalia” são hoje o maior projeto editorial da lusofonia. Gregos e latinos não torcem o nariz às novas tecnologias e estão à distância de um clique

É tu cá, tu lá com gregos e latinos, mas nunca escondeu a sua queda para as humanidades digitais. Delfim Ferreira Leão nasceu no Port o em 1970, mas trocou a Cidade Invicta pela Coimbra dos doutores. É lá que se move, entre a Faculdade de Letras, onde é professor catedrático e dirige o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, e a Imprensa da Universidade de Coimbra, de que é diretor. Corre por gosto. O seu ritmo de trabalho faz pensar num Aquiles cujo calcanhar tivesse sido mergulhado num preparado de partes iguais de saber, empenho e uma vontade firme de divulgar os clássicos, esses nos quais sempre descobrimos algum ramo perdido da nossa árvore genealógica.

São muitos os clássicos que pontuam o seu trajeto académico: Sólon, Píndaro, Heródoto, Aristóteles, Plutarco e… tantos mais. Quando se encantou com gregos e latinos?

Como noutras paixões que vão germinando em nós, há sempre pequenos indícios que nos remetem para o nosso passado mais remoto naquela fase em que estamos a formar a nossa personalidade e não temos ainda uma ideia de para onde ela irá virar. A primeira sedução que tive por este universo foi na sala de Português por causa do imaginário da mitologia. Havia pequenas sínteses sobre mitologia e eu achava muita piada àquilo, queria sempre saber mais. Mais tarde, no Liceu Carolina Michaëlis, no Porto, um liceu com uma aura muito interessante (risos) – até há pouco conhecido como um liceu exclusivo de meninas -, era possível estudar latim e grego, e eu tinha essas bases. Se no latim éramos capazes de ler as palavras, porque a grafia era a mesma, no grego nem isso. Era uma das coisas que me seduzia profundamente porque eu tinha aquela imagem das coboiadas, de andarmos a inventar tesouros, enfim, códigos de escrita que ninguém mais percebe além de nós, e o grego parecia-me isso. De repente, é um código de escrita cuja primeira barreira, o próprio alfabeto, tem de se vencer.

E via-se a enveredar por aí profissionalmente?

Pensava muitas vezes: será que algum dia poderia traduzir estas obras? Torná–las acessíveis a um público muito mais amplo? Porque o que nessa altura existia em Portugal era, de facto, muito pouco. Havia apenas alguns autores e muito parcelarmente, e nós tínhamos uma imensa dificuldade. E talvez esteja aqui um dos primeiros embriões do que pudesse ser esta grande vontade de divulgar, de tornar acessível um saber que tende a ser elitista, embora façamos sempre o discurso contrário. 

Sempre o elitismo.

Curiosamente, é uma discussão que está muito na moda: o que é a crise, o que deixa de ser, o que é a identidade, a identidade europeia, a identidade ocidental, e que está em crise desde há bastante tempo. Em parte, também se confunde com estas matérias mais matriciais. Mas a verdade é que nos queixamos de que não queremos ser elitistas, antes chegar a todo o mundo, mas, depois, o tipo de saber que se promove, as novas exigências que o envolvem acabam por acantonar as pessoas que o fazem dentro, não digo de uma redoma, mas de um grupo pequeno. E, portanto, o esforço de tradução, se pensarmos na relevância social deste domínio do saber, é dos trabalhos mais nobres que nesta área podemos fazer.

Mas é um trabalho que tem vindo a ser socialmente valorizado, certo?

Sim, isso tem a ver com alguma visibilidade a nível social, conseguido com algumas iniciativas. Mas penso que é sobretudo um sinal de maturidade dos leitores. Havia a circular em Portugal, e ainda circulam, muitas traduções de gregos e latinos que, na verdade, não são feitas a partir do original, mas através de mediação francesa, tradicionalmente, ou inglesa, atualmente, o que para nós é um atentado contra o original, uma coisa que seria completamente inaceitável mas que, durante muito tempo, conviveu no nosso país e ainda não está totalmente eliminada. A valorização do trabalho do tradutor, a partir do original direto, e do produto que daí decorre como algo cultural e cientificamente válido também corresponde a uma exigência maior dos leitores, que percebem que não é a mesma coisa traduzir em segunda mão (podemos ser levados a erros palmares) e traduzir a partir do original.

Vasco Graça Moura dizia que traduzir é como tirar uma “fotografia verbal” a preto-e-branco. Concorda?

Essa imagem, e vinda de um tradutor exímio, extremamente cuidadoso, que merece toda a relevância que tem, é muito reveladora. Ela mostra a consciência total da dificuldade que é verter integralmente um texto de uma língua para outra, mesmo em línguas que estão relativamente próximas, o que não é o caso do latim ou do grego. É claro que se estivéssemos a falar com alguém da teoria da tradução, ela diria que todas as versões de um texto são versões viáveis, tão válidas como outras. Mas quanto à fidelidade, é evidente que a transposição total nunca é possível, é sempre uma foto a preto-e- -branco. Por vezes, o tradutor, pelas suas qualidades, pelo seu conhecimento da obra, do contexto, da sua sensibilidade, enfim, consegue-o.

E qual tem sido a sua experiência?

Enquanto tradutor, tendo a concordar com Vasco Graça Moura: há sempre nuances que não conseguimos transpor, zonas que ficam muito sombreadas e áreas que ficam com cores carregadas, e não precisavam de o ser, e que são a expressão da nossa incapacidade. Mas não apenas dela. É que uma língua é sempre uma forma de leitura do mundo e as línguas não espelham essa leitura exatamente da mesma forma. A perceção é diferente. 

Os clássicos parecem reclamar o que os nossos dias, que a tudo parecem pedir rapidez e legibilidade máxima, não lhes podem dar: tempo, disponibilidade, capacidade de espera, reflexão. Neste sentido, parece-lhe que os clássicos estarão em risco?

Para um mundo apressado como este em que nós vivemos, parece que tudo o que tenha que ver com mediação, que necessite de mais tempo para ser apreendido, está condenado a desaparecer. Mas eu diria que talvez seja o contrário. De toda a informação com que nós somos banhados, diariamente e de todos os lados, o que fica dos nossos referentes culturais passada uma semana, um mês, um ano? E sobretudo para estas gerações mais novas, que vivem muito com os meios digitais e para quem um ano é uma coisa completamente passada. Os clássicos e essas referências, até por isso, são portos seguros. Eles estão lá, há milénios que resistem. E justamente porque têm esse tempo de resistência, essa durabilidade, eles já são referentes mesmo quando deles não temos consciência.

O que o leva a ter essa perceção?

É um exercício que faço muitas vezes nas aulas de História da Antiguidade, de Mitologia, com os alunos. Aí o papel de quem investiga, de quem ensina: desvelar, descascar a laranja e deixar que o seu interior se torne visível. Não podemos esquecer-nos de que o que nos chegou dos clássicos é apenas uma pequena percentagem do que foi produzido; em princípio, o melhor que foi produzido; o resto perdeu-se. Eu diria que os clássicos estão sempre em crise, parece que são sempre fora de tempo mas, por outro lado, são um exemplo de resiliência. Por isso, é muito provável que se mantenham. São por vezes esquecidos, por vezes são referentes negativos, referidos como fratura, como modelo a abater mas, depois, o modelo é recuperado. É como a paródia, sempre feita em relação a qualquer coisa, mas para a podermos perceber é preciso saber o que está por detrás dela. Portanto, seja como fratura, como imitação, como repulsa, seja como adesão plena, os clássicos vão sobrevivendo sempre. 

Há exatamente dez anos nascia em Coimbra aquele que é hoje o maior projeto editorial da lusofonia: os Classica Digitalia, biblioteca que dirige e pela qual é o grande responsável. Ver conviver, de modo tão pegado, as coisas clássicas e os meios digitais, e logo em Coimbra, espécie de berço improvável para uma coisa pioneira, causará alguma estranheza… 

Sim, à partida, não se esperaria que numa universidade mais clássica, mais antiga, que alguns ainda associam a um saber fechado no tempo, bafiento, nascesse este projeto forte, mesmo em termos internacionais. A pessoa achar que só porque existe há muito tempo se deixa aprisionar no passado é uma armadilha de que convém escapar. Quem trabalha nestas áreas antigas, sempre ameaçadas, tem de encontrar formas de se adiantar. E este foi um momento feliz, ligado ao movimento da ciência aberta. 

E a designação?

A designação – Classica Digitalia (http://www.uc.pt/iii/research_centers/CECH/ClassicaDigitalia) – é uma espécie de oxímoro. A ideia era justamente provocar estranhamento, até porque, em si, ela desperta logo alguma atenção. Como é que os clássicos, sempre associados ao passado, vão unir-se ao progresso e a uma coisa a que toda a gente adere? Há dez anos, falar da edição eletrónica de livros, e valorizá-la como tal, era quase uma miragem. É claro que havia experiências interessantes ao nível das revistas científicas, dos chamados repositórios institucionais, que estavam a dar os primeiros passos nestas matérias, mas a edição do livro (sempre visto no seu formato perfeito, ideal) em formato digital era algo completamente estranho, na altura, para a generalidade das pessoas.

E um projeto pioneiro. Como é que tudo começou?

Eu tinha candidatado um projeto à FCT, sobre Plutarco e os fundamentos da identidade europeia, e tínhamos um plano de publicações, traduções, estudos. Fiz algumas sondagens junto de editoras e rapidamente percebi que os financiamentos de que dispúnhamos eram parcos para os objetivos de divulgação que queríamos. E foi então que coloquei pela primeira vez a questão a pessoas ligadas aos repositórios institucionais: se seria possível criar uma biblioteca digital especializada. O que para mim foi, desde logo, muito claro foi a ideia do acesso aberto. Qualquer pessoa deveria ter acesso à informação, descarregá-la sem pagar nada, e isto para garantir que muitos mais leitores, estivessem eles onde estivessem, pudessem aceder à informação. Era, no fundo, cumprir o sonho.

Que sonho era esse?

O sonho de ser editor, que é uma coisa que mais ou menos persegue todos os que estão ligados à investigação e à área cultural. E, depois, o sonho de ir ao encontro dos leitores onde quer que estivessem, aqui, na China… A partir daí foi fazer crescer o projeto e sobretudo torná-lo respeitável. 

Houve resistências, desconfianças?

No início era o receio de que esta biblioteca não fosse levada a sério. E, até por isso, todos os livros produzidos tinham inicialmente a sua versão impressa, para reconforto do autor e da comunidade científica em geral. Depois, também a questão da validação científica, que era uma questão central em Portugal. A ideia que nós tínhamos era um tanto eremita, mas um bocado desfasada do que se estava a fazer no resto do mundo. E em áreas em que a noção de propriedade é mais intensa, as pessoas sentiam aquilo como um prolongamento seu. Colocar um texto disponível online punha, a quem enfrentava essa possibilidade, grandes questões: o medo da apropriação, do uso indevido, questões de direito de autor. Na altura era um problema muito pungente.

Mas houve entretanto uma grande mudança.

Foi uma volta de 180 graus. Hoje, o grande medo é o de não sermos lidos. E para que o contrário aconteça tem de se divulgar o mais possível. Foi, pois, necessário vencer essas etapas de desconfiança e, por outro lado, tornar muito transparente o processo de seleção dos trabalhos, fazer perceber que recorrer a este tipo de publicação não era uma via fácil. Não, pelo contrário, tratava-se de alargar a comunidade científica que filtrava todos esses trabalhos e fazer perceber que o produto passou por um crivo apertado. Há, pois, uma grande preocupação com a seriedade, que foi uma das conquistas mais importantes. Ao longo destes dez anos, contando entre quem escreveu, quem leu (os árbitros), estiveram envolvidas à volta de mil pessoas de todo o mundo. A comunidade que está ligada ao projeto é, de facto, muito ampla.

Esta biblioteca digital restringe-se especificamente aos estudos clássicos?

Dentro da lusofonia, e nesta área específica, o projeto abrange múltiplas áreas: a linguística, a filosofia, a história da arte, a arqueologia, o teatro, os estudos artísticos, a própria receção dos clássicos – enfim, dar liberdade sem perder a identidade para que um número muito maior de pessoas se possam interessar. O que se procurou foi criar um fio condutor, uma área agregadora. É um processo que tem corrido muito bem. Todas as semanas temos propostas a chegar, muito mais que as que podemos publicar. É uma dinâmica interessante: de cada vez que sai um novo livro, sabemos que outros estão a ser paginados, avaliados ou produzidos.

Com quantos livros conta já esta biblioteca?

Ao longo destes dez anos ultrapassámos os 200 volumes. Para o universo académico, para estes saberes altamente minoritários, é uma solução.

Sendo a prof.a Maria Helena da Rocha Pereira uma figura tutelar do conhecimento dos clássicos, como reagiu ela a esta biblioteca digital?

A prof.a Rocha Pereira sempre teve uma grande capacidade de adaptação. E para ela, que não trabalhava com computadores, era nítido que há distintos meios para se atingirem os fins. Porque ela, no seu tempo, também inovou. Contava até uma piada. Foi das primeiras pessoas a usar a projeção de slides. Um dia veio um assistente da Faculdade de Medicina à sua aula literalmente dar ao slide, o que mostra esta preocupação que ela tinha de trazer novidade e aplicá-la. Para ela, o que era muito claro era a necessidade de garantir que o processo de elaboração do trabalho fosse sério.

Tinha sinais desse seu interesse?

Perguntava-me muitas vezes pelos descarregamentos, pela proporção relativa dos países em causa. Este era apenas o processo para chegar a mais gente. Havia da parte dela uma adesão muito natural. Sabia bem que uma área que trabalha com o passado e que corre o risco de ser vista ancorada a esse mesmo passado tem de desenvolver um esforço constante de adaptação, de poder chegar de novas formas a novos públicos, sem perder o pé e a seriedade.

Os Classica Digitalia têm hoje suficiente solidez?

Sim, absolutamente. Mas a outra obrigação que nós temos é, com o produto deste esforço já desenvolvido, torná-lo legível ao nosso público atual, o que implica uma adaptação de linguagem, uma exigência quase congénita de quem trabalha nestas áreas, e pelos meios que forem mais eficazes. Quem ficar apenas mergulhado no passado, o saber que essa pessoa geriu e gerou desaparece com ela, estiola com ela. No fundo, é um trabalho de trasladar de um lado para o outro. Em sentido metafórico mais amplo, é também um processo de tradução.

Mas a verdade é que há sempre os leitores que não resistem aos aromas do papel, às suas texturas, aos seus formatos. Como respondem a esses os Classica Digitalia?

As obras disponibilizadas em formato digital são também, todas elas, impressas e existem no seu formato papel. O que significa que em vez de imprimirmos, por exemplo, mil cópias e esperarmos dez anos para as vender, podemos imprimir apenas 50 ou 100 para testarmos a venda. Gera-se um stock virtual, que é ativado sempre que há uma encomenda. O papel permite outra coisa, a garantia de perenidade, até porque a informação dos meios digitais é, na verdade, efémera. Por um lado, tudo o que lá vai parar parece nunca desaparecer, é uma praga, mas por outro lado é muito difícil preservar a informação que se vai produzindo e tem custos elevados. Os grandes sábios, os gramáticos de Alexandria filtraram o cânone das obras clássicas que poderiam ser transmitidas à posteridade; no fundo, salvaguardaram o que seria melhor para ser transferido. E nós continuamos a fazer o mesmo.

A propósito da edição, de sonhos e das vaidades pessoais que os clássicos tão bem caracterizaram e satirizaram: acha que hoje se publica demais?

Acho que sim, e ninguém consegue digerir tanta produção, tanta informação. É um fenómeno muito potenciado pelas redes sociais, pelo Facebook, e pelas reações automáticas. Hoje espera-se o reconhecimento instantâneo, há uma incapacidade de espera. A vaidade pessoal há de sempre acompanhar-nos. Os clássicos denunciaram essa fraqueza humana. E aquilo que muitas vezes pensamos que é especial, e por isso o queremos ver publicado, é até muito banal. Basta ler os clássicos. 

Quando fala em vaidade neste âmbito, está a pensar na Chiado Editora, por exemplo? 

Para uma pessoa que quer escrever, quer publicar, quer ter leitores, é legítima essa opção. Tem o direito de tentar a sua sorte. Mas também é certo que a maioria dos autores o que vai fazer é ajudar a manter esse sistema, que pode corresponder àquilo a que chamamos as editoras predadoras.